INVASORES DE CORPOS

Daniel deslisava levemente a ponta dos dedos pelas costas da namorada. Era tarde de um domingo muito frio e chuvoso, mas seu coração estava quente. Não tão quente quanto o amor que fizeram uma hora antes, com unhadas e mordidas, mas quente mesmo assim. Certamente a amava, tanto quanto era correspondido. Lá fora, uma garoinha fina, penetrante, convidava a cidade à dormir.

Ela, uma loira baixa e magra, estava deitada de bruços, a boca carnuda enterrada na fronha, com um leve sorriso. Não possuía sequer marcas de sol, as costas tão brancas que pareciam continuação das nádegas, brancura só quebrada por duas tatuagens: uma no ombro, uma borboleta colorida; e outra na linha da cintura, um charmoso tribal imitando chamas, vermelha e preta. Dormia.

Com a outra mão, Dani, recostado no encosto almofadado da cama, segurava sua outra paixão: um livro. Lia O Iluminado, e Dany ( o garoto), acabara de entrar no quarto 217, enquanto Wendy dormia e Jack lia sobre o Overlook, no porão.

PLIC! - escutou um barulhinho , como uma gota grossa, batendo no vidro da janela, que, embora aberta, não iluminava o bastante para incomodar Ana.

PLIC! PLIC! - Daniel, curioso, levanta-se e vai até a janela. Vê quatro bichinhos, do tamanho de um besourinho, andando inocentemente pelo vidro embaçado. São vermelho metálicos, quase roxos, e pareciam ter sido pintados com tinta spray brilhante, como joaninhas crescidas fantasiadas para um baile de carnaval. As cores brilhantes contrastavam com as nuvens chumbo ao fundo. Vê alguns zigezagueando no ar, como que procurando luzes ou lugar para pousar.

Fica olhando os bichinhos vagando, maravilhado. Poucos insetos conseguiam chegar ao décimo segundo andar, mas esses pareciam vir de cima, das nuvens. Na rua deserta, silenciosa, uma senhora gorda com um sobretudo e cabelos vermelhos espantava os animaizinhos, enquanto corria sem nenhuma coordenação. Ele sorri, achando engraçado ela ter medo de coisinhas tão pequenas e inofensivas. Um cachorro sarnento se coçava desesperadamente mais adiante.

A curiosidade tomou-o de sopetão, e ele resolveu abrir a janela (só um pouquinho, pensou) e tomar alguns deles nas mãos. Abriu-a e , além dos dois que conseguiu pegar, entraram mais três, voando erráticos; um caiu no chão, com as patas apontadas para cima, movendo-as desesperadamente para voltar á posição original, e outros dois no lençol de seda branco, no seu lado da cama, parecendo pequenos brincos jogados ao acaso. Fechou o vidro, para a casa não ser invadida.

Ele olhava, encabulado, enquanto aquelas coisinhas incríveis faziam cócegas na palma de sua mãos com as pequenas patinhas. De vez em quando, levava uma pequena picadinha que não chegava a doer, mas arrepiava.

Vocês brilham no escuro, seus pestinhas? - perguntou, intrigado. Juntou as duas mãos em conchas, uma sobre a outra, aprisionando-os, deixando apenas uma brecha entre o polegar direito e o indicador, e enfiou o buraquinho no olho, tapando o outro, para vê-los no escuro.

Então ele viu o brilho. Não o brilho simpático dos bichinhos, mas um enorme clarão, leitoso, como uma explosão, em seu olho, quando um deles penetrou pupila adentro. Um show de fogos inaugurou seu sofimentoolho,seguido da negra escuridão da noite. Estava parcialmente cego.

AAAAhhh!!! FILHO DA P@&$!!!!! - Daniel berrava de dor, enquanto sentia o invasor vagando pelo globo ocular, roendo os nervos óticos. Meteu as duas mãos sobre os olhos urrando - PORRAA!!!

