O Morto Contador de Estórias

Acordei com o sol da manhã atingindo minha pele queimada. Estava num quarto de hospital, com parte do corpo enfaixada enquanto o braço esquerdo apresentava uma incomoda queimadura de segundo grau. Ah sim, o acidente de carro... Foi milagre ter sobrevivido. Duas pessoas morreram (pelo que pude apurar), além de dezenas de feridos graves. A última coisa de que me lembro foi de um carro que vinha na contra-mao e atingiu violentamente a lateral da van. Acordei em meio aos gritos dos feridos. Os bombeiros ainda combatiam as chamas que consumiam o que restou do veiculo que nos transportava. Havia muito sangue ao meu redor, dos feridos mais graves.

Na TV o noticiário era repleto de tragédias. Assassinato de jovens num bairro nobre, associados a um maníaco de identidade desconhecida, de tendências sádicas; enchentes por todos os lados do globo, dizimando vidas indiscriminadamente, policiais sendo exterminados por puro despeito dos criminosos.

Depois de alguns segundos de desejado silêncio, uma voz distante chegou aos meus ouvidos de forma inesperada. Não estava sozinho naquele quarto. Ao meu lado outro paciente com sérias queimaduras pelo corpo não parecia sofrer tanto. Falava, e bastante, de fatos passados. Aos poucos pude entender do que realmente se tratava. Ele estava descrevendo suas façanhas. Havia certo entusiasmo em suas palavras, apesar de sua degradante condição física.

- Foi em 79... Não, em 80. Lembro bem, era inverno. Acampei próximo ao Everest, numa colônia de nativos da região. A comida era ruim, mas diziam que proporcionava grande vigor físico. Era exatamente do que precisava. Com a energia necessária e a coragem que me era característica escalei o Everest sozinho e sem tubos de oxigênio. Desviei-me de avalanches e sobrevivi ao intenso frio com a pouca vestimenta que possuía. Cheguei ao topo dois dias depois, numa bela manhã de sexta, quando o céu se abriu de forma esplendorosa. Foi como ver o paraíso...

Olhei para aquele homem terrivelmente queimado. Talvez não tivesse mais do que alguns dias de vida. Nos poucos intervalos de sua narrativa aproveitava para gemer e se contorcer na cama. Ele procurava a posição mais confortável ou menos dolorosa, e nesta ficaria por alguns minutos até que novo desconforto o acometesse. Deveria ter trinta... trinta e cinco, era difícil determinar. O rosto, embora pouco atingido pelas chamas, sofreu danos suficientes para ocultar sua idade. Num suposto delírio, o pobre homem mudou o rumo de sua narrativa.

- Nunca tinha visto um cadáver tão de perto. Estava eu a caminhar pelo cerrado do centro-oeste quando aquele odor pútrido chegou a mim provocando-me náuseas. Vomitei no mato mesmo, ao ver o corpo daquela mulher parcialmente decomposto. Estava usando um vestido florido e uma bela tiara... Ganhei recompensa, pois a moça esta sendo procurada há um bom tempo - Ah, como dói- interrompeu, prosseguindo logo em seguida - Pois bem, mesmo sem querer encontrei aquela moça, procurada há tempos. Fiquei famoso na cidade, fizeram homenagens para mim. Pura bobagem, afinal, ela não fora encontrada com vida. Permaneci naquela cidade tempo suficiente para me casar pela terceira vez. Saiba que me casei nove vezes, e numa dessas uniões fiquei com duas mulheres ao mesmo tempo – o homem suspirou, olhando para o teto, por certo relembrando seus relacionamentos anteriores.

A enfermeira entrou no quarto e foi logo ver o meu companheiro falante. Estranhamente, após recolher os comprimidos, ela cobriu o rosto dele com o lençol e suspirou profundamente, como se algo triste tivesse acontecido. Meneou a cabeça numa evidente demonstração de pesar. Muito estranho, pois ainda ouvia os gemidos dele, além de sua luta interminável por uma melhor posição na cama.

O homem retirou o lençol do rosto e novamente mudou de estória, mas dessa vez, ele parecia falar diretamente para mim. Definitivamente não estava morto, como a enfermeira deixou a entender.

- Sabe, não queria servir o exército. Ouvi muitas estórias macabras sobre o quartel. Homens que eram obrigados a comerem olho de porco cru como castigo, além de outros hábitos nojentos que eram introduzidos para repressão. Relutei bastante, mas acabei sendo obrigado a passar seis meses naquele lugar. Tinha um tal de sargento Oneres que mandava limpar o chão com a língua caso alguém derrubasse comida. Vi muito recruta fazendo isso, mas quando chegou a minha vez, não baixei a cabeça. Peguei uma faca e a penetrei completamente na perna desse sargento. Sofri mais que um cão de rua depois disso, porém sobrevivi, como um verdadeiro herói.

Ele fez silêncio e ficou me olhando, com os olhos comprimidos e remelentos. Provavelmente esperava algum elogio de minha parte, ou um reconhecimento pelos seus atos heróicos. Eu não achei as estórias tão extraordinárias. Para dizer a verdade, não acreditei em nenhuma palavra. Difícil acreditar que um homem capaz de incríveis façanhas esteja em situação tão desoladora e irremediável. Era só olhar para ele: uma palidez cadavérica que mais se assemelhava a um véu que cobria todo o corpo; os ossos que praticamente rasgavam a pele de tão evidentes. Tudo naquele homem indicava a morte, menos sua atitude teimosa para contar estórias. Aparentemente ele ficou incomodado com o meu silêncio, e permaneceu calado por mais alguns minutos, até que então disse, solenemente:

- Não ficarei aqui por muito tempo. Estão reservando um bom lugar para ficar, com comida á vontade e criados para me servirem. Pode esperar. Sei que não acredita em mim, mas logo mudara de idéia. Sairei daqui carregado nos braços, como um verdadeiro rei.

Ele estava delirando, assim pensei. Um homem a beira da morte com mania de grandeza não era algo normal. Passei a ter pena dele. Provavelmente morreria sozinho, sendo enterrado como indigente. Por certo fui o único que o tolerou por tempo suficiente para ouvir os seus maiores feitos. Infelizmente não pude realizar, assim presumi, o seu ultimo desejo: acreditar em suas estórias.

O médico chegou para examiná-lo. A enfermeira o acompanhava, aparentando resignação. O pobre homem não se mexia. Estava estático, medonhamente imóvel com sua cadavérica expressão. O quarto estava iluminado, mas ao mesmo tempo parecia tão mergulhado na escuridão que me causava calafrios. O médico verificou o pulso e os batimentos cardíacos, meneando a cabeça negativamente ante o diagnostico. Cobriu-o e em seguida disse:

- Realmente o perdemos. Precisa ser levado ao necrotério para exames complementares.

Naquele momento eu percebi que estava delirando. Estava escutando estórias de um morto. E continuei escutando assim que o médico saiu. Tapei os ouvidos, o mandei calar a boca, e até me belisquei para me certificar de que estava mesmo acordado. Tudo em vão. Era um pesadelo real, uma situação inconcebível que não parecia ter fim. A voz daquele homem já me enojava. Queria pular daquela janela e me espatifar no asfalto só para não ouvi-lo mais.

Quando pensei que tudo estava perdido, que a loucura finalmente havia me consumido por completo, eis que outro médico voltou ao quarto, e ao me ver, perguntou à enfermeira, espantado:

- E esse outro corpo, por que ainda está aqui?

Cleiomar Queiroz
Enviado por Cleiomar Queiroz em 16/06/2013
Reeditado em 16/06/2013
Código do texto: T4343835
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.