O Quadro

Aquilo mudou minha vida intensamente. Atravessou qualquer linha entre a fantasia e o real. Me fez amadurecer e me tornou dura.

Antes de contar o fato decorrido, creio que convém descrever o local onde esse se passou.

A casa em que eu vivia quando criança era muito sóbria. Logo, a sala de visitas não era muito diferente. As cortinas eram brancas no forro e verde escuro no primeiro pano, com barradinhos dourados.

O papel de parede era verde muito escuro no qual se viam símbolos simétricos cor de creme.

O piano ficava no canto esquerdo. Sob ele um tapete verde aveludado contrastava com o brilho do taco encerado. A mesa de chá á uns cinco metros garantia o requinte da cômodo e evidenciava o requinte e bom gosto da casa.

Eu era a filha adotiva de um casal rico e infeliz. Fui largada em frente à casa, ainda recém nascida. Meu pai jamais ousou me amar. Eu era, além de bastarda, garota. Ele queria um herdeiro e minha mãe era estéril. E como minha mãe sofria com isso. E como isso a vitimou. Ao contrário de meu pai, minha mãe me amava. Eu era sua bonequinha, seu doce ser.

Só me dava o melhor e vestia-me com as melhores roupas. Ensinou-me a bordar, a ser generosa e amável. Apesar do muito dinheiro e dos luxos, era um mulher de alma muito humilde. Tinha para si, mas também dava muito aos que necessitavam.

Mas isso em nada tocou meu pai.

Este, com o passar dos anos, se tornou bêbado e agressivo. Na verdade, podemos dizer que ele se tornou essencialmente agressivo: era um estado seu, independentemente de estar sóbrio ou não, mas se acentuou a medida que o vício levou à família a beira da falência.

Batia constantemente em minha mãe. Maltratava não somente seu corpo, mas também seu psicológico. Ela, cega de amores, aguentava tudo. Ela nunca conseguia o deixar. Sempre dizia que um dia ele mudaria, que era apenas uma má fase, mas que tudo ficaria bem. Mentia para si própria e eu nunca soube nem entendi o porquê.

No dia do aniversário de meu pai, ela saiu cedo de casa. Tão cedo que, não me acordou e, conseqüentemente, perdi a hora e não pude ir a escola.

Ele em comemoração ao aniversário saiu para embriagar-se mais cedo também. Não o cumprimentei. Fiquei sozinha em casa. Esperei minha mãe para o almoço, mas ela também não apareceu.

Só voltou no fim da tarde trazendo um embrulho de papel pardo nos braços. Entrou radiante dentro de casa.

- Mãe onde a senhora este… - comecei a perguntar, mas fui interrompida.

- Olha filha, olha!- disse rasgando o papel, sentada no sofá.

Aos poucos se revelou um quadro. Nele havia ela mesma, segurando um recém nascido, vestido de azulzinho claro. Ambos sorriam radiantes.

Ela levantou-se e o pôs em cima do piano, cuidadosamente.

- Lindo não acha?- perguntou a mim.

- É… - respondi meio confusa e sem jeito.

- Será o melhor presente que já pude dar a seu pai.

Eu sabia que não daria certo. Sabia que ele odiaria que ele xingaria e que ele a espancaria. Ainda que ele gostasse, xingaria e bateria. Era a única coisa que sabia fazer.

Assim, quando meu pai chegou mais embriagado do que nunca, ela o arrastou até a sala e mostrou o quadro. Ele mal sabia onde estava.

- Veja amor… feliz aniversário… - disse ela mostrando o quadro, feliz.

Ele parou um momento, tentando focar a imagem. Quando conseguiu, a lucidez voltou-lhe agressiva.

- O que é isso?! QUE BRINCADEIRA IDIOTA É ESSA?!

- Amor, deixe-me explicar…

- VAI EXPLICAR NADA! NADA! SUA DIABA! MALDITA! ZOMBA DE MINHA CARA! SUA INCAPAZ!

Minha mãe chorava desesperada.

- Me escute…

Ele jamais havia ferido a minha mãe. Naquele dia, porém, ele tinha uma faca.

Ele a empurrou no sofá e avançou sobre ela. Eu corri desesperada para tentar conter, mas fui empurrada contra a parede, batendo a cabeça. Ainda zonza vi seu olhar de fúria sobre minha mãe e o descer da faca em seu útero.

- NÃO!- gritei desesperada. - NÃO! NÃO!- corri até ela, abraçando-a.

Meu pai parou, meio que chocado, meio que sem saber em exato o que fazer.

Parecia que agora, havia se arrependido. Sabia que havia passado dos limites definitivamente. Que era a ruína. O fim.

Minha mãe agonizava, mas, não desgrudava os olhos de um ponto em específico. Olhava para o quadro.

Nele, a cabeça da criança sangrava deformada. O sangue escorria e pingava sobre o piano tingindo suas teclas.

Meu pai também havia se virado e olhava horrorizado para o quadro, pasmo.

As últimas palavras da minha mãe explicaram muito e ao mesmo tempo nada.

- Você… acaba… de matar seu filho. O filho homem que você sempre quis. - disse dirigindo-se a meu pai e deixando-se levar pela hemorragia e pelo desgosto.