Relato no escuro
Escrevo essas palavras nas paredes escuras, então me perdoe se a letra às vezes for ilegível. Meu sangue é a tinta, minha unha a caneta. Escrevo porque tenho medo de perder a lucidez nesse lugar e não ser capaz de contar a minha história se sair daqui. Quando sair, na verdade. Um dia, mais cedo ou mais tarde, eu vou sair, sei que vou.
Não bastasse a escuridão dessa caverna na qual estou mergulhado, ainda me envolvo em minha capa preta, única coisa que me restou depois desses anos todos preso aqui. Minhas roupas já apodreceram e se desfizeram, ao contrário dessa capa que me acompanha desde o início dessa vagarosa e obscura jornada. Nem envelhecer ela envelheceu, assim como meu corpo. Às vezes, quando a solidão aperta, nós conversamos um pouco para passar o tempo.
Resolvi escrever justamente hoje porque está tendo uma tempestade lá fora. Posso ouvir os raios bramindo. E foi exatamente numa noite chuvosa como essa que tudo aconteceu, que vim parar nessa caverna.
Queria dizer a quanto tempo precisamente já vivo nesse lugar. Isso seria um dado importante para que a notícia se espalhasse mais depressa. Mas eu realmente não sei. Pergunto a capa, ela tosse e me responde: 'Ora, filho, como posso eu saber?'. Então que fique assim mesmo, 'há muitos anos'.
A verdade é que no topo dessa montanha brota uma planta raríssima, que segundo lendas muito antigas do meu povo, pode curar até a peste. Meu vilarejo estava sendo assolado por essa doença impetuosa e eu era o único que ainda resistia plenamente saudável, portanto cabia a mim chegar ao topo da montanha, conseguir a planta e levá-la o mais rápido possível para os meus conterrâneos.
Selei o cavalo mais valoroso que tínhamos, vesti a capa preta que havia recebido como amuleto de proteção do feiticeiro da vila e segui na direção desse monte.
A principio, enquanto subíamos a íngreme montanha, o cavalo se mostrava forte e bem disposto e mais da metade do caminho percorremos em uma única tarde, porém após o pôr-do-sol apoderaram-se do céu grandes e tenebrosas nuvens de tempestade. Estávamos nesse momento próximos a um dos vários precipícios que a montanha oferece como armadilha aos seus desbravadores. E o cavalo, altivo como era, não se aquietava diante dos raios e trovões que caíam das nuvens. Estávamos a céu aberto, sem condições de continuar a jornada por ora, pois com a chuva que começava a cair o chão se tornaria lamacento e certamente não conseguiríamos ir longe. No entanto, à medida que a chuva se intensificava e os raios gritavam seu estupor de fúria, o cavalo relinchava querendo sair dali, e por mais que eu tenha até o último momento tentado tranqüilizá-lo, não demorou para que ele disparasse em uma corrida suicida, caindo poucos metros depois no penhasco altíssimo.
E os raios gargalhavam olhando para mim, sozinho tendo que chegar até o pico da alta montanha e depois voltar a pé para o vilarejo distante.
Não havia mais tempo para esperar a chuva passar, repus a capa sobre a cabeça e continuei subindo a montanha, tentando ignorar os raios e trovões que tentavam me impedir. Por quase uma hora segui assim, já muito exausto cheguei à altura dessa caverna tão tímida por entre as rochas, misteriosa, talvez assustadora sob o brilho prateado dos trovões, porém naquele momento eu a via apenas como um abrigo. Não para passar a noite, mas apenas alguns minutos de intervalo. Meu vilarejo podia suportar mais um pouco.
De forma alguma eu iria me aventurar explorando a profundidade daquele lugar sombrio, meu plano era apenas me sentar na boca da caverna e ficar ali por alguns minutos tentando aquecer os músculos para voltar a caminhar.
A primeira coisa que fiz ao entrar nessa caverna foi torcer o tecido da capa para que ele secasse um pouco e pudesse me oferecer calor. Um pequeno ruído vindo da escuridão me deixou alerta. Eu nem me movia, ficava apenas apertando nas mãos minha capa – que segundo o feiticeiro me protegeria de qualquer perigo – e observava enquanto uma silhueta emergia das trevas, tomando a forma de um corpo que se aproximava. Uma bela moça surgiu com roupas velhas e rasgadas. Seus olhos brilhavam enquanto ela me encarava, não sei se por encontrar algum encantamento na minha pessoa em particular ou simplesmente pelo fato de que não via ninguém há muito tempo.
