A série sangrenta

Naquela manhã de segunda-feira, tudo parecia úmido e pegajoso. O tempo estava chuvoso e nevoento porém abafado, e a roupa tendia a colar em nossas peles. O sangue no corpo daquela mulher, já em processo de coagulação, parecia compartilhar da qualidade pegajosa que impregnava o dia. Eu não me sentia à vontade ou tranqüilo diante do triste espetáculo naquele escritório-modelo onde todos, naquele momento, ostentavam cara de réu.
Ingrid Raisinger havia sido, em vida, uma mulher extremamente bonita. Creiam, não é fácil aceitar que uma mulher jovem e bela seja ceifada por uma violência estúpida. O fato misterioso, porém, que motivara a minha convocação, estava nas circunstâncias daquele assassinato: Ingrid entrara no W.C. luxuoso do andar, sozinha, ninguém vira qualquer outra pessoa entrando e logo em seguida fora ouvido um grito medonho de terror e qualquer coisa como “O lírio! O lírio vermelho!”. E era a voz de Ingrid, mas terrivelmente apavorada. E por fim, um grito final de dor e agonia.
Arrombada a porta por vários dos presentes, o corpo de Ingrid havia sido encontrado junto ao bidê, numa poça de sangue, varado por cinco punhaladas. E ninguém mais lá se achava. A possibilidade de suicídio era absurda; mas como o assassino poderia ter fugido?
Meu auxiliar, Charles, não escondia a sua perplexidade. Eu procurava permanecer impassível, bem que no íntimo não me sentisse bem. Como os demais, não enxergava uma solução ou sequer uma hipótese razoável. A médica legista não encontrara dificuldade para atestar a causa mortis, bastante evidente, ou a hora do óbito. A identidade do assassino é que seria difícil estabelecer.
Poderiam estar todas as testemunhas — umas dez pessoas — mancomunadas numa mentira, para que a polícia pensasse estar diante de um caso insolúvel? Era pouco provável. O meu conhecimento da natureza humana afirmava, convictamente, que dificilmente se acumpliciariam num crime de morte, mais de três ou quatro pessoas de uma vez, se trabalhassem juntas. Que dez indivíduos que trabalhassem com Ingrid se associassem para mentir sobre a sua morte, eu me recusava a crer.
Não tive tempo para obter maiores informações ou chegar a qualquer conclusão importante, pois na terça-feira eu me encontrava no Teatro de Ópera, examinando o corpo sem vida de Lorenzo Agostiniano, cantor de tecno-opera, um dos nomes mais badalados pela mídia artística nos últimos seis anos. Às vezes crimes em série ocupam nossa atenção e somos obrigados a ir acumulando enigmas à espera de resolução. Eu tinha uma certa admiração por Lorenzo, e o que me chamou a atenção foi que as marcas de punhaladas em seu corpanzil eram semelhantes às que eu já tinha visto no cadáver da executiva. Lorenzo era considerado um estudioso amador de parapsicologia, por isso Irwin, meu chefe, achara que eu devia dar uma olhada, embora à primeira vista não houvesse nada com aspecto sobrenatural ou para-normal.
Na sexta-feira à noite eu me achava na sede do Instituto de Pesquisas Paranormais, onde quatro cientistas de ambos os sexos haviam sido encontrados mortos, ceifados em verdadeira carnificina. Todos apunhalados. Investigavam para-normalidades. Sempre tem de haver algum motivo para a minha convocação.
Até aí eu mantinha os dados desses três casos em agendas diferentes.
Eu fora dormir pensando em como poderia investigar três casos ao mesmo tempo. Porém, naquela noite de sábado para domingo, algo aconteceu — ou não aconteceu, dependendo do ponto de vista. Afinal, em que dimensão acontecem os sonhos?
Em resumo lá estavam, percorrendo uma estrada escura e silenciosa, todas as vítimas dos recentes crimes. Todas, e de repente uma figura encapuzada, coberta com um manto vermelho e portando uma negra foice, apareceu e ceifou-os a todos, tingindo a estrada de rubro. E a mesma figura, encarando-me com olhos flamejantes sobre fundo negro, zombou: “Detenha-me se pode... enquanto o mundo é mundo!”
