Falando com os mortos

Ninguém se sente confortável com certos tipos de dons. Não adianta dizer que são belos ou maravilhosos. Isso é apenas a impressão de quem está de fora, porque na verdade, nós que temos estes dons nos sentimos verdadeiros alienígenas, um povo estranho. Garanto, isso não é legal.

Acharia interessante entrar numa casa, ver um quadro com a fotografia de alguém que já morreu e de repente essa pessoa ficar parada na sua frente querendo se comunicar? Não, não é lindo, não é bom, nada bom.

Assim foi a minha infância, numa pacata cidade do interior, cheia de muita religiosidade e espiritualidade. Minha mãe sempre insistindo para que eu participasse das procissões de Nossa Senhora do Rosário, Das Dores, Dos Aflitos e de tantos outros que eu mesmo nem me lembro. Na verdade não via a hora de acabar tudo aquilo. Não, eu não me refiro às procissões: me refiro às visões. Isso mesmo. Eu caminhava debaixo daquele Sol escaldante e de repente me aparecia uma velha, morta há mais de trinta anos, ainda achando que estava viva. Ou então um desesperado sem entender absolutamente nada que tinha acontecido quando o monitor cardíaco só mostrava listras contínuas.

E como imaginar aqueles que me pediam favores? Dava raiva, não pelo fato de que eu tivesse preguiça em ajudar, mas a cada momento que eu tentava dar algum recado às famílias chorosas, acabava sendo taxado de louco ou alguém com brincadeiras sem graça.

Certo dia, entrei numa loja de livros. Após olhar alguns livros para a faculdade notei a presença de um homem de roupa um pouco estranha, fora de época. Vocês podem achar estranho, mas a coisa, de tão comum que era, seria cômica se não fosse trágica, isso porque nem sempre eu conseguia distinguir logo de cara se uma pessoa era viva ou morta.

Esse cara mesmo eu desconfiei logo no início, mas quando o vi passando pelo caixa e conversando umas palavrinhas com a atendente, tudo parecia muito normal, natural. Entretanto, instantes depois, percebi que a mocinha do caixa também não mais pertencia a este mundo. Há cerca de vinte anos, naquele mesmo local houve um incêndio. Quase todos sobreviveram, exceto um cliente e a mocinha do caixa. Era esquisito ver, todos os dias naquela loja, por repetidas vezes eles repetindo o ato da compra e pagamento do livro, numa verdadeira prisão da alma. Por esse tipo de visão ser tão comum na minha vida, eu já não me envolvia mais.

Na semana seguinte fiquei naquela loja por mais de uma hora e não aguentava mais ver aquela repetida cena, à qual acredito se repetir o dia inteiro.

Então, com certa naturalidade o chamei e ele se assustou por perceber alguém a mais que poderia vê-lo. Perguntei o que comprava e ele me mostrou um livro de receitas, de capa dura, cuja publicação remontava anos atrás. Eu também tinha notado que todas as vezes que ele se dirigia à porta de saída o livro caía no chão. Nesse cair, se enroscava na porta. No dia do fatídico incêndio foi isso o que aconteceu. Quando o volume caiu acabou por travar a porta, deixando os dois presos na loja e morrendo asfixiados.

Eu o acompanhei até o caixa, após o pagamento e até a saída. No instante certo, quando o livro caiu eu o segurei e entreguei em mãos. O rapaz me agradeceu e naquele momento desapareceu, para nunca mais voltar, assim como a moça do caixa.

Então é assim, isso é um pouco da minha vida. De uns anos para cá estas visões diminuíram drasticamente. Ainda bem, melhor assim, eu no meu mundo e eles no deles.

Se você acredita nisso? Não sei, não importa, pois foi só um desabafo.

Pedro, 1 de agosto de 1983

Paulo Farias
Enviado por Paulo Farias em 08/04/2013
Código do texto: T4229158
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