"a alma penada"
Certa noite escura e fria do inverno mineiro, n´uma cidadezinha pacata de povo acolhedor e simples, em Morrinhos, tem-se notícia de um acontecimento que irei narrar para todos vocês do jeito e forma, contado pelo protagonista da história. Depois de longos anos, por obra do destino, ou não, convivi quase que diariamente com o personagem principal dessa esquisita história – ele, irmão de meu cunhado. Seu nome Naldinho, apelidado de “cabeção”; pessoa simples, de hábitos comuns, gostava de umas “biritas”, e que biritas. Bebia quase diariamente, com ou sem os colegas de “gole”. Adorava aquele “ranço” de boteco, ouvindo os papos sem nexos que certamente rolava entre os beberrões; às vezes, surgia algum assunto de relevância, mas com intensidade mínima, no mais, era papo de “bebum”. Então, n´uma dessas noites, após bebericar com os companheiros de boteco e ter enchido o saco com tanta conversa à toa – certamente – despede-se e vai em direção à casa dos avós, os quais, residiam n´uma rua perto de uma empresa destinada a comercialização de urnas e caixões, muito conhecida da cidade, por ser a primeira no nesse segmento. Daí, todos a conhecia, mesmo contra a vontade. Naquela noite, Naldinho cabeção como de costume, sem agasalho, n´um frio de pelar macaco, apressa o passo, naquela rua de terra batida; ora pisava em falso diante de tanta escuridão, ora, procurava um lugar mais claro para trafegar. Depois de ter andado uns vinte minutos, isso já passava de meia noite, não se via nem uma viv´alma na rua, o sapato, já dava sinal de vida, apertando o dedo mínimo, quando não apertava o calcanhar e lá vai ele... Ao chegar próximo do quarteirão da sua casa, avista a valeta enorme no comprimento e na largura, no meio da avenida por uma distância longa – a prefeitura estava fazendo uma rede para o saneamento básico (esgoto) nas avenidas mais trafegadas da cidade e como essa o fluxo era muito grande, fora escolhida. Avenida Leão de Judá. Máquinas, equipamentos, montes de terra, caminhões, uma bagunça só! Parecia até a construção de Brasília. Sem falar nos barracões de logística exclusivos para o serviço. Como Naldinho cabeção trafegava por ali há anos, conhecia como a palma a mão. Ao aproximar da rua de sua casa, pelo fato da valeta ser bem larga, a prefeitura pôs tábuas para a travessia; de um lado para o outro. Em frente a sua rua tinha, uma dessas passagens e após transpor, descia uns trinta metros do lado esquerdo do passeio, chegava à sua casa. Pois bem... ao chegar no local da passarela, a tábua não estava no lugar, alguém certamente retirou-a dali, passando a mão na cabeça, aliás, no cabeção, ficou sem atitude e pensativo: será que vou ter que voltar até o mercado? Não é possível... sacanagem! Derrepente surge, sabe-se de onde, uma mulher enorme de uns três metros de altura, cabelos jogados do lado do rosto, compridos, um vestido vermelho longo, não se via os pés; as mangas do vestido longas, cobria as mãos e Naldinho, arrepiou dos pés a cabeça, passando as mãos nos braços, como que levando um pouco de calor pelas mãos. As pernas tremiam... não conseguia ver o resto da “figura”; foi quando ela disse: está querendo passar para o outro lado? Ele com a boca seca, somente acenou com a cabeça positivamente. Ela toma a palavra e diz: eu também! Vi que logo ali na frente tem uma tábua para passagem. Vamos até lá e passamos. Ele, louco para ficar livre daquela “situação” concorda e sai dois ou três passos na frente. A mulher logo atrás... Naldinho com calafrios no corpo inteiro só desejava chegar o mais rápido possível, atravessar e “sumir no mapa”. A misteriosa, ía conversando e fazendo perguntas a ele e temeroso respondia quase monossilabicamente. Quando já próximo da passagem, a mulher diz a ele: olha! Te mostrei a passagem; fiz companhia para você, agora podia me levar até mais a frente na minha casa, é logo ali. Sem jeito e no afã de recompensar os serviços dela, resolveu atendeu seu pedido e pergunta onde morava. Ela responde esticando o braço. É logo ali! Vamos? Com o olhar vertical para o chão, começa a andar. Depois de alguns minutos, agora o medo silenciosamente convida-o a perguntar: falta muito? Não! Responde ela, sempre andando mais ou menos dois passos atrás. Percorre mais alguns metros e bruscamente pára, vou só até aqui! Silêncio por instantes... e a voz suave e mansa ecoa novamente: Ah! Só mais um pouquinho! Já estamos chegando! Ele, conhecia bem a região e de imediato corre a vista – ainda que escuro – avista a uns cem metros o cemitério municipal e aí tem a noção da distância real da sua casa; impressionado com o