Dois Lados
1 - Tabula Rasa
Uma claridade muito forte atravessa meus olhos, de forma tão impiedosa que sinto lágrimas escorrerem por minha face. O tormento é tão grande que fecho os olhos novamente, poupando-os do desagrado da luz. Aos poucos vou abrindo os olhos, com muita calma e cautela, até acostumar-me com a luz, que agora percebo ser do dia.
Sinto um cheiro leve e quase distante. Tal cheiro só faz sentido quando percebo que estou deitado no chão, com braços e pernas rentes ao corpo, como se eu fosse um feto. O cheiro que sinto é de betume.
Levanto-me, confuso e desorientado. Tudo está esbranquiçado, pois uma intensa nuvem de fumaça me cerca. É um nevoeiro. Olho em volta, porém não consigo ver muita coisa, exceto um vulto, que entre a névoa se esconde. Ele usa um enorme chapéu, ocultando sua face. Em silêncio ele me observa, como um caçador concentrado em sua presa. Aproximo-me um pouco mais, a fim de ver melhor a pessoa que me observa. Apesar de a névoa dificultar minha visão consigo vê-lo melhor dessa vez.
O sujeito é alto e robusto. Ele usa um elegante sobretudo negro, combinando perfeitamente com seu chapéu, que sombreia seu rosto de tal maneira que não consigo vê-lo. Por um breve momento sinto aquela estranha sensação de déja vù. É como se o já tivesse visto antes, em algum lugar na minha mente oblívia. Talvez tenha mesmo, pois não consigo me lembrar de muita coisa. Nem mesmo o que faço nesse lugar estranho.
O homem sem face continua me fitando em silêncio. E pela primeira vez sinto medo, talvez pela maneira que ele me observa. O mais estranho é que conheço esses olhos, mesmo não podendo vê-los.
Um vento forte e uivante gela minha espinha, dispersando meus pensamentos e a névoa a minha volta, e revelando algo que não notei antes, algo oculto pelo nevoeiro. Um objeto de porte pequeno e cor brilhante, que logo identifico como uma navalha, pousa na mão esquerda do homem sem face. Olhando com mais atenção vejo manchas no objeto, manchas vermelhas, que escorrem pelo chão, formando pequenas poças de... Sangue? Deus! Entre essas poças vejo o que parece ser o corpo de uma pessoa. Sim, uma jovem, cuja beleza se perdeu entre talvez seu próprio sangue, deixando apenas alguns traços de sua antiga beleza – seus olhos azuis.
Levanto lentamente meus olhos na direção do homem do sobretudo. Sinto como se eles pesassem uma tonelada. Meu medo foi embora, e uma sensação de fúria estranhamente invade meu eu. Tento demonstrar isso encarando o sujeito. O desgraçado continua imóvel e me fitando, talvez esperando que eu faça algo. Ando alguns passos em sua direção, por puro instinto. Dessa vez ele se move, num movimento brusco, muito rápido, afastando-se de mim e desaparecendo na névoa. Penso em perseguir o desgraçado, porém uma onda de vertigem me impede de dar qualquer passo. Por um breve momento sinto que vou desmaiar. Procuro algo para me apoiar, mas nada encontro, e acabo perdendo o equilíbrio e caio no chão. Por sorte a queda é suave e não provoca nenhum ferimento ou lesão que possa me preocupar.
Ainda no chão percebo algo de estranho na névoa. Ela adquirira um tom avermelhado, quase de sangue, desfigurando-a para uma massa vermelho-sangue, como se houvesse caído uma tempestade de sangue sobre a terra, e umedecido a névoa com o tom surreal da morte – o vermelho. Será a vertigem causadora de tal visão?
Não sei.
E algo mais aconteceu. Algo extraordinário. Enquanto eu observava a transformação que a névoa sofrera, não notei que, no chão jazem centenas, talvez até milhares de pétalas de rosas, também vermelhas, que caem do céu e... Vaporizam-se, misturando com a névoa e deixando-a com um tom irreal e sombrio. A visão mais bela que já presenciei, e a mais assustadora também. É como se eu tivesse dentro de um quadro surrealista, vivenciando tal cena. Magnífico.
Fecho os olhos, mas percebo que a escuridão vem antes disso quando o vermelho começa a enegrecer-se. Sei que não estou com os olhos fechados. É como se o sol tivesse deixado de existir subitamente, privando a terra de qualquer luz e presenteando-me com escuridão aterradora. Sei que ainda não é noite, mas como explicar tal escuridão?
Não faço esforço algum para levantar-me, pois sei que não posso. A escuridão me confinou a este lugar, e a única coisa que posso fazer é esperar, somente isso, esperar.
Fecho os olhos e espero. Tudo parece sumir e evaporar, meus sentimentos, meus pensamentos. É uma sensação muito boa. Tão boa quanto mergulhar num sonho profundo e silencioso, e, não pensar em nada, absolutamente nada.