Acordei banhado em suor frio, trêmulo. Parecia-me haver tocado a fímbria de um mistério tenebroso.
Tomei o meu banho hidrostático calmamente, procurando relaxar a mente e os nervos. Repensei o caso de Ingrid e recordei aquelas palavras estranhas: “O lírio! O lírio vermelho!” O que poderia aquilo significar? Então, ao tomar o desjejum servido por Lata Velha (o meu robô de estimação), ruminei aquele detalhe e por fim decidi-me a realizar uma pesquisa na Cosmonet. Preparei um “romeu e julieta” e refleti sobre a ausência aparente de um padrão naqueles crimes. Uma mulher jovem e fatal; um artista da voz, de grande talento chegando à genialidade; quatro cientistas maduros, um deles já chegando à senectude. O nível intelectual, a idade, a aparência física, a ocupação, nada denotava um padrão. Havia sim quatro mortes semelhantes, mas faziam parte do mesmo caso.
Liguei o multimídia na Cosmonet e acessei a pesquisa Sabichão. Digitei “lírio vermelho” e qual não foi a minha surpresa ao deparar com referências a uma lenda urbana!

Uma lenda que surgira há coisa de um século e era bem conhecida por estudiosos de assuntos sobrenaturais.
Nos sessenta minutos seguintes ocupei-me basicamente em ler e imprimir tudo o que eu pude encontrar a respeito daquela fábula moderna, interrompendo apenas para ir ao banheiro e beber um copo de água gelada. O assunto era fascinante — e ao mesmo tempo arrepiante. E porque não dizer, abracadabrante.
Em resumo, o Lírio Vermelho era um fantasma assassino, um fantasma feminino que assombrava a cidade há décadas e se mostrava na forma de uma mulher jovem vestindo um traje vermelho de luxo e portando sempre um lírio da mesma cor. Diziam que ela era lindíssima porém implacável, e que apunhalava as suas vítimas, que podiam ser homens ou mulheres. Era também conhecida por somente atacar em ambientes sofisticados ou pelo menos, vítimas que possuíssem recursos. Nunca se ouvira dizer que atacasse pobres.
Enquanto a gente lê coisas dessa natureza, pode até se impressionar. Ao final da pesquisa, porém, eu me encontrava apenas cético. Resisto muito a acreditar que espíritos possam de fato interferir no mundo material, que deve estar tão fora de seu alcance quanto o deles de nós.
Em todo o caso Ingrid teria feito referência ao espectro; eu não podia ignorar totalmente a pista, por mais descrente que fosse. E seria possível que aquela história tivesse relação com os demais homicídios?
Lembrei da figura do meu sonho: ela também estava de vermelho. Eu não vira nenhum lírio, somente uma foice, mas... sonhos têm seu próprio esquema. O que eu tinha a fazer era reinterrogar todo mundo e procurar testemunhas ainda não ouvidas. Era trabalho pela frente, e com certeza eu não pretendia executa-lo sozinho. Além de Charles, e sem cogitar do Chapolin Colorado, quem mais poderia me ajudar? Lembrei-me de Kelly, uma simpática estagiária de nosso departamento, e resolvi requisitá-la como era de meu direito, caso ela já não estivesse ocupada com outra investigação. Felizmente, após rápido contato com a Sede através da holonet, fiquei sabendo que a Kelly se encontrava disponível e oficializei a sua requisição. Infelizmente a burocracia reparticional não me permitia convocar mais de uma estagiária. Paciência: o caso é grande, mas a equipe tem de ser pequena.
No dia seguinte,depois que a diarista chegou para preparar o almoço e limpar o apartamento, recebi um holotelefonema da Kelly. Ela parecia uma egípcia, com sua pele mais para escura e seu jeito enigmático, mas mostrou-se interessada no assunto:
— Disseram-me que é um caso difícil — observou. — Espero que sim, porque eu preciso treinar.
— Só vou lhe contar pessoalmente — respondi. — Tem alguns detalhes que eu não gostaria se alguém captasse.
