Evelin, a Sedutora
Sevilha, 1845
Passava das oito da manhã quando monsenhor Edward acordou.
O dia anterior havia sido muito cansativo, pois foram muitos os interrogatórios que tivera que presidir. O último deles foi o de um camponês acusado de pacto com as trevas, deixara-o extremamente esgotado. Fora difícil fazer o homem confessar, mas com o método certo, Edward acabara convencendo-o.
Porem não conseguira misericórdia para o seu crime. O homem seria executado na fogueira dali a alguns dias.
Inspirou profundamente o ar da manhã e deixou que o sol atingisse seu rosto. Passava a maior parte do tempo no calabouço interrogando os prisioneiros e sua vista já começava a se resentir da luz solar. Esperou mais alguns minutos até se levantar. Em breve teria que acompanhar o arcebispo de Madri em uma importante visita ás masmorras de Sevilha.
Havia terminado de se vestir quando ouviu suaves batidas na porta, que se abriu devagarzinho. Um rapaz entrou e falou baixinho.
— Sou eu, monsenhor, Otavio. Não queria acorda-lo. Mais é que estar ai a senhorita Evelin...
Edward não lhe deu tempo de terminar e respondeu apressadamente:
— Diga-lhe que me espere na antiga capela.
Otavio saiu sem nada dizer. Era apenas um menino de seus dezesseis anos, salvo pelo bondoso monsenhor. Os pais morreram quando ele contava apenas três anos, vitimas do Santo Oficio, acusados de bruxaria.
A passos rápido, Otavio correu a avisar Evelin.
Não precisava ser muito esperto para perceber a forte atração que ele sentia por Evelin. Seus olhos de admiração procuravam a todo instante pelo olhar faceiro dela. A juventude tem mesmo este fervor... Otavio estava apaixonado pela bela moça. Pensava nela a todo instante, e ao mesmo tempo que a cobiçava de longe,rezava em pensamento para que o monsenhor não suspeitasse... Se ao menos desconfiasse de tal atração, seria capaz de leva-lo a fogueira como fez com os seus pais.
Em silencio abriu a pesada porta da capela para que Evelin pudesse passar e tornou a fecha-la.
A moça esperou cerca de vinte minutos. Ali sozinha frente a imagens velhas e descascadas. Fitou o semblante suave da virgem Maria, ajoelhada aos pés da cruz. De súbito desviou o rosto. Não queria nada com santos e virgens.
Monsenhor Edward entrou apresado e Evelin logo se jogou em seus braços, beijando-o com impetuosidade. Edward correspondeu ao beijo sem muito ardor, mais ainda assim, amaram-se ali mesmo, no chão, sob os olhos marejados da Virgem.
O jovem Otavio conhecia cada centímetro daquele lugar... Conhecia até mesmo as frestas e os buracos estreitos nas paredes... E foi por um deles que ele novamente testemunhou o árduo romance da moça com o monsenhor.
Depois que terminaram, Evelin se vestiu ás pressas, de costa para a imagem e esperou que ele falasse:
— Lamento tê-la feito vir aqui, mais espero a visita do arcebispo de Madri e não pude me ausentar. Tenho uma nova missão para você.
— De quem se trata? - Perguntou ela sem muito interesse.
— Dom Fernão Batista Figueiredo.
— O comerciante de sedas?
— Esse mesmo. Desconfio que ele esta envolvido sexualmente com uma descendente de bruxa.
— E o que quer que eu faça?
— O de sempre. Não será muito difícil. Ouvir dizer que dom Fernão, apesar de apaixonado pela tal bruxa, tem uma queda especial por mulheres bonitas.
— E a quanto moça? A tal descendente de bruxa. O que farei com ela?
— Quero-a também. Prendendo-o não será difícil chegar até ela. Afinal, foi ela quem o seduziu com suas heresias.
Edward se retirou e Evelin esperou cerca de cinco minutos para sair também.
Do lado de fora, oculto atrás do muro, Otavio já a aguardava. Depois que ela saiu foi trancar a porta. Do alto das escadas ficou vendo-a afastar-se, pensando em como seria bom poder estar com ela, fazer com ela as coisas que o monsenhor fazia...
Já em sua casa Evelin se pôs a maquinar: O que faria para se aproximar de dom Fernão?
Evelin era o que se podia chamar de espiã. Amante de Edward Navarro, cardeal inquisidor do Santo Oficio, tornou-se sua delatora oficial. Monsenhor Edward como era conhecido pelos fieis, era ardoroso defensor da fé católica e não permitia que ninguém a ela se opusesse.
