Pequenos Cogumelos Negros - 16 MINICONTOS DE TERROR

1

Vingança

Acordou na noite, mas não se mexeu na cama. Viu algo se mover no quarto escuro – Paranóia? Neurose? – A vela apagara-se já há tempos, restava só o talo e um nada de pavio. Outra vez movimento em algum lugar. "Quem é?, o que quer?" Sentiu no rosto o vento quente. Tentava fingir dormir, mas tremia. Outra dança de sombra na parede e sentiu o pesar de uma mão quente contra o rosto. "É você?", sem resposta, agora era só sombra. A mão ainda contra a face. "Desculpe-me", insistiu. "Não fiz por mal". Não importava se foi por mal ou não, agora era só sombra. E a mão contra a sua face desceu até o pescoço, apertou. Ele arregalou os olhos – Dor! Sufocação! – E depois de feito o serviço, a sombra partiu. Era justo, vida por vida, era justo.

2

Fuga

As cinzas flanavam no ar como flocos de neve suja. Ele olhou para trás pela última vez, ouviu os passos que se aproximavam depressa. A lua era uma esfera opaca no céu, fosca como a escuridão atrás dele. Voltou-se outra vez para frente. Embora suas mãos tremessem, precisava criar coragem logo, ou a dona dos passos lhe alcançaria e o faria voltar atrás. Ela sempre conseguia isso. Flocos caíam sobre sua face e lhe queimavam os poros. A silhueta já se formava na penumbra, os contornos cada vez mais nítidos à medida que se achegava. Não queria que o alcançasse, que o fizesse voltar atrás, não desta vez.

"Pare, por favor..." a silhueta implorava.

Não! Não! Se a obedecesse agora nada nunca mudaria! Ela não podia mandar nele para sempre!

Jogou-se.

Quando ela chegou, viu apenas o corpo sendo levado pela correnteza do rio sujo. A ponte tinha mais de cem metros de altura.

3

Trevas

Os olhos ardiam tanto que preferia arrancá-los a mantê-los abertos, mas não podia contrariar o médico. Deitada na cama macia e cercada de jóias e tudo mais, porém só. A vida toda lutou pensando no futuro. E agora eis o seu futuro: uma cama fria e objetos que no fim não serviam para nada, não eram nada. Era só ela e a vela, ela e a chama, as únicas vidas naquele quarto, respirando, ardendo. O doutor dissera que se a luz se apagasse ela não suportaria, a febre lhe consumiria por completo. (Ou seria a solidão?). Mas então por que ele não acendeu o abajur? Queria vê-la fenecer como todo aquele lugar? Saber que tudo o que ela tinha não passará de comida de traça? Ela mesma não passará. Todos queriam. Assim se resumia a grande empresária, a que faltou a reunião escolar da filha por estar ocupada demais no trabalho, filha esta, fruto de um casamento fracassado, pois não tinha tempo para o marido.

Talvez os amasse – que importa?

Fechou os olhos – que importa?

A vela se apagou.

4

Latrocínio

Já não restava mais um canto azul naquela piscina. Ele sentado na beirada observava tudo. Faca na mão, lâmina suja, sorriso no rosto. O corpo boiava de costas para o sol quente. Quem mandou não dar o dinheiro?, pensou. O sangue ainda fluía do cadáver obeso. A água já rubra, podre. Ele se perguntava quanto tempo demoraria até que as distantes sirenes lhe alcançassem. Não seria muito, o berro estridente cada vez maior, mais próximo. Ele olhava para o corpo na água suja e a gargalhada veio com o pensamento: Onde essa gorda guardava tanto sangue?

5

A Moeda e O Brinquedo

As crianças em roda riam enquanto brincavam. Um mostrou o brinquedo novo que achou escondido em casa, outro a moeda que ganhou para comprar doce. Logo veio a brilhante ideia: que tal lançar a moeda e quem ganhar brinca primeiro? Um jogou a moeda para o alto e outro a aparou na mão e a fechou. Todos apreensivos na roda. A mão abriu – Coroa! Ganhei! Ganhei! – Lhe entregaram o brinquedo e ele o exibiu para todos os amigos, orgulhoso. Mas para que servia aquilo ali embaixo? Apertou. Bang! Todos correram assustados. Menos o vencedor do jogo, e seu amiguinho, estirado no chão, com a moeda entre os dedos. Por horas ficou ali, tentando entender para que seu pai guardava um brinquedo tão perigoso.