Ela sorriu:
— Tenho quase certeza de que tal precaução é desnecessária, mas... que seja. Vou para a sua casa agora mesmo.
Ela não demorou, mesmo. Quando ficou sabendo de tudo, mostrou-se meio cética:
— Chefe, eu francamente não acredito em fantasmas assassinos que nem na história do cavaleiro sem cabeça. Para mim tem alguma pessoa usando essa lenda para nos confundir.
— Pode ser... e a equipe do Scoobydoo não se encontra por perto, portanto vamos nós mesmos ter que desmascarar essa trama.
— Nós o faremos, é claro!
Pegamos o Charles e nos dirigimos para a Avenida da Morte Brusca, onde Ingrid Raisinger havia sido assassinada. De volta ao local do crime, num ambiente gélido e depressivo, Kelly sugeriu que o sanitário fosse novamente examinado. Ernst, o gerente local, não parecia bem disposto para conosco, mas não chegou a tentar nos impedir. Eu já havia examinado o local e não me parecia que um novo exame pudesse esclarecer alguma coisa.
Kelly observou a janela de basculante:
Vocês acham que alguém poderia ter entrado por ali?
— Ora — disse Charles, desdenhosamente. — Só se fosse uma criança ou um anão!
— E por que não?
Olhei para Kelly; ela falava a sério.
— Vocês às vezes esquecem de considerar todas as possibilidades. Há registros de crianças que cometeram crimes violentos. Anões também podem fazer isso.
Ela tirou as sandálias e subiu no bidê, e pondo-se nas pontas dos pés alcançou os basculantes da janelas, agarrou-se num deles e içou-se para o peitoril, como uma macaquinha. Em seguida passou o seu registrador de impressões por onde pôde.
— Espero não ter estragado nenhuma...
— Tome cuidado — falei.
— Tudo bem, vou ver se dá para sair, porque se der também dá para entrar.
— Se você cair é morte certa — lembrei. — Ponha um cinto de segurança;
Ela fez o que eu disse e abriu ao máximo os basculantes, que ficaram na horizontal. Tornou-se evidente que uma pessoa magra poderia passar por aquele espaço, mesmo assim eu me mantinha cético. À luz do dia, como poderia o matador penetrar no banheiro daquele jeito, praticar o seu crime e evadir-se sem que ninguém da rua o avistasse?
Kelly passou o registrador pela superfície, que devia estar imunda, do lado exterior do peitoril e em seguida fez o possível para se espremer janela afora. Como era esguia, acabou logrando êxito.
— É apavorante aqui fora — disse ela. — Evidentemente o Homem Aranha poderia ter cometido o crime, depois de fazer um regime, mas não sei quem mais...
Nesse ponto bateram na porta, que havíamos trancado. Eu não queria que ninguém perturbasse a investigação mas também não poderia interditar por muito tempo o reservado feminino,
— Muito bem, menina — falei. — Bata umas fotos e volte, temos de verificar o registrador, por hoje acho que é suficiente...
Kelly retornou penosamente e pulou ao chão com minha ajuda.
— Deixa primeiro eu lavar os meus pés, ficaram sujíssimos.
Ela passou para a anacrônica banheira de cerâmica, ligou a ducha e executou a operação de higiene. Charles, impaciente, segredou-me:
— Se é possível entrar fisicamente pela janela, a chave do crime está aí. Só vampiros viram névoa e atravessam por baixo das portas...
— Mas como chegaram no peitoril, Charles? Vamos ter que olhar por fora, nem que seja de flutuante.
— Ora! Com certeza vamos descobrir que é possível!
— Interessante essa banheira.. — comentou Kelly distraidamente, ao sair. — O material de que é feita parece flutuar!
— Ora, que bobagem — comentou Charles.
Abrimos a porta e deparamos com expressões raivosas e intensionadas que não pareciam estar nada satisfeitas com a nossa presença. Uma mulher gorda e loura chegou a falar;
— Isso é muito desagradável, homens no banheiro feminino...
— Eu não sou homem — falou Kelly, azedamente.