2 – Do Outro Lado da Janela
Da janela do meu quarto eu a observo mais uma vez. Apesar da intensa névoa que vaga lá fora consigo vê-la perfeitamente. Seu rosto parece triste e cansado. A mesma expressão de todos os dias. Ela observa algo além de sua janela e parece não me notar. Não fico surpreso, pois sei que a névoa a impede de ver qualquer coisa. Penso que, se talvez ela pudesse me ver eu poderia tirá-la desse estado de tristeza. Porém ela nem sabe que existo. Sou um acontecimento inexistente em sua vida.
Ando de um lado para o outro, até me incomodar com o som dos meus próprios pés se arrastando sob a madeira rangente. Paro e olho novamente pela janela. Ela continua lá, fitando a névoa crescente, sem ao menos perceber que eu observo e admiro-a.
Sua pele clara contrasta gentilmente com seus cachos dourados, que caem sinuosamente logo abaixo dos seus pequeninos ombros. Seus olhos, de um azul lívido e profundo unem a bela paisagem com seu rosto pequeno e levemente esculpido. A imagem mais perfeita que meus olhos já presenciaram. Preciso ir até o outro lado da rua e vê-la agora mesmo. Não posso ficar aqui sem fazer nada. Perdi tempo demais sendo um personagem oculto. Far-lhe-ei uma bela surpresa.
Desvio os olhos da janela e saio pela porta do quarto com as mãos no bolso, e mal percebo que assobio alguma canção, enquanto desço a escada que dá para parte inferior da casa. O silêncio na casa é tão abissal que o ponteiro do relógio da parede se confunde com as batidas de meu coração.
A porta que dá acesso a rua está apenas alguns passos a minha frente, mas já posso sentir o vento que faz lá fora. Ouço seu uivo triste e distante, cantando sua canção para que alguém possa ouvir.
Uma tímida rajada de vento me atinge suavemente no rosto, logo que coloco meus pés fora da casa. Agradeço ao vento por ter se acalmado e sigo meu caminho até o outro lado da rua, vez e outra parando para contemplar a névoa que me cerca, admirando sua beleza espectral. Fecho os olhos e tento pensar somente numa coisa – nela. Posso sentir seu perfume mesmo aqui fora ou em qualquer outro lugar.
Bom, acho que chegou a hora de vê-la, finalmente. Coloco as mãos no bolso e fico contente por saber que não esqueci seu presente. Observo a névoa mais uma vez antes de bater na porta. Por um breve momento sinto uma sensação estranha. É como se alguém por trás da névoa me observasse e seguisse todos meus passos. Olho a minha volta e ignoro tal sensação. Nada disso importa.
Bato suavemente na porta. O som é quase tão imperceptível que preciso bater na porta novamente. Dessa vez faço com mais força e acabo me assustando com o próprio som que provoquei. Encosto a cabeça na porta e respiro várias vezes sem parar, como um cão que percorreu um deserto a procura de água e nada encontrou. Preciso controlar meu nervosismo.
Não ouço ninguém se aproximar da porta. Estranho. Talvez lá de cima ela não possa me ouvir. Resolvo girar a maçaneta da porta. Um breve clique anuncia que a porta está aberta, sempre esteve.
O ambiente na casa é calmo e silencioso. Os móveis, a decoração, e até mesmo detalhes pequenos, como um simples porta-retrato, me faz ter breves lembranças, talvez de algum período de minha infância, na qual morei em alguma casa parecida, ou apenas a visitei. São alguns resquícios apenas. Nada que pudesse me lembrar com perfeição. Não que eu queira também, pois não tive uma infância lá grande coisa. Algumas lembranças não merecem ser recordadas, mas sim esquecidas.
Uma tênue e gélida corrente de ar passa instintivamente por mim. Olho para trás pensando ter deixado a porta aberta e constato que me enganei. A porta está fechada. Também não vejo nenhuma janela aberta ou alguma abertura que possa servir de entrada para o vento, porém vejo algo no chão, apenas alguns metros a minha frente. A sombra de um homem alto e robusto sobrepõe a minha. Percebo que ele usa um enorme chapéu. Um medo crescente desencoraja qualquer possibilidade de olhar para trás, na tentativa de ver quem me observa.
Meus pés tentam algum movimento, mas nada acontece. Meu corpo está inerte, assim como a sombra do sujeito desconhecido. Enfio a mão no bolso, e fico ao mesmo tempo surpreso e aliviado ao retirar algo que talvez possa me ajudar contra a sombra que me espreita. A sombra do sujeito repete o mesmo movimento que eu, retirando algo do seu bolso. Uma navalha talvez, igual a que tenho em mãos. Seguro o objeto firmemente em minhas mãos e, viro-me bruscamente, já em posição de ataque, a fim de finalmente ver a pessoa que me observa. Não vejo ninguém, não há ninguém. Apenas móveis em silêncio. Acho que já sabia que não haveria ninguém, algo dentro de mim já sabia. Olho a minha volta e acabo avistando algo que não queria ver. Recostado num canto da parede eu vejo, um grande e adornado espelho, cuja beleza e rusticidade me seduz. Sei que não posso olhá-lo, mesmo seduzido. Tenho muito medo. Medo de olhá-lo e esquecer quem eu sou.
FIM