A Cidade da Morte: Cidade Fantasma

Amigos, desculpem pelo atraso. Normalmente posto os capítulos no domingo, mas por conta de problemas pessoais, só pude terminar hoje. Espero que gostem do penúltimo capítulo, que é também o texto número 100 deste humilde escritor, rsrs. Abraço a todos e boa leitura.

A Cidade da Morte: Cidade Fantasma

Uma curva acentuada para a esquerda, fazendo com que a camionete derrapasse de traseira em direção ao penhasco à direita. André estava transtornado. Greg, apesar de sua conduta questionável, era seu grande amigo – talvez até mais do que isso: um pai. Não estava plenamente convencido de sua morte. Viu o corpo dele sendo arrastado pela “Coisa'”, seus graves ferimentos e, se estivesse mais perto, veria sua palidez cadavérica; porém nem isso era suficiente para convencê-lo. Já vira ferimentos piores nas batalhas, companheiros com as tripas expostas e membros arrancados.

- Deise poderia cuidar dele... - pensou ele.

Guiava o veículo pela estreita estrada sem a perícia necessária. Nas curvas mais perigosas, não reduzia a velocidade, e nas retas, acelerava o carro sem se preocupar com que estava oculto à frente. Wallace estava preocupado com a segurança de todos. Jack apenas recarregava a arma sem expressar qualquer remorso pela perda do companheiro. Viajar pela noite naquela estrada era como se tivesse uma sentença de morte prestes a ser cumprida. Depois de mais uma curva para a esquerda, a estrada ficara mais estreita antes de uma grande descida. Uma simples derrapagem era suficiente para mandar todos para o outro mundo.

- Reduza, reduza! - gritou Wallace.

- Sei o que estou fazendo. Dirigia os jipes na região acidentada da Síria. Nunca provoquei um acidente – respondeu André, nostalgicamente.

- Não estamos na Síria. Se morrermos aqui, as garotas não terão chances nas mãos dos canibais.

- Assim como Greg não teve quando foi arrastado pela criatura?

- Droga, André, parece que você não viu como aquela coisa agia. Seriamos mortos caso tentássemos capturá-la. Greg foi egoísta. Tentou salvar a própria vida. Não vou dizer que ele mereceu, mas pelo menos não arriscaria a minha vida para salvá-lo.

- O rapaz tem razão – interrompeu Jack, apontando a arma para o retrovisor para testar a mira. - Não há mais nada a ser feito. Greg está morto, mas as garotas podem estar vivas. Prometi que cuidaria de Alice, e não medirei esforços para isso. Se quer mesmo voltar lá e salvar o que restou de Greg, pare o carro e deixe que eu dirija.

Todos fizeram silêncio. André reduziu a velocidade ao se aproximar da próxima curva, como forma de consentimento. Jack parecia mais lúcido que nunca, algo estranho para um homem de ideias um tanto absurdas. Lembrara do dia em que ele tentou provar que um dos moradores de uma pequena vila era na verdade um canibal infiltrado. Jack rasgou a manga da camiseta e fez um corte profundo deixando o sangue escorrer, em seguida, esfregou no nariz do homem, que prontamente torceu a cara em sinal de repugnância. Se não bastasse, escancarou a boca dele e enfiou o dedo sujo de sangue pela goela até que o homem vomitou no seu rosto. Apesar de a situação ter parecido mais trágica do que cômica, Alice, a doce e sensível Alice, deixou escapar um sorriso. Fora exatamente nesse dia que Wallace e Jack tiveram a primeira briga. Os dois se pagaram por longos minutos, como socos certeiros que provocaram muitos ferimentos. Deise cuidou de Wallace, e Alice tentou conter o sangramento do supercílio de Jack. Depois desse dia os dois jamais entraram em acordo.

Ao se aproximar do acampamento dos canibais o clima muda drasticamente. Uma neblina densa se formou na estrada e um cheiro de carne putrefata impregnou o ambiente. Era o local funéreo onde os lobos não uivam e as corujam preferiam o silêncio. Ossadas podiam ser vistas na beira da estrada, como forma de demarcar território. Duas motos bloqueavam o caminho, e André freou a camionete de súbito. Dois motoqueiros estavam armados com fuzis. Um deles cuspiu um chiclete enquanto o outro apontava a arma para o veículo.

- Saiam do carro, agora! - ordenou o motoqueiro sem camisa com uma tatuagem de mulher no braço.