— Pior.
Dirigi-me a Ernst Black, o gerente local:
— Será que poderíamos conversar com o senhor um pouco?
— Bem, sabe como é... dadas as circunstâncias, o escritório está em polvorosa...
— Mas nós objetivamos esclarecer o crime!
— Sim, é claro que todos nós desejamos esclarecer essa tragédia...
Levou-nos ao seu gabinete e encostou a porta com janela de vidro.
Eu não ia muito com o Ernst Black, mas com certeza a minha simpatia pessoal não podia interferir com as minhas conclusões. Sentamo-nos os três diante da escrivaninha de Black, e este iniciou o diálogo:
— Bem, senhor Mark Von Dirk, conseguiu algum resultado em sua pesquisa? Estamos ansiosos por saber de quem é a culpa, ver o assassino punido...
— Sabemos — comecei cautelosamente — que é possível entrar no banheiro através do basculante. Não verificamos ainda, como seria possível chegar na parte externa.
— Eu também pensei nisso... afinal nós não acreditamos em fantasmas... a não ser que vocês acreditem, pois o seu departamento...
— Não quer dizer nada — esclareci. — Casos com aparência sobrenatural ou paranormal ou parapsicológica nós investigamos mas isso não quer dizer que creiamos, logo de saída, na explicação sobrenatural ou fantasmagórica.
— Tem razão, é preciso agir com prudência...
O holocelular tocou. Pedi licença, atendi e o micro-holograma do Irwin me apareceu, excitado:
— Mark, temos uma novidade nos casos que você está analisando...
— Bem. Então fale logo!
— Sabe qual é a ópera que aquele tenor estava ensaiando? “O Lírio Vermelho”! Sabe o que é isso? Lembra o que a Ingrid falou antes de morrer?
Fiquei embasbacado e lamentei estar diante de Black, nossa conversa devia ser sigilosa. Coloquei a mão no queixo, um gesto-chave para alertar Irwin.
— É isso aí — disse ele, concordando sutilmente com a cabeça. — Pense nisso e depois conversamos, pois estou resolvendo umas coisas urgentes.
E desligou.


— Sabe de uma coisa, Mark? — falou Kelly, logo que pudemos conversar melhor os três, no reservado de um restaurante — O próximo passo me parece evidente.
— Então me passe a evidência que eu ainda não a alcancei — admiti.
— Ora ora! É só descobrir que o terceiro crime... que vitimou várias pessoas... também tem relação com o Lírio Vermelho. Se pudermos descobrir isso, teremos um padrão estabelecido e será meio caminho andado para solucionar o crime!
— Acho que você tem razão — opinou Charles. — E é bem possível, pois os sujeitos assassinados eram pesquisadores de coisas do além...
— Teremos de voltar àquele instituto — decidi — e examinar a pauta de investigações dos quatro cientistas.


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Nós o fizemos, é claro. Em pouco tempo estávamos nas Jaboticabeiras, no Instituto de Pesquisas Paranormais, buscando mais informações sobre Miki Aino, Pablo Calvo Jiménes, Domitila Joaquina Fidélia e Aderaldo Batista Valnemberg, as quatro vítimas que ali trabalhavam e formavam uma equipe. Um dos diretores, Olney Libório Estibordo, consentiu em mostrar a pauta de investigações dos quatro pesquisadores. Essa pauta de interesses incluía: UFOS, criptozoologia, interpretação de sonhos e materializações de espíritos. Quanto ao último quesito, havia anotações sobre o Lírio Vermelho.
— Bingo! — exclamou Kelly, satisfeita com sua esperteza.
Charles, ansioso por mostrar serviço, pegou esta última parte e leu:
— Aqui diz: “Temos a esperança de entrar em contato com o espectro do Lírio Vermelho, e esperamos poder apaziguar o seu espírito atormentado. Para tanto realizaremos uma sessão de mesa falante, e para isso contamos com o auxílio de Jiminy, este médium extraordinário que consentiu em nos orientar.”
— Que escreveu isto? — indaguei, incrédulo diante de tamanha ingenuidade num texto redigido por cientista. Ou pelo menos gente que assim se fazia passar.
