O Escritor

Eu não conseguia mais escrever. Minha prodigiosa imaginação, tão louvada no passado, se dissipou, e tal qual fumaça, foi levada pelo vento e desapareceu. Sentia-me traído, como se a companheira amada e fiel tivesse fugido sem deixar sequer um bilhete de despedida. Fiquei amputado; um pedaço de mim, o meu melhor pedaço, foi extirpado bruscamente, deixando-me incompleto e órfão do sucesso. “Ah, o sucesso e seu brilho viciante! Como viver sem ele?”. “Impossível.”, esta é a resposta.

Caí na inanição literária e a frustração me abocanhou, deglutindo a mim e as minhas páginas em branco. Perdi-me no estômago do ostracismo, fui digerido pelas enzimas da mediocridade, deslizei maciamente pelos intestinos do fracasso, transformei-me num bolo fecal de letras porcas e mal cheirosas. Terminei meu tortuoso trajeto sendo expelido pelo esfíncter rugoso do meu público. Desci, descarga abaixo, no conceito dos meus outrora fanáticos leitores e fui parar no esgoto.

Meu sofrimento maior era perceber que virara um homem comum; comum como qualquer imbecil falastrão.

Meu talento para escrever era divino. Eu era um deus; um ser superior que desdenhava dos fãs, das editoras e de seus malditos revisores. Eu era um rei, e imperava despoticamente. Contudo, isso mudou. Minhas quedas nas vendas, e o fracasso do último livro, fizeram com que eles rissem de mim e me ignorassem com deleite sádico. Virei um inseto rastejante prestes a ser esmagado pelos pés vingativos, e não tão descuidados, do mundo editorial. E isso eu não poderia suportar! Tinha que fazer algo a respeito... E fiz!

Numa noite em que eu destilava minha insônia e meu vazio, afogado na angustia, vendo meu reflexo na tela não redigida do computador, resolvi sair sem rumo, sem destino, depois de muito tempo de clausura, mas, resolvido a acabar de vez com a tristeza doentia em que me encontrava.

Depois de vagar por quase uma hora, rondando a esmo, parando de quando em quando em botecos para tomar um trago, me vi em frente a um pub que deixei de frequentar a muitos anos. Com o reconhecimento, prestígio e fortuna, alcançados com meus dois primeiros livros – fato inusitado para um escritor no Brasil -, eu comecei a frequentar lugares sofisticados e finos, onde desfilavam os ricos, as celebridades e os intelectuais de araque. Abandonei estes ambientes requintados após meu declínio criativo, por não suportar os olhares de escárnio dirigidos a mim. Os fuxicos que ecoavam por minhas costas quando eu me afastava me humilhavam, deixando-me deprimido. Trancafiei-me em minha mansão por longos anos, ruminando minha derrota, até aquele fatídico dia.

A visão do meu velho bar predileto me fez viajar no tempo. Antigamente, muitos escritores do underground, lugar de onde eu vim, faziam suas reuniões naquele pequeno muquifo com cara de inferninho. Embriaguei-me muitas vezes dentro deste recinto enfumaçado, sonhando um dia ser um escritor reconhecido, como acabei me tornando. Só não desconfiava que o sonho transformar-se-ia em pesadelo.

Resolvi entrar, tomar umas doses, sair e dar um tiro na cabeça. Ou melhor, um tiro na boca, com o cano da minha pistola encostado ao meu palato mole, para que o projétil não encontrasse nenhuma resistência e pudesse fazer seu mortal trajeto sem empecilhos, abrindo um rombo generoso na parte superior do meu crânio durante sua saída, possibilitando um jato caudaloso de sangue da minha mente infértil e seca, que banharia todo o meu corpo inerte. Foi desta forma que a minha personagem mais famosa tirou sua própria vida no meu livro de maior aclamação. Seria justo que seu criador, no caso eu mesmo, Peter Leite, o maior escritor brasileiro dos últimos tempos, o encontrasse no inferno usando o mesmo método. “A vida é mesmo um círculo perverso”. Eu podia ver nitidamente as manchetes na mídia do dia seguinte: “A vida imita a arte! Escritor decadente suicida-se dentro do seu carro com um tiro na boca, da mesma forma que ‘Brutus’, seu personagem mais conhecido”. Estaria mais uma vez em evidência nas primeiras páginas de todos os jornais e revistas. Esse mórbido vislumbre me consolava.

Enevoado com esses nefastos pensamentos, entrei no estabelecimento. Ele continuava escuro, pequeno, aconchegante e com cara de puteiro. Suas paredes eram forradas por um cafona e empoeirado carpete preto, todo decorado com desenhos, pinturas e imitações de rubricas de escritores e músicos famosos. No telhado havia uma abertura como se fosse um teto solar de um carro. Nos dias sem chuva podíamos beber contemplando as estrelas. Direcionei-me, de cabeça baixa, - não queria ser reconhecido por ninguém -, a mesa que eu costumava sentar, nos fundos do pub, onde estavam as caricaturas e as supostas assinaturas de Álvares de Azevedo e Bukowski. Eu bebia a valer sob a benção deles.

Acomodei-me, acendi um cigarro, pedi um uísque. O lugar estava praticamente vazio, era uma terça-feira abafada e o relógio marcava uma e quinze da manhã. Apenas eu, um casal sentado à mesa próxima da entrada, duas moças e um rapaz, parecendo chapados, ocupando uma mesa no centro do recinto, e uma jovem mulher que conversava animadamente com o balconista, estavam no estabelecimento. Todos os funcionários eram novos, não reconheci ninguém do passado que pudesse me identificar. Não era de se estranhar, a última vez que estive naquele lugar foi há quinze anos. Tranquilizei-me.