Os três ficaram em silêncio. Jack deu sinal para André engatar a ré, mas Wallace respondeu com um gesto para que permanecessem nas mesmas posições. O clima estava bastante tenso. O local onde estavam parecia ainda mais escuro que o normal, como se estivessem no interior de uma caverna. As motos ficaram posicionadas logo à frente de uma curva bem fechada, com um curto escape que levava para o penhasco. Acelerar naquela situação para furar o bloqueio seria fatal. A única saída era se livrar dos dois motoqueiros... Mas como? Estavam armados. Embora Jack fosse um bom atirador, caso matasse um deles, receberia uma boa descarga de munição do outro. O primeiro tiro arrancaria o para-brisa e os outros destruiriam sua cabeça. André também tinha uma arma, mas seria necessário um ataque simultâneo para evitar um contra-ataque.

- Só vou dizer mais uma vez, saiam do carro. Caso contrario vamos matar as amigas de vocês.

Jack teve um sobressalto. André pediu para permanecerem quietos, porém Wallace não o obedeceu.

- O que vamos fazer? Se ficarmos aqui, vão matar as meninas, se sairmos, seremos mortos – disse ele.

- Vamos nos entregar – disse André – É a única garantia de que chegaremos vivos à colonia dos canibais.

- Prefiro a terceira opção: atacar – completou Jack, revisando a munição.

Atacar... Foi com essa atitude que Jack livrou Alice das mãos de uma gangue. Passividade nunca lhe foi uma característica, e não seria naquele momento. Perdera os pais quando ainda era criança. Uma quadrilha invadiu a sua casa no subúrbio e os manteve reféns por cerca de dois dias. Queriam o dinheiro que seu pai guardava sob o piso falso da cozinha. Um dos bandidos ficara impaciente e apontou a arma para sua mãe. Ele, então com seis anos, avançou contra o bandido e lhe aplicou uma mordida na perna. Levou uma coronhada na cabeça que o fez sangrar. Seu pai, enfurecido, tentou proteger o filho e levou um tiro na garganta. Para se vingar de Jack, o chefe da quadrilha executou sua mãe com um tiro na boca. Depois disso ele precisou se cuidar nas ruas enfrentando toda sorte de perigos. Envolveu-se com gangues e traficantes; aprendeu a linguagem das ruas e técnicas de luta. Tornou-se um homem frio, sem leis e sedento de vingança.

Os dois motoqueiros avançaram com as armas apontadas para a camionete. Apesar da aparente vantagem, não conseguiam esconder a insegurança e o medo de serem surpreendidos. Eram os mais despreparados da gangue. Seu chefe era cauteloso, não queria perder seus melhores homens sabendo que não teria chance contra os canibais em caso de confronto. André estava preparado para atacar. Fez sinal para Jack esperar a aproximação dos dois homens. Wallace, desarmado, abaixou-se para se proteger. Lentamente os motoqueiros se aproximavam, atentos a cada movimento na camionete. O silêncio era total. Os dois afastaram-se para cercarem a lateral do veículo.

Na colônia dos canibais, o chefe ainda examinava a mercadoria. A princípio se interessara por Alice: jovem, carnuda, pele bem cuidada. Carla era a mais magra, ossuda, e Deise não era tão vaidosa, deixando algumas gordurinhas acumuladas pelo corpo tirarem parte de sua beleza. Os membros da gangue abasteciam as motos e os galões. Estavam em pleno festejo. O chefe deles, entretanto, estava apreensivo. Não era comum, nessas trocas, receber a mercadoria antecipadamente. A sua parte estava incompleta. Faltavam os rapazes, os fugitivos! Certamente o chefe dos canibais iria querer algo a mais em troca.

- Você parece ser a mais apetitosa, minha jovem – disse o chefe dos canibais, deixando escapar uma gota de saliva pelo canto da boca. - Qual o seu nome?

- Alice – respondeu secamente, sem olhar nos olhos do canibal.

- Saiba, Alice, que não costumo me apressar no banquete. O que quero dizer é que sou o tipo de homem que gosta de brincar com a comida. Meus ancestrais praticavam o canibalismo como um ritual, mas eu encaro de forma diferente. É algo bem maior que envolve satisfação, prazer. É como no sexo: se quer que seja inesquecível, é preciso ter uma boa e longa preliminar para depois partir para o dito cujo. Costumo seguir esse rito antes de me alimentar. Mas não pense que sou algum doente. Matar para comer e alimentar seus filhos não deveria ser crime. Foi antes da grande tragédia, mas agora, nesse mundo sem leis, se tornou trivial, apenas um extinto de sobrevivência. Espero que não fique zangada com o que vou lhe pedir.

- Do que você está falando? Seja lá o que for me pedir, jamais vou lhe atender, monstro!

O canibal sorriu, mostrando os dentes escuros e podres. Olhou para Carla, com desdém.

- Será que a Carla tem a mesma opinião?