— É a letra da Dra. Domitila — respondeu Olney, com uma catadura mal-humorada. — Mas me parece que ela era muito fantasista. Afinal fantasmas não existem!
— Se pensa assim, o que faz neste instituto? — indagou Kelly, perplexa.
— Estou ganhando a minha vida — foi a resposta enfática.
— E onde é que a gente pode encontrar esse Jiminy? — lembrou o Charles.
O holomicro apitou uma mensagem urgente, o Dr. Olney tratou de respondê-la e depois tornou a nos dar atenção:
— Vocês têm que se comunicar com a agente dele. Eu tenho o telefone dela.
— Telefone? Você disse telefone? — questionei, incrédulo.
— Realmente, senhor, parece coisa do tempo da pedra lascada. Ela não usa visofone.
— Não quer que vejam a sua cara — deduziu Kelly. — É muito suspeita.
— Desejo boa sorte nas suas investigações — disse ainda Olney, com um tom de voz que insinuava o contrário. — Nós estimávamos muito os defuntos.
Saímos de lá e procuramos uma lanchonete para comer uma “pizza” enquanto tentávamos estabelecer uma linha de ação. Kelly ficou ligando para a Sra. Elizeth Almerinda, a tal agente, mas atendia sempre uma gravação. Afinal Kelly deixou uma mensagem alegando ter interesse numa sessão e pediu retorno. Por enquanto era o que podíamos fazer.
Pela meia-noite, enquanto eu sonhava com uma lauta refeição de aspargos com picadinho de javali, meu visofone tocou seu habitual toque de “Assim falava Zaratustra” de Straus, e eu, estremunhado e irritado, estiquei a mão direita para a mesa de cabeceira e meio que rosnei um “Alô!” irado. Mas logo me acalmei: era a Kelly.
— A essa hora, menina?
— Chefe, eu obtive retorno da Almerinda! Já temos um encontro marcado com o Jiminy! Se apronte e veja se pode pegar o Charles!
— Duvido muito. Ele costuma desligar os seus acessos depois de certa hora.
— Então vá até a casa dele e arrombe a porta! Ou isso, ou deixe-o de fora, mas não podemos perder a oportunidade!
Premida pelo entusiasmo de haver aberto um caminho, ela parecia estar chefiando naquele momento. Mas ela estava certa: oportunidades se aproveitam. Uma coisa porém me intrigava, e eu expus a minha dúvida:
— Afinal por que foram marcar em hora tão avançada?
— Eu também perguntei isso, mas a mulher só me respondeu que o Jiminy é um grande médium e por causa disso não segue as convenções sociais...
— Esse tipo de gente eu gosto de mandar irem plantar batatas...
— Chefe, agora não podemos fazer isso!
— Eu sei... vamos em frente... onde é o encontro e a que horas exatamente?
— Dentro de três horas, na esquina da Rua das Assombrações com o Beco das Almas Penadas. Bem em frente à Praça das Aparições.
— Ah, sim. É pertinho do cemitério. Me aguarde que eu pego você de carro. Vou passar primeiro na casa do Charles.
Pela cara da esposa do Charles, achei que ela queria me mandar para algum lugar bastante desagradável, mas me fiz de desentendido e levei o meu ajudante. A gente tem que fazer jus ao ordenado! Charles, porém, estava sonolento e eu pensei que seria de bom alvitre tomar primeiro um café forte na casa da Kelly, havia tempo suficiente.
Conseguimos enfim sair de lá com o Charles mais acordado e a Kelly, no caminho, perguntou se estávamos armados.
— Sempre estou com minha pistola Stilus 7.3, mas isso é força de hábito — respondi. — Afinal de contas não adianta dar tiros em fantasmas!
— Também estou com minha pistola — observou Charles — mas tenho também uma fórmula de exorcismo no bolso. E você, Kelly, o que traz?
— Um aspirador de pó — respondeu ela, simplesmente.
— O que??? — falamos em uníssono.
— É algo que pode ser muito útil para aprisionar fantasmas — esclareceu ela, sorridente.
