A Cidade Escura

No Início muitas coisas eram mistérios, mas muitas não eram. O tempo esclareceu os mistérios e transformou as verdades em lendas. Algo que desperta o transcedental, nos conectando com um lado já esquecido. Um relance de sabedoria, que por um instante nos aproxima daquilo que já fomos um dia.

Uma das lendas diz respeito ao Rio das Lágrimas.

Ele havia nascido a pouco tempo, mas crescia rapidamente, alimentado pela angústia que cada dia mais infectava o mundo. Nenhum peixe ou réptil jamais vivera naquele rio, nenhum animal jamais bebera de suas águas, nenhuma planta crescia às suas margens. O ambiente que o rodeava era árido e morto. Mas não que isso significasse que o rio não era habitado. Na escuridão da noite criaturas se materializavam às suas margens, pequenas figuras frutos de pesadelos, e qualquer um, animal ou homem, que estivesse pela redondeza encontraria neles o fim.

O tempo passou e com a ferocidade cada vez maior das disputas, uma pequena tribo aproximou-se daquele pedaço esquecido de terra. A verdade ainda não era uma lenda e, por isso, os habitantes que formavam um pequeno povoado a não mais de um quilômetro do Rio das Lágrimas, jamais foram até lá beber de suas águas. Eles tomavam outra rota para se abastecerem, tendo de caminhar cinco vezes mais para terem água ou mesmo comida. Durante a noite eles se protegiam com chamas que permaneciam acesas. Não eram como as chamas de hoje em dia, eram chamas sem calor, que brilhavam num tom claro e não queimavam nem quando você colocava a mão sobre elas.

Cisseu era um jovem membro dessa tribo e como muitos de sua idade, havia perdido o pai para as guerras, assumindo um papel de progenitor desde tenra idade. Ele revesava suas manhãs entre a caça e a colheita, reservando as tardes para a tarefa de encher grandes jarros com água antes de voltar para casa.

Mas como todo jovem, Cisseu era impetuoso, e chegou o momento em que a verdade não era mais absoluta para ele. Parecia estúpido marchar atrás de alimentos e água, eles poderiam trazer os animais para viverem ali e beber a água que o Rio das Lágrimas lhes oferecia. Porém os mais velhos ainda eram a voz daquela tribo e o xamã Nefeu proibiu o garoto de sequer comentar suas ideias com os demais, sob pena de ser excluído ou até ser entregue como sacrifício para os deuses.

Porém veio a seca.

Secas já haviam acontecido muitas vezes quando o mundo era jovem, mas naquele ano os deuses pareciam furiosos com os homens. De repente arrumar comida não era tão fácil, muito menos água. Cisseu e outros precisavam ir muito mais longe para conseguir muito menos. A fome se tornou presente, um fantasma violador, e logo os mais fracos começaram a perecer, principalmente velhos e crianças. E quando os velhos pereceram eles perderam a força da verdade. E a morte das crianças levou os jovens ao desespero. E quando o desespero sobrepujou a verdade, Cisseu decidiu que deveria ir contra as regras e fazer algo.

Era noite de Lua cheia quando Cisseu vestiu um manto escuro e saiu, começando o percurso que o levaria até o Rio das Lágrimas. Apesar da hora alta, Cisseu abdicou das chamas sem calor pois não poderia atrair as atenções do resto da tribo. Ele carregava apenas um jarro com a intenção de enchê-lo e levá-lo de volta. As pessoas beberiam daquela água e por fim perceberiam que o Rio das Lágrimas era uma benção, o fim de todo seu desespero.

Embora animado, não tardou para Cisseu perceber que algumas coisas estavam erradas. Primeiro ele estava caminhando a tempo demais, mesmo na escuridão um quilômetro continua sendo um quilômetro, e a distância que o jovem encarava era sem dúvidas muito maior do que essa. Depois havia aquilo às suas costas...