6

Efeito

A fileira de dominós ia desde as mãos dela até a manivela que engatilhava a guilhotina. Ela estampava no rosto seu sorriso mais cruel, aquele que fazia irradiar os olhos de eucalipto. Tudo estava em suas mãos, como sempre. Se ela derrubasse a primeira peça estaria tudo perdido. Mas ele nem tentou implorar por misericórdia, sabia que ela não a teria. Sempre disse que só pedia por fidelidade, que ele podia fazer o que quisesse contanto que fosse fiel. E nem isso! Nem isso! Ele fechou os olhos. Pior ali era saber que não fora capaz de cumprir o único pedido que ela lhe fez. Não conseguiria viver com essa culpa. Ouviu ao longe o estalido seguido de vários outros. Ela havia derrubado a primeira peça.

7

Em Chamas

Os poros ardiam de tão abertos, já há muito que os pelos do braço se foram. Ele corria desvairadamente para lugar algum, braços para o ar, tentando se livrar da dor. Sentia a pele descamando, os olhos lacrimejando quente, o corpo sendo consumido sem piedade. Como fazer a dor parar? Onde encontrar alívio? Em volta gritos, ou seriam zumbidos? Será que ainda tinha orelhas? Precisava de ar fresco, precisava acabar logo com aquela aflição. Subiu as escadas antes que elas derretessem, mas escadas derretem? Seu cérebro ainda funcionava ou já não passava mais de cinzas? No alto da escada muitos outros corriam de um lado para o outro, ele era só mais um. Correu, as pernas borbulhando. Correu, os dedos do pé explodindo. Correu, e saltou do parapeito. Demorou quase meio minuto até que o corpo chegasse ao chão. E a dor acabou.

8

Assombração

Pra ler para a namorada à meia-luz.

Não olhe agora, querida, mas ele voltou. Está aí, no seu cangote. Não se mova, querida, ele é cego, mas sente seu cheiro, o som da sua respiração. As garras compridas estão quase tocando seus ombros. Não se vire, querida, você não vai querer ver o rosto dele, é escabroso. Não tenha medo, querida, ele se alimenta disso, e cresce como uma nuvem sombria. Não diga nada, querida, eu te peço por favor, se o fizer, ele lhe devora com aqueles dentes negros e afiados. Querida, ele é a pior coisa que já vi, e está à espreita, pronto para lhe atacar. Então não faça nada, nada, e talvez ele se vá...

9

Ar

Ele fechou a porta, ela ouviu o bater de trincas do lado de fora e os passos do sapato se afastando. Ele não voltaria para lhe libertar, era impiedoso, e aquela era uma morte higiênica, bem do jeito que ele gostava, sem ter que limpar nada depois, cara fresco, não podia ver sujeira. A garota recostou-se num canto, o ar se rarefazendo, tudo esquentando. E veio o desespero, podia enxergar o oxigênio se transformando em carbono, seu pulmão ardendo. Claustrofobia? Sufocação? Apertou as mãos no pescoço tão forte que a unha pressionava a carótida, o ar não entrava mais. Precisava respirar. Estirada, contorcia-se o quanto podia. Ele sabia que essa era a única maneira de lhe fazer mal, que tirar-lhe a liberdade era tirar-lhe a vida. Mas ela não morreria assim, não daria esse presente a ele. Cortou de vez a veia grossa no pescoço e o sangue jorrou. Quando ele viesse para pegar o corpo, teria muita coisa para limpar.

10

Tempos Modernos

Vampiro saiu no meio da noite, errante pelas ruas sujas. Mulher fumava, tabaco lhe fazia bem. Vampiro viu a silhueta no beco sombrio. Latões de lixo, ratos, baratas, podridão e Mulher. Achegou-se. Vampiro tomou dela o cigarro e tragou. Mulher sorriu. Vampiro perguntou quanto era. Mulher falou mixaria. Vampiro sorriu, tentou beijá-la. Mulher negou. Vampiro se irritou, forçou. Mulher tentou fugir, mas vampiro era forte. Mulher gritou. Vampiro a mordeu, voraz.

Dias depois, Vampiro morreu de HIV.

