Super herói
Eu nunca fiz nada de grandioso. Nunca fui o mais popular. Nunca fui o mais inteligente. Nunca fui o melhor em nada. Minha infância foi efêmera e minha adolescência apática. Escuto muita gente falar que essa é a melhor época da vida, eu particularmente discordo, na verdade discordo de qualquer um que disser que a vida tem uma época boa. Minha vida nunca teve nada disso, ela é cinzenta, tão cinza quanto nuvens de chuva num céu poluído.
Perdi minha mãe muito jovem, tão jovem que não há nada que lembre dela. Meu pai se esforçou para me criar, mas ele era ocupado cuidando de um pequeno império ferroviário, de modo que minha criação ficou por conta de empregados, que me tratavam tão mal quanto meu pai lhes pagava.
Estudei nos melhores colégios e me formei na melhor faculdade, fiz direito e o único motivo disso é que precisava passar muito tempo lendo, de modo que poderia evitar a companhia de todos sem me preocupar em ser indelicado. Sempre achei as pessoas chatas, não do tipo irritante, mas do tipo vazias. Quando elas falavam comigo nada me acrescentavam, eu poderia ter passado o mesmo tempo olhando para um prego na parede que o resultado final era o mesmo.
Mesmo assim a sociedade cobra por status e por conta disso me casei. Seu nome era Beatriz e eu gostaria de dizer que ela mudou a minha vida, mas na verdade eu a conhecia tão bem quanto sonhos tidos no meio da madrugada, pedaços de memória que não sabemos se tratar de realidade ou fantasia, ilusões que às vezes marcam nossa alma, mas num nível tão subliminar que não nos tornamos conscientes dela.
Meu pai morreu um ano após o casamento e não viveu para ter tido realizado seu sonho de ser avô. Não que isso me importasse muito, salvo meu diploma e casamento, o resto de minha vida foi uma grande decepção para meu pai, essa havia sido somente mais uma delas.
Então começou a guerra. No começo eram notícias distantes, longe demais para fazerem parte da realidade, mas as poucos ela foi se aproximando... Logo o país vizinho estava tomado, depois a guerra chegou as fronteiras, depois ela estava nos distritos e, antes que eu pudesse notar, ela envolveu tudo que eu tinha.
Fui convocado. Não queria lutar mas não havia muito que fazer. Ou pegava uma arma e matava os inimigos ou seria considerado desertor e morreria pelas mãos dos aliados.
Eu lutei. Entrei em batalhões e mais batalhões. Vi e gerei mais morte do que poderia ter imaginado. Mas que destino poderia ter um derrotado no meio de uma guerra? A morte? Não, isso seria fácil demais... Comigo aconteceu o pior... Eu fui capturado.
Muitas pessoas estavam naquela situação. Homens e mulheres que lutaram e agora se viam trancados e obrigados a trabalhar como escravos. Era comum ver pessoas falando sobre sua infelicidade, sobre como a vida antes era alegre e na forma que a guerra tirou isso delas. Para mim foi um pouco diferente. Aquela guerra me tirou tudo. Tudo. Não somente meus objetos, minha família e meu país. Eu perdi minha essência, perdi a minha alma. A vida se tornou mecânica, em um ponto que eu já nem me importava se precisava trabalhar sobre o sol escaldante, se era privado do sono, se era chicoteado ou se era deixado em um jejum forçado. As pessoas imploravam pela morte e se suicidavam as dezenas. Talvez esse tenha sido o plano invasor todo esse tempo. Tornar a nossa vida tão miserável que nós mesmos faríamos o favor de nos matar.
O tempo passou, de uma forma que eu nunca pensei que ele pudesse passar. Aos poucos minha situação se espalhou para os demais detentos, aqueles que não sucumbiam ao suicídio ou a morte causada por algum motim se tornavam apáticos como eu. Homens e mulheres que existiam para obedecer ordens e nada mais. Elas eram separadas das demais, formando um grande grupo que não conversava, não ria e, em determinado momento, sequer chorava.
Quem diria, eu, logo eu, a mais inerte das pessoas, consegui ser tocado por aquela melancolia! O pior sentimento que alguém pode ter, a responsável por arrancar a razão do homem, transformando-o em nada além de um animal sem rumo. Eu percebi na inércia daquela gente a minha própria imagem, e entender aquilo me foi como uma epifania, uma chama que queimou minha alma seca transformando-a em um espírito.
Mas claro que somente essa constatação não seria suficiente para me tornar outra pessoa. Havia muito terror e tristeza a minha volta, uma desgraça que se manteve mesmo quando a guerra acabou e os exércitos aliados marcharam para nos devolver a liberdade de nosso país despedaçado. Eu voltei para uma casa que não era nem um décimo de minhas antigas residências, para uma vida de miséria e fome. Para uma vizinhança de poucos rostos conhecidos e muitos novos.
E hoje, cinco anos depois, eu olho para um desses rostos novos. O verdadeiro responsável pela transformação que tive e que aos poucos vou tendo. Ele também olha para mim e na alegria de sua inocência eu o vejo sorrir.
- Papai, você vem jogar bola comigo?
Quando eu tinha tudo, pensei que não era nada. Agora, vivendo com tão pouco, vejo que algumas coisas podem fazer a diferença. Muitas vidas se foram e nunca mais voltarão, Beatriz foi uma delas, meu eu apático também. Mas diferente de meu eu apático, Beatriz tinha amigos capazes de se sacrificar por seu filho.
Nosso filho.
E eu serei o melhor para ele.
FIM
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Como disse, não consegui participar do 5º DTRL por falta de tempo, mas esse era o conto que tinha escrito para o desafio, fica para próximo :P