Não acreditei que estivesse falando a sério.


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À hora aprazada estávamos nós três no ponto de encontro, cada um mais sonolento que o outro, e eu duvidava em meu foro íntimo que o misterioso cidadão desse o ar da sua graça. No entanto, desta vez me enganava: da direção da praça veio vindo uma figura encapuzada que, à primeira vista, fazia lembrar aquele “Zé do Caixão” de antigos filmes de horror. Trazia as mãos nos bolsos e seus olhos pareciam brilhar medonhamente. Ao se aproximar, percebi que mal podia distinguir as suas feições. Foi ele o primeiro a falar, com uma voz tão cavernosa que dava a impressão de proceder das profundezas do Hades:
— Foram pontuais — disse ele, quase sem mover a boca. — Já sei quem são. E eu sou Jiminy, como já devem saber.
— Sabe o que queremos — arrisquei, procurando evitar que notassem os meus arrepios.
— Sim, senhor Mark. O senhor naturalmente quer uma solução para os crimes do Lírio Vermelho.
— Se puder realmente nos esclarecer sobre essa série sangrenta...
— Vocês são céticos. Não acreditam, com certeza, que fantasmas possam cometer homicídios.
— Talvez duvidemos — falou Kelly, aparentemente tranqüila. — O senhor terá de nos provar que isso existe.
— Então eu direi o que aconteceu. Os quatro cientistas estavam interessados em entrevistar o trasgo, mas no decorrer das negociações foram pouco sutis e acabaram ofendendo os brios do Lírio. O tenor foi temerário ao protagonizar um teatro musical que mexia com a lenda. E quanto à executiva... ela usava habitualmente um lírio vermelho na lapela, inclusive no dia em que foi abatida. Isto também ofendeu o fantasma. Vocês nada podem fazer em relação a isso, pois fantasmas não são levados a julgamento.
— Talvez não — respondi. — Mas médiuns podem ser!
— O que quer dizer com isso? — ele manteve-se calmo.
— Muito simples. Não havia lírio nenhum no cadáver e, se houvesse, como você poderia saber? Aliás como sabe que nós estamos investigando esse caso?
— Tenho minhas fontes de informação — respondeu ele, sinistramente.
— O que houve com o lírio que Ingrid portava?
— O fantasma levou, é claro.
— Tem certeza disso?
— E por que não? Que adianta duvidar do que não entende, senhor Mark?
Inesperadamente Kelly estendeu a mão direita, que empunhava uma agulha, e espetou a mão esquerda do mascarado. Este gritou de dor e exclamou;
— Por que fez isso?
— Para ouvir a sua verdadeira voz, senhor Ernst Black!
Ele tentou sacar um revólver, mas Charles e eu o agarramos e desmascaramos após rápida luta. E era Ernst Black.
— Agora tratem de me soltar, antes que eu os processe por agressão — rosnou ele.
— O que você quer dizer? — atirei, já enfezado. — Pois se nós o desmascaramos...
— Está delirando, homem. O médium que usa o pseudônimo de Jiminy teria de ser alguma pessoa real, e por acaso sou eu. Não cometi nenhum crime...
— Talvez você tenha razão — interveio Kelly — mas isso o coloca em relação com dois crimes!
— Mera coincidência. Eu pesquiso por minha conta fenômenos espirituais, mas tenho o meu emprego. O Lírio Vermelho é muito perigoso, é preciso saber lidar com ele. Vocês mesmos devem tomar cuidado, não mexer muito com o assunto.
— Eu não me conformo que mesmo um fantasma cometa assassinatos impunemente! — falou o Charles, meio fora de oportunidade.
Ernst voltou-se para Kelly:
— A senhora está de parabéns pelos seus ouvidos e por distinguir tão bem os timbres de voz. Bem, tenho que ir, Passem bem.
— Espere! — falei, meio frustrado. — E o Lírio Vermelho? Como posso saber se tudo isso é verdade?