Ela permaneceu imóvel esperando que o chefe dos canibais lhe acariciasse a face. A respiração dela estava lenta e preocupante. Parecia que iria desmaiar a qualquer momento.

- O silêncio também é uma resposta. Mas infelizmente ninguém aqui está em posição de negar um pedido meu. Estou com fome, mas acima de tudo, tenho desejos e fantasias que precisam ser saciadas antes do jantar – retirou uma faca do bolso e a mostrou para Alice – Minha querida, quero que você coma a orelha de sua amiga. Como sou um homem justo, deixarei que você decida entre arrancar com a própria boca ou usar esta faca.

- Alice, não faça isso! - gritou Deise, tentando escapar das mãos de um motoqueiro.

- Se você não fizer, eu mesmo farei. Arrancarei as duas orelhas de sua amiga com a própria boca e deixarei o sangue escorrer só pra você ver! - gritou o chefe.

Alice começou a chorar. Pegou a faca e se aproximou da amiga. Carla gritava sem parar, se esperneando. Deise tentava se soltar, mas sem sucesso.

- Calma, Carla – murmurou Alice – Vou cortar devagar. Não se preocupe, vamos sair dessa.

Carla arregalou os olhos ao ver que Alice procurava sua orelha por debaixo de seus longos cabelos. Ela sentiu a lâmina fria tocar a sua pele, e um leve movimento lhe causou uma súbita ardência, como se sua pele tivesse sofrido uma queimadura. Tentava manter a calma, mas o medo de que Alice lhe arrancasse a orelha lhe causava um terror indescritível. Novamente Alice passou a faca pela parte de trás da orelha, provocando um pequeno corte que sangrou. Carla começou a gritar. Viu muito sangue em sua vida. Perdeu a irmã de forma trágica, num acidente de carro. As ferragens do veículo mutilaram o corpo dela e deceparam a cabeça. Pouco mais de um ano atrás, seu namorado foi vítima de um grupo de canibais que o comeram na sua frente. A vida dela foi poupada graças a Wallace, que ofereceu armas para eles.

- Só mais um pouco. Juro que não vai doer – disse Alice, quase inaudível.

Quando Alice estava prestes a cortar a orelha de Carla, ela parou e cortou o próprio pulso. Um dos motoqueiros que segurava Deise se descuidou e ela acabou se soltando, fugindo logo em seguida. O chefe dos canibais ficou assustado, não com a atitude de Alice, mas sim com os gritos que ouvira em seguida. Não eram humanos, muito menos de algum animal. Ele sabia exatamente o que era. Quando Alice cortou os pulsos, o sangue mais quente que escorreu chamou a atenção da “Coisa” que estava a espreita na mata próxima ao acampamento. Normalmente a criatura só emite esse sinal quando ataca em grupo.

André escondeu a arma atrás das costas. Jack percebeu que os motoqueiros não estavam enxergando o que acontecia dentro do carro, assim, segurou a trava da porta esperando o melhor momento para sair. Quando os motoqueiros se aproximaram das portas da camionete, André atirou e Jack saiu do carro e rolou pelo chão para fugir dos tiros. Um dos motoqueiros foi morto e o outro disparou contra Jack, que se escondeu no matagal. André saiu do carro e correu para a traseira. Eram dois contra um. Jack disparou duas vezes, atingindo o braço do motoqueiro. Foi nesse momento que André acertou a cabeça dele com um único disparo.

Os três foram de moto para o acampamento. Jack foi de carona com André e Wallace seguiu na frente. No caminho encontraram Deise, que já cambaleava. Ela havia corrido cerca de um quilometro de subida. Estava exausta.

- Precisamos voltar... Precisamos voltar. Carla e Alice estão em perigo – disse ela, quase sem fôlego.

- O que os canibais fizeram com elas? - perguntou André.

- São loucos! Todos loucos! Obrigaram Alice a comer a orelha da Carla. Se não voltarmos logo, será tarde demais.

- Venha comigo – disse Wallace – Não podemos perder tempo.

Na colônia dos canibais, as criaturas começaram a atacar. Os canibais tentavam fugir, mas eram agarrados e arrastados para a mata. Os motoqueiros atiravam, mas as balas se perdiam na escuridão sem atingir alvo algum. Alice, segurando o pulso ainda sangrando, correu com Carla para se esconder numa das barracas. Gritos desesperadores ecoavam por todos os lados. Aos poucos os canibais e os motoqueiros desapareciam sem deixar qualquer rastro, porém ninguém sabia se estavam vivos. Estranhamente, o chefe dos canibais era o único que não era pego. Permaneceu imóvel assistindo ao ataque das criaturas. Seus filhos, assim como os chamava, eram arrastados e nada ele fazia para impedir. O líder da gangue se escondeu na mata, mas mal sabia ele que uma das criaturas estava em seu encalço. A sombra o seguiu. A outra criatura farejou Alice e cercou a cabana onde ela e Carla estavam. Elas viam a sombra rondando a barraca esperando o melhor momento para atacar.