Não era nada visível, mas algo sem dúvida estava lá, algo que o acompanhou desde o momento que deixara a aldeia. No princípio Cisseu nem a havia notado, mas a cada passo sua presença se tornava mais evidente, era como um sopro em sua nuca, que fazia os pêlos de seu corpo arrepiarem. Por muitas vezes Cisseu passou a mão pelo local, achando que algum animal pudesse ter se grudado ali, mas nada além do vazio era envolvido por seus dedos. Quando a situação chegou às vias do ridículo, com o garoto andando arqueado e virando a cada passo para trás, as águas do Rio das Lágrimas apareceram.

Cisseu rapidamente encheu o jarro e ao olhar aquela água percebeu que também era uma vítima das dificuldades de sua tribo. O garoto viu seu próprio reflexo ali, magrelo e pálido contra a luz do luar. Apesar do sentimento ruim, ele não tivera maiores dificuldades para chegar, mostra de que as lendas eram bobagem.

E para provar isso, ele encheu as mãos com a água morta, e bebeu.

****

Em alguns momentos da vida o xamã Nefeu teve sensações ruins, mas nenhuma das vezes foi como aquela.

Ele despertou no meio da noite, suor frio cobrindo seu corpo. Algo estava errado, sentia isso, alguma coisa estava se aproximando da aldeia, alguma coisa que não deveria se aproximar!

O xamã saiu antes que a primeira das pessoas gritasse, antes que a primeira das casas fosse destruída e antes que a primeira das criaturas aparecesse.

Eram formas escuras com características humanóides, de seus corpos saía uma névoa negra, como gelo seco. Elas tinham quase três metros de altura de modo que podiam ser vistas sobre as tendas. Haviam pelo menos dez delas, avançando por sobre a aldeia, usando seus membros disformes para destruir o que houvesse pelo caminho. O xamã Nefeu sabia o que eram aquelas coisas embora nunca as tivesse visto in loco, elas já haviam visitado-o algumas vezes em seus pesadelos... Eram as criaturas escuras, criaturas que em teoria não deveriam se aproximar por causa da luz. Mas ainda assim lá estavam elas, sombras nefastas da escuridão, resquícios do início do mundo, evoluindo assim como as espécies vivas...

Então uma percepção maior assumiu o xamã enquanto ele observava homens fracos brandirem armas e tochas e irem lutar por suas moradas. Uma percepção de que ao menos um daqueles seres era alguém conhecido, alguém que não deveria estar ali.

- Ò Cisseu, ímpio Cisseu... Porque violastes as regras antigas? – O xamã lamentou quando a percepção lhe mostrou a verdade.

A luz era a única coisa que mantinha os filhos da escuridão longe, mas se os filhos da escuridão agora podiam marchar sobre ela, então o que seria dos homens? O que seria da vida quando não pudesse mais lutar contra a morte?

A resposta era simples. Não haveria nada. Não haveria mais vida e eles seriam os responsáveis por aquilo.

Então o xamã Nefeu soube que algo deveria ser feito. Eles já estavam condenados, mas talvez ainda houvesse tempo de salvar o resto da existência.

O velho xamã voltou a sua tenda de onde puxou um livro antigo, escondido sobre sua cama. Aqueles eram os ensinamentos de Antes do Tempo, ensinamentos que os deuses deixaram para os homens em sua visita. Muitas das magias ali eram proibidas e foi justamente uma delas que Nefeu invocou.

O xamã fez um último pedido, quando as últimas palavras da língua dos deuses escaparam de sua boca passando a fragmentar sua existência. Um pedido de que aquele momento não caísse no esquecimento. Que os homens do amanhã lembrassem que haviam coisas maiores do que eles e que nem todo mistério existe para ser desvendado.

O pedido se uniu à magia que destruiu homens, as aberrações das trevas e até o Rio das Lágrimas. O pedido do xamã também foi atendido, e daquele dia em diante todas as pessoas puderam ver os momentos finais daquela batalha. Bastava fechar os olhos com força e pequenas formas apareceriam, bem como manchas claras.

A última batalha dos homens contra as trevas.

Para sempre, sob cada olhar.

FIM

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Foi a primeira coisa que escrevo em muito tempo pessoal, espero que esteja bom.

Até!

Gantz
Enviado por Gantz em 05/06/2013
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