— Sábado que vem, às dez da noite, farei uma sessão espírita na Tenda do Azimute, em Calhau Amarelo. É um local muito conhecido. Se vocês comparecerem, invocarei o Lírio Vermelho e vocês falarão com ela. Não se preocupem, eu sei controlar a mulher-fantasma.
— Nós aceitamos — disse Kelly surpreendentemente, ao mesmo tempo em que piscava para mim.


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— Devemos estar malucos — queixou-se o Charles. — O sacripantas nos ameaça com uma arma e nós aceitamos ir numa sessão que ele promove!
— Antes disso vamos voltar ao escritório — falou Kelly, incisivamente — pois me parece que a chave de tudo está por lá!
— Tem certeza? — objetei. — Nós já estivemos lá...
— Chefe, temos de ir numa hora em que não haja ninguém, preferencialmente de madrugada. Vamos aproveitar esses dias de lambuja que acabamos de ganhar graças a mim!
Comecei a achar que a Kelly havia captado alguma coisa que ainda me escapava. Talvez fosse uma boa idéia, afinal, ir lá sem os olhares do pessoal do escritório.
Assim, naquela noite — felizmente uma noite de novilúnio — estávamos no mesmo escritório onde as minhas investigações haviam começado. Kelly tinha alguma coisa na cabeça, sem dúvida, mas parece que não estava de todo delineada; por isso ela mantinha silêncio sobre as suas reais intenções. Eu estava tentando desenrolar novas idéias, mas o meu cérebro andava meio árido naquelas últimas horas.
— Faltou verificarmos a possibilidade de entrarem pelo lado de fora... — observei, lembrando que não tivéramos tempo de checar aquela hipótese.
— Não precisa — respondeu ela. — Com certeza não foi por lá.
Assim dizendo, ela tirou o aspirador de pó da mochila.
— Não me diga que isso vai ser útil aqui — disse Charles, embasbacado.
— Meu caro, esse modelo Vibratex 2170 possui uma potência aspiratória de 123 einsteins o que é simplesmente fabuloso. Agora acompanhem a minha idéia!
E ela se dirigiu à banheira.
Incrédulo, vi que ela ligava o plug na tomada mais próxima e acionava o aspirador com força total. De tão aperfeiçoado, seu ruído era mínimo. E logo, o ladrilho da banheira começou a se erguer.
— Mas o que é isso? — indagou Charles, perplexo.
— Um fundo falso... vocês acham que empregados de escritório têm tempo e hábito de tomar banho de banheira no local de trabalho?
A capa de azulejos ultraleves foi devidamente removida e, afora o encanamento, o que apareceu foi uma passagem secreta pela qual me precipitei para mostrar que eu era o líder. Charles e Kelly me acompanharam e assim logramos chegar ao gabinete particular de Ernst Black. A outra entrada ou saída era por baixo de sua mesa, que tivemos de afastar. Não era tão pesada assim.
Mas o mais interessante foi que, no trajeto que fizemos à luz de lanternas, Charles enxergou manchas de sangue no chão.
E foi assim que conseguimos inculpar Ernst Black, ou Jiminy, sem precisar comparecer à sua sessão de truques baratos com os quais pretendia nos impressionar. A razão de todos esses crimes? Mas já fora elucidada pelo próprio Jiminy: obcecado pelo Lírio Vermelho, ele tomou como injúrias todos os atos antes relacionados, no breve diálogo que travara conosco naquela esquina. Ao ser preso, garantiu, indignado, que o próprio Lírio Vermelho cuidaria de nós.
Não conseguimos mantê-lo preso por muito tempo. Seu advogado logo conseguiu um “habeas-corpus” para que ele respondesse ao processo em liberdade. As provas contra ele, porém, eram poderosas, e eu acreditava que o tribunal certamente o condenaria.


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Mark Von Dirk acabava de digitar o seu relatório quando o visofone tocou. Ele atendeu e deparou com a face angustiada de Kelly:
— Mark! Mark! Aconteceu uma coisa horrível!
— Como assim? O que pode ter sido?
— O Ernst Black! Ele foi encontrado morto, apunhalado! E o que é pior: sobre o seu corpo havia um lírio vermelho...