Para prender os hereges, Edward contava com os chamados delatores da fé. Qualquer um poderia denunciar um herege.
Os hereges em sua maioria eram pessoas muitas ricas, cujos bens eram logo confiscado pela igreja. Como premio ao delator, cabia-lhe uma pequena parte dos bens do acusado. E era exatamente isso que Evelin fazia.
Dona de uma beleza exótica, alem de profunda conhecedora de magia negra, era-lhe muito fácil atrair e seduzir os suspeitos indicados por Edward, deles obtendo as duvidosas confissões que servia de base á instauração dos processos.
Evelin enriqueceu depressa. Juntou uma boa soma em ouro e joias e comprou uma bonita casa nos arredores de Sevilha. Ali vivia em companhia de duas escravas negras, compradas de um mercador português.
Entrando em casa foi direto ao porão. Era ali que se dedicava a arte de magia. Havia vidros com líquidos estranhos, raízes de plantas desconhecidas, caixas com insetos e aranhas, sangue de diversos animais engarrafados em pequenos frascos que dividia espaço em uma pequena estante com livros. Livros estes repletos de volumes com magia negra e conhecimento ocultos.
Juntou alguns ingredientes, pegou um livro de capa vermelha, escreveu o nome completo de dom Fernão e foi para a floresta, onde costumava praticar seu ocultismo.
Sentado em um grosso galho de uma arvore, Otavio via Evelin em volta de suas magias... Não era a primeira vez que ele via aquela cena. Só esperava o momento certo para tirar proveito daquela valiosa informação.
Fernão tinha acabado de jantar quando a escrava da casa se aproximou e entregou-lhe uma carta, o envelope não continha nenhum brasão que indicasse de quem seria. Depois de dispensar a serviçal, abriu o envelope e se deparou com um convite para encontrar com uma certa moça na taberna, a carta dizia que era de suma importância que não faltasse.
Ainda era cedo quando adentrou as portas de vai e vem da taberna. Se encaminhou até o balcão e perguntou a um rapazinho que servia as bebidas.
— Onde eu posso encontrar a senhorita de nome Evelin?
Com um gesto de cabeça ele indicou onde Evelin estava sentada.
O suspeito aproximou-se com certa cautela e perguntou com visível admiração:
— Senhorita Evelin?
— Sim. – consentiu a com voz aguçada
— Meu nome é Fernão... – se revelou enquanto se aproximava – Vim porque me convidou.
Com um gesto de mão ela o fez parar:
— Aqui não. Siga-me.
Evelin discretamente cobriu de prata a mão do jovem balconista e seguiu com Fernão pela porta dos fundos, onde uma carruagem já os esperava.
— Onde vamos?
Ela sorriu com discrição e respondeu com leve sorriso:
— Vamos até minha casa. Lá é mais discreto.
Secretamente, como de costume, o tribunal do Santo Ofício realizava outro ato de fé, encerrando mais um dos muitos processos de heresia. O acusado não ousava levantar os olhos para seus inquisidores. Já quase não tinha consciência de sí mesmo, tamanho o estado de flagelo em que foram colocados seu corpo e sua mente. A morte naquele momento lhe seria uma bênção.
— Senhor Julião Ortis, - começara então monsenhor Edward - não é verdade que o senhor, possuído pelo demônio, ousou violar a irmã Maria?
O pobre homem nada respondeu.
— Pois foi isso mesmo que aconteceu. Como podem ver, tenho aqui um documento assinado pelo acusado, reconhecendo-se presa de espíritos infernais, que dele se utilizaram para violar a castidade de irmã Maria, uma freira cuja vida foi dedicada ao Nosso Senhor Jesus Cristo.
Exibira o papel aos outros padres que leram atentamente passando-o de mão em mão.
— Tenho neste documento o resultado do laudo do medico Silvério, atestando a violação do corpo da freira. Freira esta expulsa do nosso convento.
Imediatamente o homem foi levado para o lugar da execução. Começou a chorar, sentindo a iminência da morte. Embora ainda sem entender o que havia feito para merecer tal castigo, pois a própria freira consentiu com o ato.
Foi amarrado ao poste e os carrascos, com as tochas na mão, atearam fogo as palhas cuidadosamente postas a seus pés. No mesmo instante as chamas o consumiram, e ouviram-se seus gritos agudos e desesperados.
O inquisidor-geral estava muito satisfeito. Monsenhor Edward foi parabenizado pelo excelente trabalho. Obterá a confissão do homem após longas sessões de tortura.
— É notável sua extrema dedicação para com nossa igreja. Esta de parabéns monsenhor! - Falara o inquisidor geral - Em breve será consagrado bispo. E quanto ao caso de Don Fernão?