Difícil explicar porque quando vi seu rosto meu medo simplesmente se dissipou. Ainda hoje me faço a mesma pergunta. Ela aparentava ter a minha idade e era praticamente incabível que fosse me fazer algum mal – eu ainda era jovem, ainda confiava nas pessoas.
Aproximou-se mais um pouco, com passos trôpegos e cansados, e antes que eu chegasse a perguntar se estava tudo bem, ela tombou no chão. Corri para ajudá-la e pus sua cabeça em meu colo. Seus olhos se abriram e nós nos fitamos por algum tempo, em completo silêncio. Vendo-a assim de tão perto eu a achei bem bonita para uma nômade.
Perguntei se estava sentindo alguma dor ou coisa parecida, porém antes de me responder a misteriosa moça colocou sua mão no espaço vão do meu peito. Não havia nenhuma malícia naquele gesto, era como se ela quisesse apenas sentir meu coração batendo, ter certeza de que eu era mesmo real.
"Qual é o seu nome?" quis saber.
"Rebeca", seus lábios tremiam de tanta felicidade.
Julguei que Rebeca fosse apenas uma das muitas pessoas que, para fugir da peste, se escondiam nas montanhas. Talvez no começo tivesse sido um grande grupo, mas a doença deve ter chegado até aqui e agora só restara ela.
Raios cintilavam lá fora e com os flashes de luz que vinham deles eu pensei ter visto uma singularidade no corpo de Rebeca, era como se suas roupas afundassem carne adentro na altura do seio esquerdo. Como se houvesse um buraco no lugar do coração. Tentei tocar naquele ponto do seu corpo para me certificar, mas ela não deixou, ficava dizendo coisas desconexas como 'finalmente estou livre' e 'chegou o grande dia' – provavelmente estava delirando.
Cobri-a com minha capa e lhe expliquei que naquele momento eu não poderia fazer nada para ajudá-la, mas que eu subiria até o pico da montanha, pegaria as tais plantas e na volta lhe buscaria aqui nessa caverna para que descêssemos juntos até meu vilarejo.
Levantei-me e dei as costas para ela, pronto para me aventurar outra vez sob a forte tempestade. Outro raio brilhou, e tenho certeza de que se eu olhasse para trás naquele exato momento de luz, eu veria que Rebeca havia se levantado e se aproximava demais de mim.
Antes que eu desse um passo, senti aquela sensação extrema. Rebeca me enforcava com a minha própria capa!
"Você tem que morrer..." ela dizia entre dentes cerrados.
Foi muito difícil para mim me livrar daquele ataque, mesmo que eu fosse fisicamente mais forte, Rebeca tinha uma força de vontade tão grande que bem poderia ter me matado sufocado naquele momento. No entanto, felizmente consegui revidar e deferi uma cotovelada para trás do meu próprio corpo, acertando no rosto de Rebeca.
"O que você pensa que está fazendo?" gritei. "Só estou tentando te ajudar!"
Mas ela estava convicta de que eu devia morrer. Levantou-se e tentou me acertar vários golpes. Eu apenas me defendia, ainda acreditava que Rebeca devia estar passando por alguma alucinação. E depois de algum tempo eu a segurei pelos braços, chacoalhei-a enquanto gritava para que ela parasse, que eu não lhe faria nenhum mal, que não iria machucá-la.
Aos poucos Rebeca se acalmava, eu a deixei sentada e lhe expliquei outra vez que precisava sair por algum tempo, mas que voltaria para levá-la comigo.
"Como prova de que voltarei, vou deixar com você a minha capa, na volta você me devolve..."
E aqueles olhos verdes da linda moça só me encaravam. Pensei que finalmente ela tivesse me entendido. Levantei-me, pronto para seguir minha jornada, me virei na direção da saída, mas antes de dar o primeiro passo o golpe certeiro atingiu.
No começo não chegava a ser dor, era mais um susto e um forte impacto. A minha boca se abriu sozinha, todos os meus dedos se esticaram e eu lembro de até ter derrubado uma lágrima antes de entender o que havia acontecido. Ao olhar para baixo, eu podia ver aquela mão que atravessara meu corpo desde as costas, e que agora segurava no ar o meu coração pingando sangue.
Atrás de mim ela sussurrava:
"Você tem que morrer... você tem que morrer... você tem que morrer..."
