Por Um Vestido Azul -DTRL
Tema: serial killer

Quantas vezes, vezes passadas, ele repetiu por vezes sem conta: Essa será a última vez!
Mas não era, nunca era. Vezes seguidas repetiu aquela frase, muitas vezes deveriam ser a última vez.
No entanto lá estava ele, fazendo a única coisa em que sabia ser bom, destituindo de inocentes o fulgor da vida. Mas não havia arrependimento, nunca havia. Aquilo era algo prazeroso, pelo menos assim pensava sua mente perturbada e, sem uma barreira moral para controlar seus instintos insanos, ele continuaria desfrutando desse prazer malévolo. Como o escorpião de uma antiga e popular fábula ele seguia sua natureza e com seu ferrão envenenava quem quer que cruzasse seu caminho.
“Veja só você Andréia, vai ter uma noite inesquecível hoje menina!” – eu disse a mim mesma enquanto me olhava no espelho. O baton em cores discretas, o blanche no rosto, a cabeleira ruiva caindo sobre os ombros e o vestido azul de fino tecido valorizando cada contorno de meu corpo. Eu estava linda, não podia negar. E não poderia ser diferente, hoje a noite seria minha.
Uma última olhada no relógio, já era hora. Peguei minha bolsa, me dirigi a porta e a abri encontrando uma noite fresca e agradável, uma noite perfeita para sonhar e realizar sonhos.
“Amor, eu estou indo.” – pensei comigo mesma enquanto exibia um sorriso adolescente no rosto.
Ele a aguardava, e quando a viu mal pode conter o sorriso de satisfação. Sim! Ela veio conforme ele pediu, com aquele fascinante vestido azul que tanto o encantou. Não reparou em sua boca de baton, não reparou na fina maquiagem que tornava sua face ainda mais bela e não reparou em seu longo e singular cabelo ruivo que, por sua raridade, tanto fascínio despertava em outros homens, não, ele só tinha olhos para o vestido azul. Mas naquele momento era preciso disfarçar aquilo. Ainda não era a hora, era apenas um jantar, mas a sobremesa viria depois.
Vi meu príncipe, ele já esperava por mim. Gentilmente, e como só um cavalheiro faria, ele me cumprimentou elogiando meu perfume e puxando uma cadeira para mim. O restaurante era realmente um sonho, me sentia em um conto de fadas, apenas eu e meu amado príncipe, era uma noite perfeita e ele com sua conversa elegante me envolvia cada vez mais enquanto degustávamos de uma excelente safra vinícola. Meu Deus, como pude perder tempo com homens medíocres? Onde estava aquele lord que agora dividia a mesa comigo? Pensei não merecer tanto e aproveitaria cada momento ao lado daquele homem como se fossem os últimos de minha vida.
O encontro das taças de vinho produzia notas musicais de um suave timbre fazendo seu conteúdo violáceo vibrar, uma vibração parecida com os dois corpos ali presentes. O dele vibrava com a ansiedade por mais uma conquista e o dela vibrava pelo prazer de estar vivendo um momento mágico. Pois a cada palavra saída de sua boca Andréia se entregava mais e mais, era tudo o que ele queria e aproveitando do calor produzido pelo álcool ele decidiu ser hora de sair dali e a convenceu facilmente a ir com ele. Ela nunca diria não, elas nunca disseram não.
Senti como suas mãos fortes e seus braços robustos enlaçaram minha cintura e, mesmo assim, com delicadeza me conduziu para fora dali e me levou até seu carro. No trajeto sua boca encontrava meus ouvidos e o toque de seus lábios com minha pele produzia efeitos tão ou mais profundos que suas palavras de encantamento. Uma sensação única e desconhecida tomava conta de mim, sentia-me segura e protegida como poucas vezes senti na vida.
“Não acredito, estou vivendo um sonho?” – me questionei no silêncio de meus pensamentos.
Ele levou Andréia para o carro e partiu. No decorrer da viagem prosseguiu com o mesmo jogo de gestos e palavras, lances de sedução escolhidos a dedo, assim ela mal percebia o caminho por onde iam. Andréia tinha olhos apenas para ele e não via o carro entrar por estradas cada vez mais escuras e desertas, um caminho tão bem conhecido por ele e pelo qual já passara diversas vezes.