— Não se preocupe senhor. De hoje para amanhã alguém o denunciara e ele será levado a julgamento. Só preciso disto para condena-lo a prisão.
A denuncia de Evelin foi naquele mesmo dia. Baseada em uma conversa que tivera na noite anterior com dom Fernão, depois de uma longa orgia e muita bebida, o homem acabara confessando que estava apaixonado por uma mulher que tinha o dom da cura através de rezas. Isso bastou para um mandado de busca e apreensão dos bens de dom Fernão.
Naquela mesma noite enquanto já se preparava para deitar, escutou fortes batidas na porta.
— Mais o que é que estar acontecendo aqui?
No mesmo instante, foi agarrado por dois homens, que o prendiam com força, enquanto um terceiro desenrolava um pergaminho e começava a ler.
— Por ordem de sua eminência, o cardeal Edward Navarro, inquisidor do Tribunal do Santo Ofício de Sevilha, fica dom Fernão Batista Figueiredo, neste dia 15 de julho de l495, intimado a coparecer a sua presença no tribunal, onde será recolhido a masmorra por tempo indeterminado, até que sejam apurados os fatos da mais alta heresia contra ele denunciado...
De nada adiantaram suas suplicas. Fernão foi arrastado à masmorra, sem nem saber do que estava sendo acusado.
Somente dois dias depois, quando já havia sido submetido a todo sorte de tortura, foi que Edward apareceu.
— Monsenhor, - suplicou humilde - porque estão fazendo isso comigo? O que foi que eu fiz?
— Don Fernão - declarou solene - esta sendo acusado da mais alta heresia por se envolver com uma mulher que adora práticas contrárias aos costumes da fé da igreja. É de nosso conhecimento que sua noiva Jessica Vadez, é filha de um mouro nojento. A limpeza de sangue é necessária e não podemos permitir que a descendência Moura continue a espalhar seu sangue profano por nossa terra santificada.
Apavorado, Dom Fernão começa a chorar e gemer em desespero.
— Onde esta Jessica? O que fizeram com Jessica? - pôs-se a gritar.
Na mesma hora sentiu uma insana dor aguda nos pés e soltou um grito de pavor. O carrasco acabara de queimar a sola de seus pés, causando-lhe imenso sofrimento.
— Não adianta gritar, - respondeu monsenhor em sua calmaria - Jessica não pode ouvi-lo de onde está. Porque não confessa logo seu crime, e como Jessica já o fez, e acaba logo com o seu suplício?
— Jessica confessou?
— É claro. Arrependeu-se e quis salvar sua alma. Porque não faz o mesmo?
— Não tenho o que confessar, pois nada fiz!
— Não é o que parece. A denuncia contra você foi bastante clara.
— Que denuncia? Quem fez essa denuncia?
— Isso não importa. Seus atos foram testemunhados por alguém que veio ás mesas Inquisidoras e o denunciou. É o quanto basta para mim.
— Foi Evelin não foi? - tornou com raiva. - Aquela vadia, meretriz, ordinária! Como se atreve a dar ouvidos a uma vadia feito Evelin, em lugar de acreditar em um nobre honrado como eu?
— A palavra de um nobre nada vale se fere as leis de Deus.
Evelin sentiu imensa alegria ao ver Edward descer da carruagem, diante de sua casa. Estava ansiosa pela recompensa que receberia por denunciar Fernão.
— Agiu muito bem com dom Fernão Evelin, - elogiou ele, após abraça-la - Sua confissão é questão de tempo.
— E a tal Jessica? Também já confessou?
— Sim, sua execução será amanhã.
O casal passou a tarde se amando. Já anoitecia quando Edward subiu em sua charrete e partiu de volta a igreja. Ao longe, Otavio o observava se afastar.
Evelin ainda sentia o cheiro da colônia do monsenhor quando uma escrava entrou no quarto anunciando.
— Minha senhora, tem um jovem a sua procura, ele diz que veio da parte do monsenhor Edward.
Evelin não podia entender, quem viria procura-la em nome de Edward se ele acabara de sair de lá? Sem nada responder a escrava, colocou um roupão por cima da fina camisola que usava e desceu,
— Otavio? - Espantou-se ao ver o menino que foi criado por Edward ali, a sua procura.
— Desculpe senhorita, preciso lhe falar.
Dispensando as escravas, ela conduziu o menino até uma grande biblioteca que ela mantinha só por luxo.
— Pois pode falar - disse assim que entrou e sentou-se atrás de uma escrivaninha, enquanto Otavio continuava de pé com a cabeça baixa.