Acompanhei enquanto aquela mão voltava para dentro do meu peito e depois saía pelas costas. Foi só então que uma grande dor me abateu. Uma dor e uma fraqueza. Caí de joelhos no chão da caverna, e Rebeca veio na minha frente, olhando para os meus olhos e para o meu coração entre seus dedos.
Vi perfeitamente, sob o brilho dos raios e trovões, quando ela colocou o órgão fresco no seu próprio corpo, precisamente naquele buraco do seu peito; e por alguma razão inexplicável, o meu coração começou a bater no corpo de Rebeca, bombear sangue para as suas veias, irrigar todos os seus músculos e nervos e órgãos. Ela sorria, pelo seu rosto eu via que aquele momento provavelmente era o mais feliz da sua vida.
Meus sentidos aos poucos iam se esvaindo. Mas eu vi ainda quando ela pôs minha própria capa sobre meus ombros e depois deu as costas para mim, caminhando para fora desse lugar. E então eu desmaiei. Achei que havia morrido, e talvez até tenha mesmo morrido, talvez isso aqui seja o inferno, já não tenho certeza de nada.
O fato é que quando acordei já era de manhã, a chuva havia passado e um sol frio das sete horas entrava na caverna e batia no meu rosto.
Tudo não deve ter passado de um pesadelo febril, pensei.
Me levantei e tentei seguir meu caminho até o pico do monte, porém, para meu espanto, meu corpo já não me obedecia quando eu tentava sair dessa caverna. Era uma espécie de feitiço que não me permitia escapar dali embora não houvesse nada visível que me segurasse. Desesperado, eu continuei por horas tentando fugir, sem sucesso.
Soquei as rochas, me lancei contra a saída, implorei por socorro, mas nada adiantou.
E só depois de alguns dias eu fui explorar a profundidade da caverna, na esperança de que houvesse uma outra saída, e encontrei essa parede aqui em que escrevo. Quando cheguei, encontrei-a cheia de outras histórias, acredito que todos os que já passaram por aqui escreveram nessas rochas, e foi aí, lendo esses relatos, que entendi o que se passava. Infelizmente, graças à umidade e ao vasto tempo, praticamente nada pode ser lido hoje em dia, a maioria dos relatos se borrou ou se apagou.
Mas mesmo assim decidi que valeria a pena escrever um pouco, tentar fugir desses fantasmas na minha cabeça, como o povo do meu vilarejo que acredito que tenha sido completamente dizimado pela doença, o cavalo que estava sob minha proteção e que eu deixei que morresse, e até mesmo Rebeca, que às vezes ainda vejo emergindo da escuridão para me atacar.
Todos eles parecem estar aqui agora, me vendo escrever, me rodeando, me encarando... quase posso tocá-los de tão reais que os vejo.
Acho que já está acontecendo, não é? Já estou perdendo a lucidez... Ouço vozes perguntando se a alguém aqui... Já nem sei se escrevi essas palavras antes ou não. E que barulho é esse vindo da boca da caverna? Seriam mesmo passos ou mera alucinação? Será possível? Será que é o que estou pensando? Uma silhueta se aproxima?! É real? É real! Espere, ei você, espere! Vamos conversar um pouco, de peito aberto...
Antes de ir embora, gostaria de deixar um recado para você que vai ficar aqui no meu lugar. Desculpe, nem perguntei seu nome, acabei arrancando seu coração antes que você tivesse tempo de gritar.
Logo logo você acordará com um buraco no peito e vai descobrir que seu corpo não consegue sair dessa caverna, não envelhece nem adoece. No começo você vai me culpar, como eu culpei a minha algoz. Mas com o passar dos anos, acabará entendendo que não foi nada pessoal. Te prender aqui era a única forma de eu conseguir minha liberdade. Essa caverna é uma grande ratoeira maligna, precisa de um prisioneiro, ela se alimenta disso, da nossa solidão, dos nossos pensamentos mais profundos e angustiados, aqueles que só temos depois de anos sem falar com ninguém.
Para provar que não foi por ódio que te fiz isso, e que me sentirei eternamente culpado por saber o quão grande foi o mal que te causei, deixo aqui com você meu único bem, a capa preta que me acompanhou por todo o meu tempo de maldição. Sei que ela te fará companhia, primeiro como uma coberta para as noites frias, depois como um amigo fiel e confidente, assim como foi para mim.
Espero que um dia, o mais breve possível, alguém entre outra vez nessa caverna para que você possa roubar-lhe o órgão vital e se ver livre desse lugar. E depois, novamente com um coração batendo no seu peito, você possa me perdoar.
Assinado: Pedro.