SOMBRAS NO PAPEL
Nunca antes havia ele escrito um conto de terror. Cansara-se de escrever somente poemas. No breu daquela noite, decidiu lançar-se ao desafio. Assim, mentalmente esboçava o enredo, personagens lúgubres. No papel, surgiam locais sombrios, parca luz, uma sala com antigos objetos, quadros enigmáticos em tons de negro, vermelho e cinza.
Mortos-vivos, vultos em farrapos por ali circulariam. Aos poucos, se desenvolvia a trama: linhas macabras, palavras soturnas, sugestões de malignidade e pavor.
A sombra da própria mão no papel o assustava, além das sombras que ele não percebia se introduzirem no texto. Dedicava-se com afinco.
Súbito, um barulho no quarto. Levantou-se da mesa e foi verificar do que se tratava. Janelas abertas. Uma ventania, dando fantasmagórica vida às cortinas, havia derrubado um porta-retratos, estilhaçando o vidro. A foto da esposa traída, expressão séria, rodopiava pelo chão. Fechou as janelas, deixando para depois a arrumação. Voltou à sala, retomando a escrita. Já eram altas horas.
Eis que, repentinamente, faltou luz. A escuridão abocanhou o ambiente. Perplexo e aterrorizado, passou a ver seus horrendos personagens de além-túmulo, semidescarnados, tomarem forma, emergindo do texto, movendo-se a seu redor. Alucinação? Tomado pelo pânico, pensou em uma vela. Onde encontraria? Tateava móveis e gavetas deseperadamente. Sentia forte sensação de trespassar vultos e de ouvir vozes a exigir o final da trama interrompida.
Finalmente, sua mão tocou algo que parecia ser uma vela. Mas logo o gélido metal revelou-se ser um velho punhal, com o qual sua esposa havia se suicidado, anos atrás. Um calafrio percorreu-lhe o corpo...
Com a mão trêmula, passou a dar punhaladas no ar. Tentava atingir os personagens, agora fora da ficção, a rodear-lhe. Entre eles, parecia ter vislumbrado o vulto da esposa, de braços estendidos, como a chamar-lhe. Alucinado, lembrou-se da traição que o recriminava. Então, prisioneiro daquela tormentosa realidade, lentamente voltou a ponta do punhal para o próprio peito...
Restabeleceu-se a luz. Caído no chão, o autor, com os olhos parados e estatelados. O sangue ainda jorrava abundante do peito e escorria para o quarto. A noite zumbia...
Esboçando um sorriso, emoldurada agora em vermelho, boiava a foto da mulher...
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Nota:
Texto inspirado após leitura de vários textos do recantista FOLHETO NANQUIM, ou seja, meu caro amigo Marcos, de indiscutível talento neste gênero literário, entre outros.
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