O Coma

Subiu por fim o último degrau. Fraca e cansada, na tentativa de abrir a porta, terminou por se apoiar na maçaneta. Bateu na madeira maciça.

- Me tira daqui… por favor… - disse com a voz fraca.

A luz do cômodo atrás da porta estava acesa. Via-se pela fresta embaixo. Bateu mais uma vez

- Por favor…

A porta se abriu, fazendo com que perdesse o apoio e caísse. Sentiu novamente aquele cheiro de folhas secas. A luz se apagou, dando lugar a uma iluminação natural, com ar de dia de chuva. Via-se novamente em frente ao abismo. Levantou-se chorando.

- Por quê?! Eu quero sair daqui!- gritou olhando para as dezenas de cadáveres de sua filha que se amontoavam atrás de si. Alguns novos, alguns mais putrefatos, mas, todos iguais.

Havia permanecido ali todas as vezes que a porta havia se aberto. Mas, dessa vez não. Respirou fundo. Não sabia de nada. O porquê estava ali, onde estava e o que havia acontecido. Só sabia que fazia muito tempo e que já não suportava mais viver (se é que estava viva) com cadáveres de sua filha.

Pisou no vazio negro do abismo. E não caiu. Os dois pés acima, no nada. Olhou intrigada. Devia estar louca… era isso… aquilo era a loucura.

- Mas será que nem morrer eu posso?!- gritou entre lágrimas. Também não havia eco.

Desesperada, correu até a outra beira do abismo. Correu além de tudo. Mas da outra beirada não passou. Simplesmente havia algo que impedia sua passagem. Bateu com as mãos. Esmurrou a parede invisível, infinitas vezes. Encostou o ouvido de forma instintiva. Ouvia... uma espécie de “bipes”. O que havia ali? Por que não podia passar?!Voltou a chorar angustiada. Queria chegar ao outro lado. Algo dizia que ali atrás havia finalmente algo bom. Chorava inconformada. Acabou desistindo. Só restava voltar de onde havia saído.

Caminhava arrastando os pés. Passou novamente sobre o vazio. Apesar da infinita tristeza, do desespero, parou por um momento. Aquela região, aquela ponte invisível que a sustentava sobre o abismo, tal como a parede que não a deixara passar, era estranha. Era mais gelada. Dotada de uma brisa que vinha por baixo, como um sopro. E também a enfraquecia lhe dava sono. Conforme sua permanência, o “chão” se tornava aparentemente mais flexível, como lycra pressionada. Voltou a caminhar, os passos agora haviam se tornado pesados, o caminhar denso. Mesmo assim continuou. Sua intuição dizia que ali não era um bom lugar. Que era o oposto do “além” da parede invisível.

Respirava com dificuldade... a porta parecia mais longe a cada segundo. Começava a ficar zonza. Com muito custo chegou à outra margem. Ofegante pelo esforço, desceu com dificuldade as escadas que a pouco havia subido.

Chegou a tempo de ver outra “filha zumbi” chegar e, tal como as outras, deitar-se a um canto, fechando os olhos para nunca mais abri-los.

A porta se fechou com um baque seco.

Voltou ao seu canto de angústia, frio. Sentia-se presa em um pesadelo, presa em si mesma.

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

- Nada doutor? – perguntou a avó

- Hoje particularmente, houve um quadro curioso. A pouco, ela apresentou atividade cerebral um pouco mais intensa e, logo após, uma baixa significativa dos sinais vitais. Mobilizávamos a equipe quando ela retornou ao coma profundo.

- Três anos já… Ela sofre tanto, pobrezinha.

Médico e avó olharam então para a garotinha que, com suas mãos frias pela dor segurava a da mãe acamada e inconsciente, na cama do hospital.