A pele em que habito

Estar vestida em minha pele era extenuante. Vivia como um pássaro aprisionado em uma gaiola de ossos e carne. Eu era invisível aos olhos alheios, um vulto esquecido em um mar de gente cega. Sentia-me deslocada em qualquer situação, e até mesmo na presença de conhecidos, era uma estranha. Uma peça disforme, que jamais se encaixaria no quebra-cabeça que era o mundo.

As vezes o desespero escalava minha garganta, arranhando um grito mudo, sufocando meus medos. Pensei muitas vezes em riscar o pulso com uma lamina, deixar a vida esvaziar por entre as fendas, deixar a minha tinta rala se esvair. Julgavam-me desequilibrada, por isso me afastei de minhas funções sociais: professora, sim, uma louca diplomada. Como prisioneira de meus temores, sentia-os sufocar-me como um casaco pesado de inverno em dia de verão. E mesmo despida, nua em frente ao espelho, a sensação ainda me importunava.

Foi então, que tudo começou, com uma coceirinha, a pele avermelhada formigando a me atormentar. Parecia que a casca que me cobria, desejava me abandonar. Comecei a retirar as lascas, muito finas, que se desprendiam úmidas de minha carne, e os filetes de sangue escorriam por entre as feridas, mas inexplicavelmente sem causar dor.

As camadas de pele desatavam cada vez mais, livrando-me daquele insosso invólucro. Retirei as luvas de pele que recobriam minhas mãos, deixando tendões, músculos e ossos lustrosos a mostra. As calças saíram com um pouco de dificuldade e retirei as massas gordurosas glúteas com as mãos. Depois braços, pés e enfim a camisa de pele que recobria minhas costelas, onde estavam as glândulas mamárias mirradas, que sempre me causaram desgosto.

Mas ainda não era o bastante, algo a mais me aborrecia, mesmo ao me despir de minha pele, em meu âmago alguma coisa jazia aprisionada.

Retirei os músculos, fibras lustrosas tão cansadas e enrijecidas, desprendidas de tendões e ossos, estirados, rompidos, um a um. Camadas ralas de mim, deixadas no chão do banheiro em frente ao espelho. Sentia o peso a me abandonar, lentamente. Quando notei, o que restou, foram os órgãos em meu interior, os pulmões abaixo das costelas inspiravam e aspiravam o ar, retirei-o calmamente, assim como o baço, o fígado, o intestino e todos os seus menores aparatos. Logo depois os rins ( tão bonitinhos ), os ovários e o útero, no meu caso, completamente inúteis pois jamais foram usados em sua completude, inaptos para gerar vida ou prazer. Depois de esvaziar-me, observei de relance o pequeno coração pulsante, em um ritmo apático, em descompasso cansado.

Com os ossos brancos desnudados, vislumbrei o que restara de matéria e ainda sobrava-me o rosto intacto que distorcia um sorriso. Aquele rosto, a maldita face, estampada em fotos, retratos e quadros. Os mesmos olhos desiguais afundados na pele macilenta, o nariz grande demais para um rosto triangular. Com uma tesoura recortei os lábios, deixando-os com um sorriso permanente de dentes amarelos. Logo o nariz, diminuindo-o até transforma-lo em dois buracos finos. E por fim os olhos, que se moviam lentos em suas órbitas. Retirei as pálpebras oleosas, ampliando o círculo em minha face e com os dedos ossudos os extirpei, duas bolotas pálidas com pequeninas ramificações avermelhadas, as pupilas dilataram e a íris perdeu a sua cor.

Despida de mim, finalmente liberta, vislumbrei pela primeira vez, minha verdadeira essência humana, aquilo de tão belo e verdadeiro que jazia em mim. Mesmo sem minhas inúteis fontes sensoriais, sabia que a cegueira da carne não poderia me tocar. E em toda aquela carcaça desembalada, exposta e murcha, ao desmontar aquela estranha máquina corpórea, pude ver uma aura azulada a pulsar, abaixo das costelas. Uma diminuta estrela, cujo brilho tão belo bruxuleava em meu templo interior. A minha alma pulsante, tornou-se completa, os ossos desfeitos em luz, tornaram-se únicos para transcender, elevar-me para junto das estrelas. Pois então, enfim, senti, em minha completude, meu verdadeiro eu, minha alma, a essência mais pura e divina do universo.

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Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 21/04/2013
Reeditado em 25/04/2013
Código do texto: T4251451
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