O outro bicho, pressionado entre as mãos, atingiu-o com uma ferroada terrível, e penetrou na palma da mão esquerda. Ele, urrando de dor e segurando o olho, de onde um líquido branco e pastoso( feito pus) escorria entre os dedos, deu um passo para trás, e pisou no terceiro besouro. Uma nova agulhada no peito do pé e o diabinho estava também dentro de seu corpo, levantando a pele por onde andava. Pulando de um pé só, caiu de costas na cama. Os outros dois cravaram-lhe os ferrões e rasgaram-lhe a pele da nádega direita e das costas, no omoplata.

Agora, tomado de dor, ele urra e chora, os bichos rasgando-lhe a carne, e deixando um vergão de sangue por onde passam. A pele esticava-se sobre eles e voltava, e os caroços eram claros em seu corpo, vagando devagar e sem rumo.

A mulher acorda com os berros, e vê Daniel se contorcendo como se dez demônios o possuíssem de uma vez.

-Tire eles de mim!!! Pelo amor de Deus, AAAGGHH!!!Tira essas porras de mim!!!!

Mil agulhas varavam seu corpo, que se retorcia todo, mas não eram suaves, como as de acupuntura, não...Eram as desgraçadas das agulhas de tricô, e com as fisgas ao contrário!

Ela vê as mãos no olho, o líquido escorrendo, e as pequenas bolas vasculhando seu corpo. O terror toma conta dela, e um pingo de voz sai rasgando de sua traqueia travada:

- O quê? Como?

-A FACA!!! NA COZINHAA!!! PEGA A FACA !!! AHH, COMO DÓI!!!

Enquanto a loira corre para a cozinha, os diabos vagam pelo corpo de Daniel. O primeiro sai do olho, sobe entre as pestanas e vai para testa, que se move como num filme B; o do pé atinge os tendões do calcanhar e sobe por eles rumo á panturrilha, fazendo a perna tremer incontrolavelmente. O das nádegas penetra entre as coxas, não tendo idéia da dor que causará daí a instantes; o da mão esquerda cirula perdido entre a palma e as costas, como procurando um caminho, e o das costas vaga até encontrar a espinha, onde pára.

O rapaz consegue dominar a dor horrível, insana, e senta-se. Ana volta com uma faca nas mãos, e aponta o cabo para ele.

-Faca de serrrinha não, pô!!! Você quer me foder!!!Pega a de porcelana, rápido! E traga algo para matar esses desgraçados!!

- Não grita assim comigo!! - a loira faz beicinho, magoada

Daniel lança-lhe um olhar tão cortante com o único olho bom, que ela se sente como uma criança flagrada pelo pai fazendo uma merda, das bem grandes.Volta á cozinha, e pega a faca de porcelana (a maior disponível), e um martelo para carnes. Passa a faca para o rapaz, que sente cada diabinho rasgando sua carne como ferpas de bambú. Tomado pela dor, ele analiza a situação o melhor que pode.

Mete a faca na testa, e o sangue jorra como se ele usasse a coroa de Cristo, se misturando ao líquido óptico. o bicho aponta o corpo no corte, tenta voltar mas o rapaz enterra a faca debaixo da pele, alcança-o e arremessa longe. Ana martela-o rapidamente, só parando quando os pedacinhos do bicho ficam espalhados entre os dentes do martelo.

O sangue entra no olho bom do rapaz e o cega. Ele berra para Ana acabar o serviço, e passa para ela a faca branca e vermelha.

- PEGA ELES!! CORTAAA!!!

Ela olha para a mão esquerda, e o bicho está no pulso, do lado interno, entre os tendões. Ela segura a mão do namorado e se prepara:

- AÌ NÃOOO!!! VAI CORTAR MEU PULSO, CARALHOOO! PEGA O DA PERNA!! O DA PERNA!!! DEEUUSS, ME AJUDAAA!!!

"O da perna" já estava na panturrilha, e, pior, estava debaixo do músculo, o que exigiu que Ana abrisse um corte transversal que mais parecia o Grand Cânion. O bichinho, cheio de carne, saltou voluntariamente para o chão, e Ana começou uma nova seção de marteladas.

O terceiro, com certeza um conhecedor da anatomia masculina, passou por entre as pernas e, chegando á virilha, encontrou dois carocinhos para brincar.. Daniel perdeu os sentidos por alguns instantes,tamanha a dor que sentiu. Uma bolada seria massagem, a essa hora. Esquecendo os outros, juntou as duas mãos entre as pernas e virou o único olho bom até ficar totalmente branco, uivando com uma voz fina irreconhecível.

