Sorvo de gim
Após lançarem esconjuros maledicentes, conjeturando possibilidades afins a sucumbirem-me por terra, chego de minhas influências vis, um ato sutil e postergado, localizado e encenado por uma trama cabal, ofuscando as probabilidades do blefe e contrariando as missivas idealizadoras das constituições civis.
Perscrutando os lados, a passo largos, corto as vias cingindo o ar com minha fúria, as narinas expulsam a ira, e minhas ventas gélidas retorcem, ao menos trato de exalar toda a possessão aos caminhos baldios, enumerando troças e vitupérios a meus remanescentes amigos de outrora.
Gesticulo ao aferir meu relógio dourado, puxo suas correntes, e o iço, estou comportadamente correto com meu intuito, as nuvens rubras se escureceram há cinco horas, e estão negras como o alto mar, e a lua brilha como um farol, estou a ponto de me esgueirar em meu prazer, solicitando aos deuses um pouco de bajulo, retrocedendo da culpa que jamais fora minha, e observando as tramas fabricadas dedicadas a minha ruína. Meus valores caídos por terra, posição de homem arruinada e um grande escárnio sobre meus ouvidos. Pagarão!
Nas dependências do lupanar, cá estou, olhares de desprezo me seguem e tamanha frustração para aqueles que absorveriam minha queda como o gosto de sidra numa traça colonial. Ruborizo, assento e peço uma garrafa de gim. Sentimentos presos de meu ser e o gosto acetinado que ronda em minha língua, seguro a ponta do indicador com meus dentes, as presas tracionadas a minha unha, eu a arranco de assalto. Um esguicho de sangue, a dor continua e o sadismo instauram em meus pensamentos. Serei feliz.
O lenço trocado pela quarta vez se emerge na pele nua e traga um pouco menos de sangue, suponho que estou cicatrizando, mas nada me da menos angústia que a espera da bela e o mancebo. Apontam suas faces sobre o vitral espelhado, olho de soslaio e os convido para um papo de cavalheiros.
- Ainda tens aqui tua presença?
- Cá estou Mauro, aventuras ainda com essa donzela.
- És muito bela.
- Sim, a vejo, e ela me vê também.
Os cabelos negros de Perla, a jovem que acompanhava o ministro, a cidade esgueirava a conhecer a dama que o tragara para si, como um objeto de teus desejos mais íntimos, a volúpia e a sonoridade com que a chamariam após o divórcio e a mudança de lar. Por sua vez, não tratava apenas de enamorar-se com ela, permitia até que a mesma cuidasse de alguns títulos financeiros, sonegando ao Estado impostos e requisições. Como um acordo de cavalheiros, o casal se espelhava em golpes altamente conceituados, e proporcionavam a si mesmos a soberba entre os demais.
Presumo que estão a ponto de liquidar-me, se não o tivessem desmoralizados, os meus registros fotográficos em um lupanar e o grande ministro entre a cidade e a aristocracia, não seria necessário o litígio moral e o matrimonial, seja com os eleitores ou a esposa.
- Sugiro que tomemos um pouco de gim - Interpelou a dama.
- Como queira, sentem-se, não ficarão a noite toda assim?!
Os passos não condizentes das faculdades mentais de meu caro companheiro que no qual a pupila de meus olhos insiste em admirar, colhem o ódio que tal feitor impusera sobre mim as chagas de uma carreira majestosa, obviamente colaborara em assassinar meus resquícios de luz na arte, objetivando aos críticos a mínima aceitação de todas minhas criações emblemáticas a proferir a cintilante opinião sobre a cultura e as possibilidades futuras de uma nova organização social. Menosprezo que tuas estratégias tenham dado certo, obtendo ônus contra meus críticos, fez me naufragar em passos rápidos.
Ainda que não tenham percebido meu flagelo o exasperei as tuas vistas e desdobrei o lenço que cobria meus dedos, e acentuei um escárnio sem pestanejar.
- Vês Mauro, os críticos me tiraram também a unha.
- Talvez o tenha merecido.
- Tua família ainda o admira? – Sorri cinicamente
Senti que minha zombaria o afetara, e a acompanhante sorria em teu ser com prazer ao que liquidara teus dotes e o casamento com tal gracejo, que se sentiu nas nuvens em um píncaro de safiras ao ouvir tais palavras. Requererá outros copos, estamos há uma hora em nossas mais sulfúricas palavras. E necessito dosar um pouco de meu grave sonido, para que sorria educadamente.
Ao colocar mais uma dose posta a mesa, as luzes do palco se acenderam e a meretriz bailou a primeira canção da noite, e o espetáculo procedeu, ao que me referiria a um golpe certeiro eu o conclui, aos trejeitos da que dançava, os olhos de todos fitavam com tal prazer que obstinariam a segui-la por horas.
- Vejo que é a hora de partir, a prima donna se apresentara.
- Fique Marcos, estamos prazerosos de tua presença.
- Mauro, apartar-me-ei. Mas antes, o último brinde!
Brindaremos o ultimo gole de uma só vez, e sem que percebessem em um de minhas visitas aos toaletes, cortei com meu dente a unha que há pouco havia arrancado, e mergulhei numa solução de ópio e eserina, ainda pingando coloquei metade em cada copo, sem que pudessem pensar, em nossa mesa havia tantos corpos e carnes que assumo a certeza que sequer notaram, ao que pudesse parecer estranho, coloquei um pouco da solução em cada recipiente, cerca de um dedo cada, e no balcão pedi que o garçom o completasse com gim e meia cereja cada.
- Este é o ultimo drink, pedi que o maitrê fizesse tal esmero a meus convidados.
- Beberemos em um só sorvo. – Disse Perla, que a quantidade excessiva de álcool já administrava seus pensamentos.
- Levantemos os copos! – Disse – A nossa amizade!Após engolirmos percebi a face de ambos retorcidas pelo gosto incomum e rimos uns aos outros, entre nossa amizade feliz e os esconjuros posteriores, afastei-me e os admirei o com o cair da noite, quando as nuvens iam-se além da maestria da madrugada, elas beijam a terra, e a cerração caia sobre as janelas do lupanar.
De minhas convicções sádicas tive o prazer de analisar e participar levemente da queda de Perla e Mauro, fazendo-me lembrar a todo o momento o pedaço de unha que jazia em seus estômagos, reconheci os rostos macilentos caídos no tecido aveludado do sofá que estivera há algumas horas, e o semblantes descrentes dos novos companheiros que se aproximaram deles e não formulavam a si próprios a revelação deste caso desconhecido.
Completamente consternado diante os demais, toquei o rosto dos corpos e disse em bom tom, estão mortos, fechei minhas pálpebras e baixei meu chapéu em honra aos meus adoráveis companheiros, acreditando até mesmo que fosse um sonho ébrio e as possíveis extremidades do caso adquirissem outra rota a finalizar.
Esmaecido e sem vitalidade, caminhei para fora, e despedi-me dos demais, caminhei sem trocar passos, e assumi minha virilidade e meu corpo ereto, que há pouco estivera encarquilhado com tal catástrofe noturnal.
Uma onda de orgulho e satisfação brotou e de assalto olhei para o céu e as estrelas brilharam como as iniciais dos defuntos, e em meu riso macabro saboreei o instante com prazer, vingança e realização.
- Marcos Leite
*Dedico este conto aos meus saudosos amigos Lee Rodrigues e Mauro Alves, os quais protagonizaram tal trama mórbida.
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