O silêncio é como um câncer... - DTRL

Sobre a cama desfeita, cartelas de remédios vazias, sobre a mesa de cabeceira garrafas de bebidas alcoólicas, no chão frio ela tremia, não conseguia lembrar se havia tomado comprimidos para dor... O remédio da memória não fazia mais efeito – teria que aumentar a dose.

Abriu os olhos e fitou o teto, o forro desgastado pelo tempo, manchado pela umidade, mofo. Chovia lá fora. Antes mesmo de levantar da cama, tomava um comprimido para enjoo, a seco mesmo. Engoliu dois. Suspirou. Os sonhos sempre a atormentava, e nessa noite foi mais intenso, mais real. Uma lembrança da infância – deve ser por conta do remédio para dormir.

“O sol é a coisa que mais me lembro do tempo naquele dia. Fazia sol e uma brisa leve tocava as plantas, fabricando no ar a melodia suave de uma meninice. O canil estava fechado. Uma pequena porta de madeira separava a realidade do pesadelo”...

Mas foi há tanto tempo... A depressão é o mal do século. Deve ser por isso que ela se sente tão mal. Sobre a mesa dois tipos diferentes de pílulas. Os antidepressivos e os ansiolíticos. Tomou os dois por via das dúvidas. Sabia que não podia se livrar do que a incomodava, pois estava sempre lá, no canto dolorido do seu peito a sufocando, como quatro paredes se fechando ao seu redor...

“Ela sempre abanava o rabo ao me ver - sempre, ela conversava comigo... sério. Eu falava com ela e ela parecia responder latindo, mas naquele dia havia algo de errado”...

Era uma angústia contínua, que estava lá quando ela sorria, fingia... Ela acreditava ser uma pré-disposição, uma coisa física, genética, que nasce com algumas pessoas e as perseguem por toda a vida. Como um fantasma.

Antes de voltar pra cama, sentiu uma forte dor no estômago, como uma facada. Devia ser a gastrite. Sobre a geladeira uma caixa de comprimidos de vários tamanhos. Engoliu dois antiulceroso 20mg e deitou ainda sob a lembrança do sonho – lembrança do passado.

“Ao me aproximar notei que ela estava dormindo de olhos abertos e minha inocência não permitiu que eu entendesse. Abri a porta e entrei. Ela não se moveu. Minhas pequenas mãos foram ao seu encontro e o silêncio permaneceu eterno”...

Não chegou até a cama. Uma tontura a acometeu, transformando seu sonho conturbado em um misto de realidade e alucinação. Não conseguia lembrar se já havia tomado o remédio pra labirintite. Os antidepressivos devem ser os medicamentos mais consumidos no mundo.

Um dia percebeu que sua depressão tinha assumido forma física... Uma velha corcunda e triste que a perseguia, sugava suas energias e a deixava cansada.

Um comprimido para dor de cabeça, um antinflamatório e um estimulante. Isso devia resolver. Engoliu com um copo de vinho. Naquele quarto de paredes brutas e úmidas dia e noite ela permanecia... Era o único lugar em que a velha não permanecia por muito tempo, ratos passeavam sobre ela quando dormia, mas não se importava desde que tivesse livre da velha.

”Seu corpo peludo e macio era frio e duro como pedra, eu sabia que não deveria ser assim, me lembrava de como era toca-la, e o calor que sentia. E aquilo era estranho, de alguma forma eu soube... e a abracei aos prantos, desconsolada – era a primeira vez que me deparava com a morte. Não pude perceber que seu corpo se transformava, seus pelos se dissolviam nos meus braços”...

Nas mãos carregava alguns frascos e um litro de destilado, não sabia qual havia tomado, Rivotril ou Clonazepan? Estava cansada. As imagens do sonho vinham e voltavam de sua memória falha – a primeira vez que se deparou com a morte – era Lessie o nome dela.

A luz do sol entrava pela janela pequena, então percebeu o grau da sua decadência - Não fazia sentido fugir de algo que estava dentro dela, não podia se esconder da velha, pois morava dentro de si. Tomou três comprimidos de cada, dois goles da bebida. Sentia uma dor queimando seu peito, sentou-se encolhida em um canto frio do quarto e notou o quanto ela brilhava - a forca posicionada no centro do cômodo vazio... uma escada dourada embaixo... ela não conseguiu resistir. Subiu lentamente e se posicionou com a corda ao redor do pescoço. Como mágica a escada se foi.

Da pequena janela ela podia ver o céu azul e o sol - uma dor insuportável - sua língua ficou grande demais e seus membros amortecidos... a janela agora, só um quadrado branco cada vez menor e a pressão em seus olhos aumentava cada vez mais.

“Os pelos de dissolveram e ela se transformou... sobre o chão frio o sujo, me encontrei perdida, abraçada ao meu próprio cadáver... nesse dia encontrei-me com a morte e ela me perseguiu por toda a vida... não pude viver a sombra dela. Não estava pronta para isso”.

As pessoas têm seus motivos para fazer o que fazem, independente do julgamento dos outros. A mulher foi encontrada morta ao lado da sua cama... Overdose de remédios.

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 11/07/2013
Reeditado em 11/07/2013
Código do texto: T4382306
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