Só quando um solavanco brusco sacudiu o carro é que percebi onde estávamos, ou melhor, onde não estávamos. Havíamos saído da estrada, a nossa volta víamos apenas árvores e arbustos. Seguíamos por uma trilha estreita iluminada apenas por nossos faróis e traçada na terra somente por escassas marcas de pneus. Por um momento fiquei confusa e o questionei para onde íamos , porém ele me tranquilizou dizendo que eu iria gostar quando chegássemos, estranhei um pouco aquilo, mas nada que estragasse aquela noite perfeita.
O veículo chegou a uma pequena clareira no meio da mata, as árvores contornavam tudo como uma muralha deixando apenas uma passagem delgada que parecia conduzir a uma pequena trilha no meio da floresta. Ele olhou para ela, abriu a porta do carro e desceu sem dizer nenhuma palavra. Rapidamente fez a volta e chegou até a porta de Andréia a abrindo e estendendo a mão para que ela descesse. Andréia um pouco confusa sorriu e lhe deu as mãos aceitando sua oferta. Ela saiu do carro, sentiu o ar frio da noite e ouviu a algazarra das criaturas noturnas em meio ao vento que sobrava entre as folhas da floresta. Aquilo a assustou mais um pouco e querendo buscar proteção nas palavras de seu príncipe encantando ela perguntou:
- Amor, que lugar é este?
Ele sorriu mais uma vez e depois, repentinamente, deixou de sorrir e deu uma resposta pela qual ela nunca esperava.
De repente o mundo girou. Uma dor terrível inundou minha face. Senti meus lábios racharam e um de meus dentes se quebrar. Imediatamente fui ao chão, senti algo quente descer pela garganta e entendi que aquilo era sangue, meu sangue.
Ainda aturdida olhei para cima, lá estava ele. Seu olhar doce fora substituído por uma olhar frio e diabólico. Não mais sorria, sua face agora era tão dura como aço, um aço tão feroz quanto o de seu punho quando socou meu rosto.
- Mas por quê? – tentei questionar.
E novamente a resposta veio com violência extrema. Meu corpo se contorceu todo quando recebi em meu ventre a força de suas botas. Gritei, chorei, implorei por ajuda. Meus lamentos eram vãos, até os animais da floresta se renderam ao silêncio tamanha a selvageria daquele monstro em que meu príncipe havia se transformado.
Andréia se arrastava e chorava no chão se apoiando nos pneus do carro para tentar ficar de pé novamente. Ele olhava tudo aquilo e se deliciava. O vestido azul ficava assim mais bonito, cobrindo um corpo desesperado e dolorido. Aquilo o excitava e o embriagava. Ele havia escolhido bem, Andréia como todas as outras antes dela era a modelo perfeita e ele agora podia partir para a próxima etapa.
Então, calmamente mais uma vez ele contornou o carro sobre o olhar choroso e desesperado de sua vítima, abriu o guarda-luvas e tirou de lá um objeto longo e brilhante. Quando o viu aproximar-se novamente, Andréia em um último esforço conseguiu se colocar de pé e correu, se arrastando da melhor maneira que pode para a trilha entre as arvores, o único lugar que parecia levar para fora daquele pesadelo.
Ele empunhando uma faca delgada e afiada apenas riu e calmamente se pôs ao encalço da aterrorizada mulher.
“Ele é um louco!” – era a única coisa em que pensava naquele momento. Como pude ser tão burra? Logo eu? Deveria saber que príncipes encantados não existem. Idiota... idiota... idiota!
Não, lamentar não salvaria minha vida. Minha vida agora dependia de minhas pernas. Eu deveria correr. Mas a passagem escura em nada ajudava. Sem conseguir parar de chorar seguia por um caminho cada vez menos iluminado, apenas o distante brilho dos faróis deixados para trás guiava meus passos. Sem enxergar quase nada seguia sempre em frente sem me dar conta dos obstáculos no caminho.
E nessa louca correria minha pele foi arranhada e rasgada pelos galhos e espinhos da trilha, tropecei diversas vezes ralando os joelhos e machucando ainda mais meu rosto. Minha maquiagem agora era substituída por uma mistura de terra, lágrimas e sangue. Arranquei meus sapatos e sem eles continuei a correr, meus pés feriam-se com as pedras do caminho.