tanto que andou e não percebeu, no impulso diz: aqui tá bom! Já andei demais e tenho que voltar! A acompanhante fica em silêncio. Ele mais uma vez tenta ver o seu rosto, sem sucesso. O cabelo na frente não permite que veja. E decidido, vira-se lateralmente dizendo: tô indo! A esquisitona, fez sua última tentativa: olha, já está chegando! É logo ali! Ele agora já encorajado: ah! Do tempo que tô andando e não chega a sua casa. Você diz que tá chegando e com isso já andei demais; tô cansado. Ela retruca: mas é ali! Ele irritado, esquecendo o medo, para finalizar, diz: onde? Cadê sua casa? Ela com os braços longos e cobertos com aquela roupa vermelha aparentando ser de seda, diz: ali! Apontando na direção do cemitério. Naldinho encabulado arrisca comentar não acreditando: mas ali é o cemitério! Naquele instante, sobe em todo corpo arrepios, medo e calafrios. Um vento lateral assopra sem motivos. Deixa a coragem de lado e com o coração acelerado procura do seu lado a mulher de três metros, não localiza. Olha de um lado, olha do outro, para frente, para trás e nada dela. O instinto de sobrevivência é mais forte e em direção a origem da caminhada parte em disparada, e quanto mais corre, a garganta seca, pernas trêmulas, o “gole” começa a esalar pelos poros; correria e pavor. Quanto mais corria, parecia não chegar mais a sua casa. Ao aproximar da passagem indicada pela mulher, o medo aumenta e se ela estiver lá? E n´um impulso atravessando sem olhar para trás atinge o outro lado, que para ele já foi um alívio. Desceu pelo passeio e logo alcançou a entrada da casa que de terror esmurrava a porta de entrada. Ao ouvir aquele desespero, a avó pergunta: Naldinho! É ocê? É vó! Abre logo! Quando abriu, ele estava esbirrado na porta de tal maneira que caiu na sala e levantando-se rapidamente dizendo para a avó: fecha a porta vó, fecha! Senão ela entra! Ela quem? Pergunta a avó. Fecha! E corre para o quarto, verifica se a janela está fechada e assenta na cama com a mão na boca, todo suado. A avó sem entender, vai para o seu quarto e achando ser delírio alcoólico do neto; e adormece. Passou a noite inteira acordado e impressionado com o acontecido. Sem acreditar, pensando naquilo, muito louco e irreal. Arrepia ainda só de pensar naquela mulher misteriosa e sombria. Pela manhã, de pé, vai até a cozinha simples, mas farta. O avô curioso, indaga o que acontecera na noite passada: Naldinho, que bagunça foi aquela que tu aprontou? Bagunça, vô? Porquê não foi com o senhor! Respondeu ele. A avó para amenizar, diz logo: Ôche! Isso é cachaça! Não vó, foi pinga não! Tinha tomado só umas duas. Foi delírio não! Aí o avô com sorriso tímido no rosto, pergunta: então fala aí ochente; o que aconteceu? Vou falar, deixa eu tomar água primeiro e, logo após tomar um copo d´água, começa a narrar o fato... depois de uns vinte minutos, após contar o ocorrido, pergunta: e aí, tava delirando? Fale vó! A avó com aquele jeitinho baiano de ser, sorriu e disse: Ochente! Tu encontrou foi com a mulher dos três metros. Isso é alma penada, fica vagando por aí procurando parceiro. O Naldinho com o corpo todo arrepiado, salta da cadeira em pânico. Tá brincando vó! Alma penada? Cruz em credo! Deus me livra! O avô se vira para ele com cara de gozação e diz: senta aí moço! Toma seu café e fica calmo! O assustado, sem saber como reagir e ainda sem acreditar no que acontecera na noite anterior, fica ali... pensativo... calado e nada de tomar seu café. O avô, levanta-se e sai para o quarto, a avó para a cozinha. Ao retornar, seu avô indaga se ele não vai sair para trabalhar, já que era de costume fazê-lo. Não! Responde ele. Hoje vou ficar aqui mesmo. O avô acena com a cabeça e sai para o seu trabalho. Ele, recolhe-se ao quarto e fica pensativo todo o dia. Sua avó percebendo que o neto ficara encabulado, aproveita para encaixar um conselho que há muito gostaria de falar: Ochente minino! Tu n´um vai trabalhar não? De dia num tem alma penada não! Ela aparece é de noite. Diz ele: Hi vó! Para com isso! N´um lembra não! Pois é meu filho, vê se para de chegar tarde em casa e para com essa cachaça também. Essas coisas gostam é de gente perdida. Vai procurar Deus. Depois do conselho, a avó sái do quarto para seus afazeres domésticos. Ele, ainda pensativo... Não sabemos se o conselho ou o medo, fez com que Naldinho chegasse cedo em casa por um bom tempo. A cachaça? Parou não! Continua bebericando e ressabiado com a quantidade ingerida. Nota: Você que gosta de tomar umas e outras, chegar tarde em casa, cuidado! Pode ser surpreendido com uma visita dessas a qualquer momento. Acredite! Aconteceu mesmo!