Necrotério

Aquela cena nunca mais saiu da minha mente, nunca mais.

Trabalhei mais de um terço da minha vida junto com a morte, ela tinha muitos rostos, várias idades e formas.

O homem da funerária, era assim que todos me conheciam.

Minha função? Era bem simples, buscar os corpos nos necrotérios, de hospitais e levá-los à casa funerária onde eram lavados e vestidos.

Confesso que não era um trabalho gostoso, mas foi o que arrumei e depois fui me acostumando e fiquei até me aposentar, li mais ou menos uns cinco anos atrás.

Sempre fiz o turno da noite e é incrível como a imaginação das pessoas favorece durante a noite, o que sempre me dava mais trabalho.

Era um serviço um tanto solitário, pois o passageiro nunca fala nada, sempre calado.

Como falei no início, a morte tem muitas caras e jeitos, vi corpos carbonizados, mutilados, esfaqueados, novos, velhos, enfim; de todas as formas.

Não vou dizer que nunca tive medo que eles invadam meus sonhos e não me pareciam nada felizes, agiam como se eu fosse o culpado pela morte de cada um deles.

Eu somente os transportava de um lugar para o outro.

Sim, sonhava, muitas noites, acordava apavorado e não conseguia voltar a dormir.

Mas nada superou o medo e o pavor como o que aconteceu uma semana antes de me aposentar.

Era uma quinta-feira, aproximadamente 2 horas da madrugada, foi solicitado para buscar um corpo no hospital da cidade. Perguntei idade e causa da morte.Um jovem de 22 anos, um câncer havia tomado seus órgãos internos, deixando-o debilitado. Tentaram uma cirurgia, mas ele faleceu na mesa do centro cirúrgico.

Jovens são mais difíceis para mim, sempre foram.

O necrotério do hospital ficava em um prédio anexo, na verdade ficava no porão. Uma sala bem grande toda branca, era bem arcaico, sem “geladeiras”; os corpos ficavam dispostos sobre mesas de mármore.

Haviam 5 dela na grande sala.

Passei pela portaria e pedi para avisarem a enfermagem que estava indo direto para o necrotério e esperaria lá.

Estacionei o carro e descia rampa que dava acesso ao porão. A luz fraca e o clima frio eram típico do lugar. O ambiente cheirava a morte, deu é medo. Mas eu gostava, algo me atraia ali. Talvez a proximidade com a morte...

Como o funcionário da enfermagem estava demorando eu entrei. Sinistro era a palavra pra descrever aquele lugar. Ao adentrar na sala senti um vento gelado, vindo não sei de onde. Aquilo me arrepiou e me deu medo.

Para aumentar meu espanto, as cinco mesas de mármore estavam vazias e limpas, com exceção de uma que estava com um lençol amarrotado.

Me perguntei se outra funerária já havia passado antes de mim.

Ouvi barulho no canto oposto da sala, e olhei nesta direção.

Quase não acreditei. Ele estava lá. Sentado no chão gelado, nu e de olhos fechados. Os cabelos desgrelhados.

Fiquei ali imóvel, o medo tomando conta de meu ser. Vi que ele se mexeu lentamente, mas continuava de olhos fechados, mas ele sabia e sentia que eu estava ali. De repente os olhos se abrem e pude ver que eram negros, totalmente negros. E ficou olhando para mim. Consegui me mover e me afastar, chegando até quase a porta de entrada; no exato momento em que o enfermeiro chegava para me ajudar.

Ao me ver naquele estado tomado de medo e pavor, achei que ele fosse me perguntar se eu havia visto um fantasma. Mas antes de ter tempo para perguntar ele olhou para onde eu dirigia meu olhar; e também via um fantasma, ou pior do que um.

De repente aquele cadáver se levantou de um salto, um vento gelado emanou de seu corpo e a porta por onde havíamos entrado se fechou com uma forte batida. Ele estava extremamente pálido, sua boca ressecada, pesadas olheiras ao redor dos olhos negros.

Uma voz sofrida e chorosa , rouca e saindo com dificuldade dizia :

- Eu não queria morrer!

Quem fez isso comigo?

Por que? Por que?

Sua voz era só desespero e dor.

Ele então enfiou os dedos na incisão cirúrgica, abrindo seu abdômen e deixando sair por ali seus órgãos. Intestinos num estado insano.

Ficamos ali, imóveis,de repente vi o enfermeiro cair de joelhos e começava a orar. Apesar de não ser religioso, mecanicamente fiz o mesmo.Podiamos sentir o vento forte ao nosso redor. Ouviamos sua voz chorosa que parecia um gemido.

De repente o vento parou, abrimos os olhos e pudemos vê-lo dar um salto e pousou sobre a mesa de mármore. Acocorado ele nos fitava, o medo estampado em seus olhos , que agora voltam a ser azuis.

O grande corte em seu abdômen estava agora fechado. Com lagrimas nos olhos, ele se deitou lento e calmamente.

A porta se abriu e um cheiro de flores tomou conta do ambiente.

O necrotério começou a girar em alta velocidade e quando parou eu estava na porta de entrada, do lado de fora, esperando o enfermeiro e decidi não entrar sem que ele chegasse.

Nunca comentei isso com o enfermeiro e nem com ninguém.

Isso aconteceu há muito tempo mas até hoje não sei se foi real, ou uma ilusão.

Mas ainda hoje quando me recordo do caso, sinto o mesmo medo e as mesmas sensações que senti naquele dia.

Paulo Sutto
Enviado por Paulo Sutto em 02/08/2013
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