11

Amor a Primeira Vista

O disparo foi ensurdecedor. A bala fugiu do cano deixando para trás um rastro no ar. Quanto tempo demoraria até que chegasse nela? Ela olhou nos olhos do atirador, a única parte do seu rosto visível por baixo daquele capuz preto. Como achara lindos aqueles olhos! Queria tanto fugir da rota daquele tiro, ir até ele, arrancar aquele capuz e beija-lo. Mas não podia fazer isso, podia? A bala cada vez mais próxima, já podia ouvir o vento sendo rasgado pelo metal. Estava condenada à morte, era irremediável, só questão de tempo. Tempo... Tempo... Se tivesse um pouco mais dessa droga de tempo, poderia amá-lo, jogar tudo para o alto e fugir para longe com ele. Mas o relógio era cruel, assim como a bala que lhe atravessou o crânio e espalhou por todo o recinto seus miolos apaixonados.

12

Uma Lúgubre Canção

À meia-noite no cemitério, os mortos dançavam

...de cá para lá...

...de lá para cá...

Na infindável valsa da alegria.

13

Bodas de Ouro

Ela arfava, cansada. Custou muito para pô-lo naquele poço, ele era gordo demais. Agora, pela primeira vez em todos esses anos, ela o olhava de cima. Ele acordou aos poucos, estava mesmo na hora do sedativo perder efeito. A viu sorrir. Um sorriso velho, cheio de rugas. Por que faz isso?, perguntou, ela ainda sorria. Por que tu fez tudo o que fez esse tempo todo, respondeu, ou era outra pergunta? Ambos ainda se olhando. Acima dela o céu nublado, abaixo dele o fundo seco do poço. Por que só agora?, ele voltou a indagar, desta vez sem palavras. Ela não se deu ao trabalho de falar, olhou em volta, para o chão árido do sertão. Sorriu. Arrancou a aliança do dedo e a jogou no buraco. Voltou para casa, com o cabo de vassoura que lhe servia de bengala. Olhou outra vez para o céu e, mentalmente, respondeu a pergunta do marido, que com certeza não sabia nadar: Porque finalmente nessa noite choverá.

14

Caso de Família

Ele olhou em volta, a procura de alguma alma piedosa, mas não havia nenhuma. Todos de preto, máscaras de ferro, luvas de aço, e fixos nele. Pobre dele. Era um senso comum: já estava velho demais, seria um estorvo aos filhos. Um dos encapuzados se aproximou com a faca de carne em riste. Seria um filho? Filha? Netinha? Os outros já se incomodavam com a demora. Ao longe, o cão latia, desvairado. Ele olhou bem para seu algoz, o brilho da lâmina lhe cegou por um segundo, mas não reclamou, isso não mudaria nada. A faca subiu, seus olhos se fecharam, alguém berrou para que fizessem aquilo depressa, e depois que lhe retalharam a cabeça, toda a roda se dissipou. Finalmente a reunião podia ir para seu ponto alto: a hora do peru.

15

Prova de Amor

Meus pulsos doem, o sangue que deles escorre desliza pelo meu corpo e me sinto sujo, mas tenho que agrada-la. Meu corpo se perde em convulsões doentias. O frio me queima por dentro, porém me esforço em ignorar tudo isso, só quero saber se ela está contente. Meus pés partidos em fissuras feitas com a faca que ela me deu. Mas ela nunca me machucou. Nunca tocou em mim. Eu fiz tudo isso, eu me sacrifiquei por ela. Porque a amo, e sei que é recíproco. Meus dedos tremem, não agüentam mais, porém não pararei, não agora que estou quase merecendo... Ela me dá o punhal, nunca o vi tão afiado, sei o que quer que eu faça. Pressiono-o contra meu peito. Olho para seu rosto. Ela assente e não tenho duvidas. A ponta afiada me perfura a pele e dilacera o pulmão. A boca se recheia de sangue e tripas. Levanto os olhos e vejo seu sorriso. Valeu a pena. Ela está orgulhosa de mim. Antes de morrer, recebo meu prêmio: o tão almejado beijo.

16

Pequenos Cogumelos Negros

Bastou engolir um para que o mundo conhecido sumisse, para que a febre me afligisse, para que tudo rodasse e rodasse. Veneno. Frutos do mal. Dois pequenos cogumelos. Bastou um deles escorregar garganta abaixo e eu já não era mais a mesma. Louca, insana, desvairada. Bastou no estômago um deles se chocar para que a minha alma morresse, flor de pétalas podres. Eu, com um desses pequenos frutos dentro de mim e outro na minha mão esperando para também ser devorado, já não sinto mais o amor, a dor, o arrependimento. Enquanto que no canto da sala meu marido morto espera que um dia eu lhe devolva seus olhos, devoro o segundo fruto. Acabou o almoço.

J Sant Ana
Enviado por J Sant Ana em 22/07/2013
Reeditado em 06/11/2013
Código do texto: T4398808
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