“Há Algo de Podre...”

E não é só no reino da Dinamarca, caro amigo Hamlet. Assim como a música um dia desceu das esferas, o desastre da era pós-humana cai adiante. A fumaça do meu cigarro forma algo semelhante a um halo de santidade ao meu redor. Enquanto aquelas quatro fêmeas débeis mentais acendem incensos de merda a três passos da minha miséria. Querem, aquelas idiotas, afastar o fedor nauseabundo, penetrante que destrói minhas narinas. Contemplo, resignado há muito, a névoa do cigarro e dos incensos subirem aos céus. Tudo inútil. O fedor prossegue. Piorado.

Vapores esbranquiçados saem de orifícios, buracos escuros, latrinas espalhadas pelas ruas. Vapores ferventes. Ao lado, apodrecem carnes sanguinolentas, pedaços de órgãos sexuais. Com uma estúpida ardência nos olhos, consigo debilmente distinguir ao longe a fumaça negra das indústrias. Partem como redemoinhos endemoniados para o espaço. Mau-cheiro com o qual não consigo me adaptar, mesmo após séculos.

O desenvolvimento que nunca cessa. Daquele rio não sobrará nem o sorriso. Fedendo como uma boca de dentes cariados, o rio parece proporcionar um show de espumantes vapores que brilham pela escuridão. Névoas roxas, esverdeadas, amareladas, escarlates, algumas vezes prateadas, bailam como fantasmas acima de suas imundas águas nervosas. Por onde caminho, há um visco negro da mistura de líquidos seminais, de toda espécie de vísceras liquefeitas, gangrenas, corrimentos vaginais, soros sanguíneos, que unidos naquele horror apodrecem espalhando desgraças pelas atmosferas sufocantes.

A alguma distância do meu desespero há um banhado. Foi um dia um banhado de água, hoje é de sangue. Animais e fetos humanos são jogados ali. Aproximei-me, mesmo sabendo que vomitaria. Ainda que esteja sem comer nada há dias. Não confio nos alimentos que me dão no trabalho. Aquele escritório fede. Realmente não sei por que ainda compareço naquela merda de escritório. Não há nenhum sentido nisso. Nem em escritórios, nem em trabalho. Vomitei, uma gosma branca e espumosa, parecia a água do rio.

Aliás, o que é que faz sentido?

Estou agora do lado banhado. Cismei com o dedinho mingo podre daquela criança. Estava meio erguido e esverdeado, com moscas verdes na ponta. De alguma forma, era belo. Havia uma beleza naquele horror. Por que não poderia? Também vi ali alguns corpos de velhos e velhas que tinham se suicidado. Algumas das crianças mortas também tinham se matado. Não sei bem o motivo. Dizem que foi por não terem o que queriam. Outros velhos foram trazidos dos asilos e ali jogados. Ainda vivos, mas muito doentes. Não havia motivos para cuidar dos velhos. Perda de tempo, de dinheiro e de diversão. Assim exigia a sociedade. Havia certa lógica. Vomitei. Um líquido seco esbranquiçado.

Aquela névoa dos miasmas da putrefação é uma das coisas mais lindas que vejo há anos. A névoa imunda, mas bela, nasce nos órgãos corrompidos dos cadáveres, como bafos de vermes, sobem aos céus nublados. Céus ameaçadores.

Agora, passando por baixo de algumas árvores sem folhas, lá onde deixei minha espera, algumas gotas de sangue começam a pingar sobre meus cabelos oleosos, sobre minha pele irritada, sobre todo o chão diante de mim. Um sangue vinagroso. De vez em quando, caem gotas de pus. Há aves mortas penduradas nas aves. Alguém as deixou ali. E fedem. Tanto as aves como quem as matou. O calor é absurdo.

Caminho como quem se destina à forca. Mereceria se o fosse. Sou culpado e admito. Mas talvez a névoa que me cerca e cerca a todos não deixa que minha culpa seja percebida. Aqueles ali, com tanta ou mais culpa do que eu, comem mariposas sob as árvores ressecadas. E as pessoas, não suportando mais aquele calor dos diabos, saem de suas casas, enlouquecidas, caóticas, vorazes, capengas, num fedor alucinante de suor e de excrementos. Junto, correm bandos e mais bandos de ratos e baratas. Algumas daquelas pessoas trazem rodelas de infecções na pele. Devem ser furúnculos. Fedem sob o calor, como merda cozida pelo sol. Os vapores que saem daquelas feridas devem ser contagiosos. Não sei, mas é o que imagino. E mais ratos e baratas, e também cachorros, saem pelas portas, pelas janelas, pelos telhados, observados atentamente por abutres exaustos no alto das torres.

Os abutres arrotam sem parar, percebo que seus abdomens estão dilatados. Mas esqueço dos abutres para observar algumas bonitas meninas esqueléticas que vejo passar. Realmente bonitas, olhos verdes como as mocas no dedinho da criança morta, mas não conseguem fechar suas bocas, literalmente. Não quero dizer que elas falam muito, quero dizer que elas não conseguem movimentar suas mandíbulas. Deve haver algum problema com elas. Estão sempre de boca aberta. O fedor que sinto deve ser mau-hálito. Não sei se meu ou delas.

Tenho saudade do tempo em que as florestas queimavam. Agora não há o que ser queimado. De tanta saudade, agora comecei a queimar flores. Rosas, camélias, tulipas, gerânios, violetas, lírios, eu as queimo todas. É bom o cheiro da sua fumaça. Bem melhor que o fedor das ruas. É o único perfume possível de ser sentido, a névoa da queima das flores. Lamento que sejam tão passageiras. As flores passam tão rápido. E lá vão elas, cinzentas em forma de fumaça para os ouvidos dos anjos.

Devo agora descansar um pouco. Sento-me na escadaria de um bar. O fedor de mijo é insuportável. Mas já estou acostumado. Peço cachaça bagaceira. A fétida névoa da noite nessas horas finais do dia já começa a envolver tudo. Fica mais densa, mais úmida, mais pesada, quase pegajosa. Parece que o fedor é exalado até mesmo pelas luzes doentias da cidade. Da cidade agonizando em seu sono suarento.

Toda a sensibilidade do mundo apodrece ao meu redor.

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Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 28/07/2013
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