Os olhos da morte
“De olhos acesos, e veloz tal como um leopardo, ele vinha em minha direção, carregando seu mestre, que como sempre brincava de ser Deus...”
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Meu pai sempre me disse para não me afastar muito de casa, mas a cidade cresceu, minha casa estava cada vez menor e a comida, essa parecia ficar cada vez mais cara. Meu próprio pai pagou com a própria morte.
Incidentes como a morte de meu pai me fazem refletir sobre a vida e as circunstâncias pelas quais sobrevivemos. Sobreviver, é, no fim é o que importa.
Há tantas perguntas sem respostas e há tantas respostas para uma só pergunta. Já que somos origem de um mesmo pai, isso nos torna irmãos? Ou seria o sangue, a única e verdadeira aliança capaz de construir um vinculo familiar? Talvez a cor dos olhos, a fisionomia, a raça??
Somos um bando de animais e a única razão de estarmos vivos é o instinto de sobrevivência que nos acompanhará por toda nossa vida, e quando esse inexiste logo não a razão para viver.
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As quatro estranhas patas se deslocavam simultaneamente, movidas por uma força incomum tal fosse magia negra. A pele brilhava até mesmo no escuro, não havia pêlos, tampouco sinal de sangue correndo por sob a bizarra pele, lembro-me certa vez de ver o estranho bicho ao longe, se afastando e deixando um rasto de medo por onde passava tamanho era o alvoroço de meus amigos e familiares.
Confesso que já ouvi vários sons de animais distintos, mas essa criatura parecia vir direto do inferno. Ela não devorava as vitimas, destroçava-as pelo caminho, tratava seus corpos como meros obstáculos. E seu corpo era ainda mais forte do que de um búfalo feroz, o rugido era alto, um brado monstruoso. O som era grave, potente, e para muitos, ensurdecedor, mas por algum motivo naquela noite estava tudo tão silencioso.
O silencio somente foi quebrado por um lascar de galho seco em meio à campina. Caminhei sorrateiramente, venci meu medo e fui em direção ao som do desconhecido. Ouvi o assobio nefasto da coruja prenunciando alguma morte e por fim um bater de asas alarmantes surgiu por sobre minha cabeça.
Assustei-me, curvei o pescoço em direção ao chão e fechei os olhos, apavorado. Meus pêlos arrepiaram e então eu corri.
O rugido da fera havia sido desperto, e ele zombava de minha fuga enquanto ziguezagueava pela estrada de terra deixando um rasto de poeira.
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De olhos acesos, e veloz tal como um leopardo, ele vinha em minha direção, carregando seu mestre, que como sempre brincava de ser Deus.
Sou apenas um ser irracional para muitos, mas nunca matei por mera e simples diversão, não, sou puro instinto. E é por isso que vou sobreviver.
O monstro metálico era guiado pelo homem de baixa estatura que continuava a me perseguir pela estreita rua. Ele parecia controlar o animal de alguma forma, pois via suas mãos segurando o objeto circular enquanto ele mostrava seus dentes brancos com total ironia.
Senti-me encurralado, papai sempre me ensinou que não devíamos caçar por ali, sou um animal selvagem, um lobo, e quando vi aqueles olhos amarelos quase me cegando fiz a coisa mais idiota que podia ter feito, eu parei como um bom cão doméstico, escutei o barulho das patas bem próximas a mim e então morri.
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Um assobio, um rangido, um barulho estranho e o baque do monstro pulando pelos buracos. O homem saiu de dentro dele como se a barriga do monstro fosse sua casa. De olhos semicerrados vi-o se aproximar de mim com uma arma a mão e um sorriso sarcástico preso aos lábios.
A fera permanecia rosnando para mim, ainda de olhos acesos. O homem me chutou no chão verificando se ainda estava vivo, ele iria me matar, quando me levantei ignorando o monstro assassino e avançando no braço dele. Senti minha mandíbula apertar com intensidade a carne saborosa dele enquanto o grito de dor ecoou pela noite.
Rasguei a pele dele e senti o cheiro do sangue brotar molhando minhas gengivas e descendo pela minha garganta. Minha fome era tanta, eu o queria agora, era ele ou eu. Ele podia querer se vingar, ou até matar outros de minha espécie. A arma dele caiu ao chão e ele queria correr para o monstro, foi quando percebi que a criatura não atacaria se o homem não estivesse dentro dele.
Avancei contra ele e o derrubei com minhas patas, ele caiu e se virou para mim imerso em terror. Rosnei e deixei que parte de minha baba caísse por sobre o rosto dele, as mãos dele tentavam afastar-me enquanto minhas garras o feriam e meus dentes estraçalhavam suas mãos. Por fim cravei meus caninos na garganta dele e arranquei um pedaço da pele, mordi mais uma vez, mais uma, até que ele não se moveu mais.
Saí de cima dele depois de devorar mais um pouco de sua carne, olhei para o monstro, ainda ouvia o rosnar dele, mas ele parecia me respeitar. Rosnei para ele e uivei na direção da lua, corri para mata e me afastei, meus olhos enxergaram a morte de perto, mas os olhos da morte são como espelhos, se você a vê a sua espreita pelos olhos de alguém, logo basta refletir o olhar e atacar.
Fim.
Apenas matando a saudade!