Cansada parei por um momento e segurei minha bolsa e então me lembrei de algo: meu celular! Ele estava comigo! Rapidamente o peguei disposta a pedir ajuda, entretanto encontrei apenas mais mágoas, não havia sinal algum. Mas o desespero foi maior quando ouvi passos atrás de mim. Acendi então a lanterna do celular e apontei para trás, vi a uma pequena distância o brilho de uma lâmina afiada se aproximar devagar. Disposta a não morrer nas mãos daquele maníaco usei a luz da lanterna do celular e iluminei o caminho da trilha. Ele não me alcançaria, não me alcançaria!
A pequena distância ele viu uma fraca luz se ascender. Como elas eram previsíveis! Sempre delatavam seu caminho, na escuridão buscavam a luz e a luz não fazia nada mais do que guiar a escuridão até elas. Ele brandiu a faca e seguiu calmamente pela trilha tão conhecida se esquivando dos galhos e espinhos no caminho. A certa altura ele parou, viu um pedaço rasgado de tecido azul em um galho, ele o pegou e por alguns momentos sentiu sua suavidade entre os dedos e depois o levou ao rosto onde sentiu um aroma doce e embriagador, era por aquilo que procurava.
Colocou o pequeno trapo no bolso e continuou sua caçada, ela não iria longe, na verdade estava indo para onde ele queria que fosse.
A fraca luz não ajudava muito, meu caminho continuava escuro e por isso não percebi o que estava em minha frente. Senti apenas quando meus pés tocaram o vazio e o chão deixou de existir sob meu corpo. Caí. Gritei. E chorei.
A queda foi curta, porém esmagadora. Percebi que havia chegado a um pequeno desfiladeiro, rolei sobre pedras pontiagudas, minha pele ganhava sulcos e perdia sangue, meus ossos trincavam e estalavam. Como uma boneca inerte rolava ladeira abaixo até que finalmente parei.
Zonza e sem forças, dores por todo o corpo, tento me levantar e não consigo. Não vejo mais meu celular, não vejo nada a minha volta. Porém sinto algo, sinto o bater de asas de insetos noturnos e um odor nauseante contaminar o ar. Com os braços apalpo o espaço a meu redor, meus dedos alcançam algo estranho e podre, sinto conformações humanas a me cercar, restos de mãos, pernas e braços. Aquele cheiro não era vão, eu estava em algum tipo de cemitério.
Então ouço passos aproximando-se devagar. Aos poucos um brilho vai clareando o pesadelo a minha volta e percebo meus temores serem verdadeiros: eu estou em meio a vários corpos, corpos já em decomposição, corpos de mulheres seminuas.
Aí eu o vejo, lá está o homem que pensei amar, ele segurava uma lanterna em uma mão e com a outra empunhava uma faca.
- Por favor, não me machuque! – digo a ele entre lágrimas.
Não adianta. Monstros não conhecem a piedade. Ele se aproxima, sinto o fio da lâmina calar minha garganta e minha história de amor termina ali.
Ele segura o corpo de Andréia, ela se contorce enquanto o corte em seu pescoço deixa fluir as últimas gotas de sangue. Quando todo o movimento cessa sobra apenas um corpo frio e sem vida. Cuidadosamente ele a despe de suas roupas e retira seu tão almejado troféu. Mesmo com a pouca luz ele admira o vestido azul manchado de vermelho e sorri sozinho na noite. Tanto almejou por aquele pedaço de pano! Desde a primeira vez que o viu decidiu que ele seria seu como todos os outros.
Ele olhou Andréia uma última vez, agora ela era mais uma entre os inúmeros corpos de jovens desaparecidas por causa de um vestido azul. Perguntou-se até quando prosseguiria com aquilo, disse para si mesmo que aquela seria a última vez, mas já havia dito isso antes. Talvez não existisse uma última vez, enquanto existissem vestidos azuis ele continuaria matando.

 
***

Ei, e você? Esperando o quê para participar do 6º DTRL?  
 
 
Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 25/04/2013
Reeditado em 25/04/2013
Código do texto: T4259363
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