“Talvez tudo esteja escrito naquele tal livro da vida que as religiões tanto falam. Quiçá Deus tenha um propósito para todas as coisas e deveras escreva certo por linhas tortas. Mas o destino de um homem é ou não é imutável?”

Um Homem de Deus
 
Fanático que era fui à igreja buscar a palavra. Senti que precisava ouvir o que ele tinha a me dizer sobre meus pecados. Cheguei dez minutos mais cedo, ajoelhei-me e orei. Em minhas orações o pedi perdão por mais uma falha. Foram dez minutos de perfeita comunhão. Senti que havia uma forte conexão naquele momento. Podia ouvir os fervorosos glórias e aleluias entoados ao seu louvor. Abri os olhos e vi o púlpito à frente de toda aquela congregação.

O olhar carismático chegava até a irmandade de uma forma acalentadora. Todos dobramos nossos joelhos para uma breve oração. Levantamos nossas mãos aos céus e elevamos nossos corações ofertando um lindo cântico de louvor diretamente a Deus. O culto seguiu como de praxe, e entre hinos, preces, palavra e exortação me senti realmente satisfeito ao findar daquela santa reunião. Ele parecia ter falado comigo. Disse inclusive que nos perdoava por todas nossas falhas e que era conhecedor de nossos corações. Saí da igreja em lágrimas, enquanto muitos me abraçavam, também em meio ao choro, emocionados. Era algo realmente maravilhoso. Deus havia falado conosco.

Lembrei-me de cada um dos crimes hediondos que havia cometido. Quantas garotas já haviam saciado minha fome, minha sede pelo sexo selvagem. Quantas virgenzinhas haviam sido corrompidas por mim e depois deixadas em qualquer canto, estranguladas, mortas de formas que até mesmo eu duvidava que conseguiria imaginar. Mas há um demônio em cada um de nós. Lembrei-me de seus rostos, dos gritos presos em suas faces assombradas, e o pior é que recordei também do desespero de seus pais. O quanto aquilo abalava a fé deles. Eu vivia entre o céu e o inferno, meu coração era metade luz e metade sombras. Mas como eu podia ser bom, sendo mau? Como eu poderia ser mau, sendo bom? O que eu era afinal?

Essas perguntas me cercaram a vida toda. Meus pais queriam tanto que eu seguisse o caminho correto, a vida inteira criado dentro de uma igreja, mas o mundo era algo cruel. Quando completei quatorze anos, me cansei de ser a chacota da sala de aula. As garotas me chamavam de santinho, de gay, caçoavam de mim. Ouvia as frases maldosas, “Lá vem a mocinha” “Aposto que dentro da mochila ele tem um bíblia”...

Eu resisti aquelas piadinhas por muito tempo. Fui firme e fiel, até conhecer Ana Flávia e me apaixonar por ela. Eu parecia ter conhecido outro mundo, ela era atrevida, insaciável, queria a todo custo fazer sexo comigo. Resisti até onde podia e então me entreguei. Mas ela só queria tirar minha virgindade. Tudo não passava de uma maldita aposta que ela e suas amigas haviam feito. Eu fui seduzido por aquela serpente traidora que me deixou as traças. Mas ela teve o que merecia. Desapareceu alguns meses depois, logo que eu venci a terrível depressão a qual havia me enterrado. Até hoje eles não encontraram o corpo dela, também pudera, a enterrei tão fundo, nas profundezas do meu ser. Ela estava para sempre em meu coração, era a metade podre de minha alma. E então me tornei o que sou.
Mas se Deus me perdoava, se ele falava isso comigo, então decerto eu sou um dos escolhidos dele.

Enquanto caminhava para fora da igreja, cercado por todos os fiéis vi a filha de um deles olhar sorrindo em minha direção, e comentar com sua irmã, o quanto eu era bonito. Vendo que eu a havia escutado, ela timidamente desviou o olhar e ao mesmo tempo com certa dose de ousadia sorriu revelando-me seus pensamentos mais sórdidos. Seu pai estava ao seu lado abraçado com sua mãe.
Um casal que servia a Deus dignamente. Era uma família simples, mas feliz. Olhei para ambos e saudei-lhes com a paz. Samuel, o pai da moça se aproximou de mim, me disse o quão bom era ver jovens como eu, seguindo o caminho de Deus, e que a obra que estava sendo feita naquela cidade era algo realmente grandioso. Sorri para ele e me despedi com a certeza que havia encontrado uma nova vitima. De costas para eles ouvi Samuel dizer para sua filha.

- Veja filha, pra que ficar procurando jovens no mundo lá fora. Esse sim é o tipo de homem que eu queria com que você se casasse. Pois esse jovem pastor é realmente um homem de Deus.

Esperei que todos fossem embora e me preparei para fechar o salão, e enquanto trancava a porta me lembrei de quantas vezes vi meu pai fazendo o mesmo. Abri o portão ao lado da igreja e entrei em minha casa. Olhei para a árvore no meio do jardim. Era a vida reinando sobre a morte, era o meu segredo guardado sobre a figueira que minha mãe me deu após o ocorrido. E como aquela árvore fizera a Adão, suas folhas camuflaram meu pecado, e eu que antes me sentia nu de repente estava pronto para ser um homem de Deus.

Agora só me resta rezar para que eles nunca suspeitem de mim.

Fim.
Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 16/05/2013
Código do texto: T4293945
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