A jukebox se lamentava melodiosamente com os acordes da guitarra satânica de Robert Johnson na música Crossroad Blues. Uma rajada de um vento inexplicavelmente gelado entrou pela abertura do teto, e ricocheteou em meu corpo, me fazendo tremer. Calafrios.

Três doses depois, eu me levantei para ir embora e acabar de vez com aquela agonia. Antes, tinha que ir ao banheiro urinar. Cambaleei um pouco ao andar, estava muito bêbado, coloquei as mãos nos bolsos e segui com passos miúdos e inseguros. Inevitavelmente, acabei passando pela moça que conversava com o barman, em direção aos sanitários. Levantei o rosto ao cruzar com eles, e meus olhos esbarraram com o olhar dela. Olhos doces, castanhos. Sorriso sexy com lábios voluptuosamente vermelhos. Usava um vestido preto, até os joelhos, e um casaquinho azul escuro, de mangas longas, com botões prateados. Calçava botas de cano alto combinando com o vestido. Os cabelos, negros e ondulados, estavam soltos. Pelo que pude ouvir eles conversavam sobre literatura. Meu corpo estremeceu levemente.

Quando voltei do banheiro, depois de aliviar a bexiga com uma boa mijada e o estômago com uma bela vomitada, e me sentindo menos embriagado, parei ao lado da linda mulher no balcão e iniciei uma conversação. Tive o cuidado de ter a certeza que ela não me conhecia. Quero dizer, lógico que ela já ouvira falar do escritor Peter Leite, mas, não associou a minha figura com a do escriba. Apresentei-me como Pedro, o nome dela era Cíntia. Dez minutos de papo no balcão e a convidei para minha mesa; ela aceitou. Começamos a conversar sobre livros. O universo começava a conspirar a meu favor. Algum problema na máquina de som fazia com a música de Robert Johnson se repetisse inúmeras vezes. “I went down to the crossroads... Asked the lord above for mercy. ‘save me if you please’...”.

“Então, você escreve?” Perguntei. “Sim, escrevo desde criança, tenho centenas de contos escritos, mas, só esse ano consegui publicar alguns.”. “Não pensa num romance, num texto longo?”; “Tenho a ideia de um, ele ainda está flutuando em meu pensamento, não escrevi nada ainda. No entanto, sei que saíra de uma vez só, quando resolver botá-lo para fora.”; “O tema versa sobre o quê?”; “Ah, é uma louca história sobre um assassino em série, médico do SUS, que coleciona a pele das mulheres que tortura e mata. Ele escalpela suas vítimas, na verdade ele despela a pessoa inteira, como se desossasse uma ave, sob o olhar deslumbrado de sua esposa, que usa o couro extirpado como um vestido. Ela veste aquele receptáculo oco de epiderme, cobrindo todo seu corpo e seu rosto deformados por queimaduras que sofreu durante um incêndio na casa de seus pais na sua adolescência. Excitados, eles fazem amor, enquanto ela está transformada em outra pessoa. Macabro, não?” Ela perguntou. “Genial!”; respondi com voz nervosa. Meus olhos brilhavam, meu coração disparava dentro do meu peito, comecei a suar. “Você está bem?”, ela perguntou. “Sim, estou muito bem, muito melhor agora que te conheci.”; respondi cheio de charme e más intenções. Ela sorriu brejeira, ao passo que Johnson continuava a cantar. “... You can still barrehouse. Baby, on the riverside. You can run. You can run...”.

Levá-la até minha casa não foi difícil, ao contrário, foi bem fácil. Transar com ela, deu um trabalhinho, mas valeu a pena. O mais árduo foi fazê-la narrar toda a sua história, e colocar para fora as ideias do seu romance. Ela relutou muito. Contudo, eu fui contundente. Algemei-a na cama e a torturei. Não resistiu aos meus tabefes, chutes, queimaduras de cigarros, baldadas de água gelada, perfurações em seus joelhos com pregos enferrujados, mamilos cortados com alicates de unha, orifícios espetados com cabos de vassoura, dentes arrancados com uma colher de pedreiro, nariz quebrado com um martelo... Depois deste pequeno incentivo, acabou cedendo. Ela falou sem parar durante horas, e eu escrevi como um alucinado por três dias seguidos, sem parar para comer ou dormir. Estava em transe. A sensação de me sentir de novo um artista era fabulosa. Aquela jovem me completou novamente, não mais me sentia um aleijão. Cíntia era uma fonte quase inesgotável de conceitos extraordinários e fatos absurdos, ela seria uma grande escritora se não tivesse trombado comigo, não tenho dúvidas sobre isso.

Esses fatos ocorreram há dois anos, e neste ínterim escrevi mais dois livros de imenso êxito e vendas astronômicas. Voltei com tudo ao estrelato. E estou feliz. O mesmo não posso falar de Cíntia. Há um mês, o meu manancial particular de imaginação secou completamente, sua mente definhou, desintegrou. Não conseguia articular uma única frase. Estava como lobotomizada. Suguei tudo de inteligente que existia nela. Não tive escolha a não ser matá-la. E foi o que fiz, não antes de arrancar sua pele e guardar sua silhueta no armário do meu quarto. Em breve terei que caçar minha nova inspiração.