- Carla, esse monstro vai me pegar. Aproveite o momento para fugir...

- Não posso fazer isso... Não vou deixar você sozinha.

- Escute-me! Fuja e vá buscar ajuda – ordenou Alice.

Um vulto penetrou a barraca. Lentamente tomou forma e Alice pôde vê-lo nitidamente. Carla, embora estivesse ao lado de Alice, não conseguiu ver nada. Alice tentou se afastar, mas foi arrastada enquanto Carla gritava sem parar. Em questão de minutos não havia mais ninguém no acampamento. Os gritos foram calados e o choro perdeu lugar para o silêncio típico da madrugada.

André e os outros chegaram à colônia dos canibais. O que eles viram foi apenas um amontoado de barracas e roupas espalhadas por todos os lados. De pé estava o chefe dos canibais, olhando para o horizonte e rezando pela alma de seus filhos. Carla saiu da barraca e, ao avistar André, correu de encontro a ele.

- Aqueles monstros levaram Alice. – disse ela, em pranto.

Jack estava enfurecido. Ele culpou o chefe dos canibais pelo desaparecimento de Alice. Além disso, se a criatura não a tivesse pegado, teria matado ela para servir de comida para seus filhos. Apesar de tudo, um mistério ainda não fora desvendado: como ele escapou da criatura?

Essa era a mesma pergunta que Wallace e André se faziam.

- Agora você está sozinho, velho maldito. Com certeza está escondendo algo da gente – esbravejou Jack.

- Está na hora de falar – completou Wallace – Como escapou da criatura?

O velho permaneceu estático. Demonstrara não ter ouvido o que Jack e Wallace haviam dito. Esquadrinhou o acampamento para constatar toda a destruição. Em tempo se deu conta que de fato estava sozinho, e seu império havia desmoronado. Nunca fora descendente de índios canibais. Na verdade era apenas um ex-engenheiro que tinha um hábito alimentar peculiar. Quando a sociedade se desapegou das leis e da moral, teve a ideia de reunir um grupo de pessoas com o mesmo hábito para iniciar uma longa jornada de caça. Como estava difícil capturar humanos, fez aliança com as gangues para conseguir carne de qualidade com mais facilidade. Foram bons anos até aquele momento de desolação.

- Responda senão vou estourar seus miolos – ultimou Jack.

- Sangue de rato – respondeu ele, sem desviar o olhar do horizonte.

- Como assim “sangue de rato”? Do que está falando?

- As criaturas... Elas não suportam sangue de rato. Por isso ando com um pequeno cantil cheio de sangue para espantar essas “coisas” - respondeu o velho canibal, jogando o cantil aos pés de Jack. - São caçadoras. Atacam principalmente a noite, mas há relatos de ataques durante o dia. Não são invisíveis, apenas rápidas o suficiente para não serem vistas. Somente as vítimas conseguem vê-las. Isso é possível porque esses monstros as cheiram para se certificar de que o fígado está em bom estado. São comedoras de fígado humano!

Nesse momento Deise se afastou do grupo. Wallace percebeu sua movimentação e ficou de olho nela. Além disso ele estranhou o fato de Deise ter fugido ao invés de tentar salvar as amigas. Em condições normais ela era muito corajosa. Se Wallace soubesse que Deise se escondeu na floresta quando a “coisa” atacou pela primeira vez, teria certeza de que ela estava escondendo alguma coisa. Era provável que Deise saiba bastante sobre a criatura.

- Existe alguma chance de Alice estar viva? - perguntou André.

- Sim, é possível. Essas criatura não são assassinas. Capturam pessoas para manter uma reserva de alimento. Depois que comem o fígado, devolvem os corpos para a mata. Creio que ela tenha pelo menos vinte e quatro horas de vida.

- E onde elas se escondem?

- Numa cidade fantasma que fica ao leste da grande colina. Não dá para ir de carro, pois a estrada termina a cerca de dez quilômetros da entrada. É preciso cortar caminho pela floresta para chegar mais rápido.

- Eu conheço o caminho – disse Jack, olhando para o valho com desconfiança – Se você estiver mentindo, voltarei para matá-lo.

Alice ainda está viva? Quem são essas criaturas? Cidade fantasma? O que Deise está escondendo? E o líder da gangue, também foi capturado? Não percam o último capítulo desta estória.

Cleiomar Queiroz
Enviado por Cleiomar Queiroz em 15/07/2013
Código do texto: T4388768
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