— Eu sei de suas magias senhorita. Testemunhei todo seu misticismo...
Evelin sentiu o chão abrir sobre seus pés, mais se manteve calma
— Do que diabos você esta falando seu moleque atrevido?
— Não adianta a senhora negar, por muitas vezes eu a vi na floresta fazendo suas magias.
Sem querer prolongar aquela conversa, ela foi direto ao assunto
— O que você quer? Sim, porque com certeza se fosse me denunciar já o teria feito a Edward.
— Eu quero a senhora. - falou sem dar tempo de arrepender-se.
Depois de uma gargalhada que fez eco nas altas paredes da biblioteca, Evelin falou
— Tá certo Otavio, você vai ter a honra de me possuir. Mas qual a garantia de que você não continuaria a me chantagear?
— Minha vida, porque saindo daqui você me denunciara ao monsenhor e ele mandará me executar.
— E você acha que uma única noite comigo valera sua vida?
— Minha vida acabou no dia em que meus pais foram queimados na fogueira, por um crime que não cometeram. Viver para servir aos caprichos do monsenhor não é uma vida.
Já era madrugada quando Otavio saiu da casa de Evelin. Ele sabia que sua vida acabaria ali, mais tinha a certeza que não seria só a dele.
Dois dias depois, Otavio foi encontrado enforcado no velho telhado da capela abandonada.
Tinha-se passado mais de dois meses desde do ocorrido com Otavio. Evelin ainda sentia nojo ao lembrar do moleque atrevido em cima dela. Depois de tomar o café da manhã, estava se arrumando para ir até o centro de Servilha para fazer algumas compras, quando ouviu batidas na porta. Sem da maior importância, continuou com o que estava fazendo quando sua escrava entrou afobada e sem ter tempo de nada falar, ela viu adentrar em seu quarto três soldados da igreja. E como acontecia com todas as pessoas denunciada por heresia, depois de ouvir um guarda ler o pergaminho foi conduzida ao tribunal.
Ao se arrastada sobre protestos pelos guardas pela longa escadaria de sua casa, seu sangue gelou quando viu a grande e pesada porta do porão de sua casa aberta e alguns guardas entrando. Naquele instante ela soube que estaria perdida, nem mesmo Edward poderia lhe salvar. Mais quem poderia ter lhe denunciado?
Quando monsenhor Edward soube da prisão de Evelin, pensou que fosse explodir. Estava voltando do calabouço após uma longa sessão de tortura, quando viu os soldados entrando com ela. Na mesma hora quis ir ao seu encontro, mas a prudência o fez recuar.
Evelin vinha de cabeça baixa, amarrada e muito segura, e não o vira do outro lado. Naquele momento Edward não poderia descrever a dor que sentiu. Mais estava atado a sua posição de inquisidor e não poderia agir contra a instituição. Fingindo nada ter visto, foi direto a seus aposentos tentar se recompor, para depois fazer alguma coisa.
Estava lavando o rosto em uma bacia com água quando sua porta foi aberta, e um dos padre entrou, já lhe informando.
— Edward, acabou de chegar uma carta de Roma, onde o santo Papa pede sua transferência imediata para uma cidadezinha ao sul de Madri. Você foi denunciado por vários crimes, dentre eles a pratica de julgamento injusto, desvio de bens da igreja, manter uma meretriz acusada de bruxaria como sua concubina e manter relações sexual aqui dentro da santa igreja. E dentre destes, o pior de todos: Acusado de matar seu protegido Otavio, motivado por ciúmes...
Ele ainda levou alguns minutos até similar todas aquelas acusações. Mas depois de ler a carta vinda de Roma, só restava baixar a cabeça e aceitar a transferência, esquecendo de uma vez por todas o sonho que um dia teve de ser bispo da santa igreja e quem sabe, até fazer parte do clero do Papa.
Tinha que agradecer por terem poupado sua vida. O pior de tudo era não poder fazer nada por Evelin, desconhecia suas praticas de bruxarias, mas também nunca tinha procurado saber como ela tinha conseguido as confissões dos muitos herege que levou até a mesa de julgamento.
— Posso ao menos saber quem fez todas essas denuncias? - Perguntou enquanto se arrumava para sua longa viagem.
— Otavio enviou uma carta ao santo Papa, uma semana antes de sua morte...
Edward não precisava ouvir mais nada. Tinha subestimado o menino que ele criou desde os três anos de idade.
Evelin foi queimada viva dois dias depois da transferência de Monsenhor Edward. Seis anos depois de atuar como padre na cidade pequena, Edward foi indicado como Bispo pelo próprio Papa.