Enfrentava a decisão mais difícil da vida - sua masculinidade, ou cortar a dor excuciante - optou pela segunda. Tomou a faca das mãos de Ana, e , em um golpe, jogou ao chão a possilidade de ser pai. Agora chorava como um menininho, não pela dor física, mas pela emocional.

Com o corpo cheio de adrenalina, mal sentiu quando Ana rasgou a pele de seu ombro, encontrando o quarto demônio vermelho. Foi um corte pequeno, ela já havia"pegado o jeito".

Seu olho já vazara praticamente todo, era um vazio negro dentro do cânio, coberto pela pupila murcha; sua testa parecia a de Jesus deitado no manto sagrado, a panturrilha ganhara uma boca própria para gritar suas dores, e o que restara de seu sexo estava misturado aos pelos e sangue, inerte como um guerreiro transpassado por uma lança.

Mas havia o último, o desgraçado que estava alojado na espinha...E, depois, o que?Um uísque ( seu pai convencera-lhe que um uísque curava a maioria das dores, físicas e psicológicas), hospital, pontos? E quanto ás suas bolas? Olhava para elas, quase cego, jogadas ali, no chão, marteladas como carne de segunda, toda sua hombridade misturada com pontinhos vermelho metálicos, parecidos com purpurina...

Sentiu uma pontada que o fez ficar arrepiado dos pés á cabeça, chamando-o á dura e cruel realidade. Era o último serzinho que rastejava por suas entranhas. Deitou de costas, dizendo simplesmente: quarta costela!,e Ana rasgou-lhe a pele, rente á espinha. Ao tentar pegar o invasor, no entanto, ele cravou-se no osso, abriu caminho e passou por entre as costelas, chegando dentro da caixa toráxica do rapaz.

Daniel percebeu, aterrorizado, a real condição da situação:risco de vida. Enquanto sentia o animal passeando por suas entranhas, berrava de dor, pedindo por clemência. O sofrimento, a partir daí, duraria uns dez minutos, mas Daniel juraria que eram dez séculos. Lembrou-se dos pais, desprotegidos na casa da fazenda, em Campos do Jordão, e no irmão, em viagem á Europa, esperando que a praga não chegasse até eles.

Ele sentia o canibal mirim abaixo do estômago, no entanto não sabia qual seria o primeiro órgão a ser atingido; mas imaginava o último. Berrou de dor, rolando pela cama. Caiu no chão, sem sentir , e continuou a rolar: o bicho alcançara o rim, e a dor dos testículos passou a ser desprezível. Daniel mijou e evacuou nas calças, e o cheiro de sangue misturou-se ao de urina e fezes, pintando o quadro completo do sofrimento a que se sujeitava.

Ana cortou-lhe a barriga, mas ele não conseguia ficar parado, dobrava-se sobre si mesmo, chorando.

- ME MATA, PELO AMOR DE DEUS, ANA!!! ME MATAAA!!! AAAAHHHH!!!!!

O animalzinho, como pressenindo o perigo, saiu do rim e começou a subir. Passou pelo estômago, subindo pelo canal digestivo. Entrando novamente pelo corpo, perfurou o pulmão esquerdo, e Daniel começou a tossir, sem ar. Cada tosse jogava jatos de sangue nos lençõis e na parede branca, impecável. Ana sentou-se e colocou sua cabeça em seu colo, aos prantos. Ele não tinha mais o domínio de seu corpo, e quando Ana colocou as mãos ensanguentadas nas mãos deles, elas agarraram as de Ana, num ato involuntário, causado por puro reflexo. O animalzinho chegou ao coração, fazendo-o explodir como uma pequena granada, inundando o olho do rapaz de sangue e desespero. Morreu dizendo á garota o quanto a amava.

Ana, desesperada, ainda tentou lacrar a casa, para sobreviver um ou dois dias, mas, ao abrir a porta do banheiro, descobriu que Daniel, como sempre, esquecera de fechar a janelinha do box....