Sonâmbulos

“Para se acordar às vezes é preciso fechar os olhos”
 
  Estava ali, deitada sobre o colchão empoeirado, cercada pelos fios da aranha, e coberta pelas asas do morcego.

  O vento frio e úmido tocava o rosto moderadamente quadrado, isso após ter entrado clandestinamente através da fresta assobiante dentre as duas abas da janela de madeira que jazia naquele mesmo segundo andar do casarão.

  Sobre o olhar enfeitiçado da nefasta lua, ergueu-se e pôs-se a caminhar perambulante pelo corredor inóspito e sombrio do local deserto no qual estava hospedada.

  As circunstâncias que a levaram até aquele estabelecimento eram de certo significantes.

  A noite certamente é uma criança sinistra, diz-se complacente com os que têm sono, mas revela-se perturbadora com aqueles que se mantém acordados, e obviamente o breu é tentador e impiedoso.

  Os pés da bela e jovem Liz tropeçavam em própria sombra. O pijama florido e listrado, tipicamente tímido e pouco atraente era o único pano que cobria e tocava a pele branqueada e magra. Os olhos entreabertos e avermelhados cumpriam o dever paradoxal de guiarem-na pelo sono desconcertante e involuntário.

  Em meio ao bizarro automatismo, seguiu, atravessou o vão vazio da porta que subdividia a casa, invadindo o corredor que outrora a causaria medo, mas agora era só um caminho, só uma passagem.

  As velas acesas, presas aos candelabros macabros e ostentadores eram tochas iluminando o ambiente. As chamas dançavam sadicamente por sobre a cera, que chorosa se despia de toda rigidez, enquanto as flamas queimavam com extrema avidez.

  Enquanto marchava insolentemente, trovões tocavam as nuvens. A tempestade molhava a terra e a lua chorava intensamente.  Era um verdadeiro show de luzes, raios e relâmpagos era tão belos quanto assustadores.

  O uivo de um cão chegou mais assustador do que deveria, mas nem mesmo aquele som a despertaria, e assim continuou veementemente em sua dita busca. 

  Ao atravessar o imenso corredor adentrou ao fim em uma sala maior onde a criança brincava e sorria. O ranger da madeira junto ao assoalho chegava choroso e assustador.

  A criança notou a presença daquele espírito ambulante, viajante do tempo. Sorriu maliciosamente para Liz, olhou-a e voltou-se para sua distração.

  Liz parou, parecia um pouco tonta. Escutou o som da voz da filha, ouviu aquilo com extrema estranheza e então se foi. No outro lado da sala sentado à cadeira de balanço, o velho a encarou.

...
 
  Liz estava em sua casa, acordada, estava feliz. Sua filha, Ione, permanecia sentada no chão brincando com sua cadelinha poodle, o nome desta era Chita.

  Na vida de todos nós a rotina é algo fatigante, o cansaço é mesmo algo assustador, estressante, e involuntário.

  Chegou á casa e acomodou-se, olhou para a filha, ela parecia estar feliz ali, olhando para sua bonequinha. Deixou a maleta no chão e pensou em tudo que havia feito até ali, no quanto trabalhava para manter a casa em ordem, para dar o luxo que ela merecia. Olhando para ela adormeceu e sonhou...

 ...

  Liz olhava para sua filha brincando com sua cachorrinha. Ione era linda, Augusto, o pai de Liz sempre a dissera que Ione parecia-se muito com sua falecida esposa, avó da menina. O nome dela era Vera, a mãe de Liz, ele a havia amado muito, mas enfim, as coisas mudam, afinal, a rotina é mesmo uma droga.

...
 
  Exausto, Augusto desmaiou na cadeira de balanço enquanto a mesma rangia, ao som do balançar sádico daquele móvel. Ao seu lado a mesma maleta que tanto o acompanhava. Em seus olhos o pálido cansaço explicitamente o castigava, enquanto as olheiras denunciavam sua persistência. Há quatro dias o sono era evitado, era contornado entre pílulas, energéticos e outros tantos meios que ele buscava.

  Em seu sonho, imerso na estupidez de sua ganância, sonhou com Vera. Sonhou com o pior dia de sua vida, o dia em que sua esposa o abandonou, ao decidir que não queria mais viver aquela vida a dois, pois estava cheia de cumprir a rotina diária de uma mulher que só vivia para agradar aos prazeres de seu marido.

  Augusto era um bom marido, mas era possessivo, extremamente ciumento, não aceitava que ela trabalhasse. Por fim ela se cansou e saiu de casa, simplesmente desapareceu.

  Um ano mais tarde Augusto descobriu através de uma prima terceira dela que Vera havia morrido, logo ele descobriu o real motivo da morte de sua ex-mulher. Ela morreu ao dar a luz a uma linda menina que recebera o nome de Lizandra, aquela mesma que ele tomaria para si e chamaria de Liz.

  Liz cresceu sendo mimada por seu pai, era bonita, mas não tanto quanto a mãe. Ele fazia de tudo para criá-la bem, dar todo luxo que ela precisava, era quase impossível entender porque sua mãe não quisera ficar com aquele homem, ao menos era isso que os avós de Liz a haviam dito.

 “Sua mãe tinha medo de seu pai”

 Mas como?  Liz simplesmente o amava e ele nunca a dera motivos para duvidar disso, ao menos até o dia em que ela engravidou de um garoto da escola.

  Como era de se esperar ele ficou possesso, mas como não ficar, afinal ele era o pai. O garoto fugiu, viajou para uma cidadezinha do interior e nunca mais foi visto, já Liz passou toda sua gestação longe do pai, tinha muita vergonha dele e temia que ele fizesse algo a ela. Ele disse que ela havia feito com ele a mesma coisa que a mãe.

  O dia do parto chegou e Liz foi encaminhada as pressas para a mesa de cirurgia onde o médico havia marcado a cesariana. Liz ganhou a menina e todos logo perceberam a grande semelhança, os avós de Liz olharam para o bebê e viram a própria filha ali, era como se Vera houvesse renascido.

  No dia seguinte Liz saiu andando pelo corredor do hospital, carregava o soro heroicamente. Chegou até o berçário e surpreendeu-se com a visão a sua frente. Augusto tinha a neta nos braços, e ninava-a com uma bela canção...

 ...Eu tenho uma bonequinha assim. Ela veio de Paris pra mim. Ela tem um lindo chapéu. E também um amor de véu...

  Augusto levantou-se, abriu à maleta de aço que sempre o acompanhava, os olhos ainda permaneciam fechados e as mãos se ergueram vivas e infames, assim caminhou sonambulamente.

  Liz ainda estava na cozinha, apanhou uma panela no armário planejado que o próprio pai havia confeccionado e ao pensar em erguer-se ouviu o barulho choroso.

  Assustada ouviu também o grito da filha, e por fim um baque. Levantou rapidamente e os olhos enxergaram por cima do balcão de um metro e vinte de altura que há pouco delimitava sua visão.

  O Homem foi desperto pelo som da panela caindo ao chão. Augusto viu-se repleto de sangue, um martelo às mãos, a cadelinha estava caída com o crânio esmagado, ensangüentada e Ione não estava tão diferente, a menina tinha uma mancha enorme bem no peito, onde o coração há pouco batera feliz, o rosto estava desfigurado e dois dentes quase boiavam sobre a poça de sangue que se expandia por sobre o assoalho. O barulho oco do martelo tocando o chão após se desvencilhar dos dedos escorregadios de Augusto teimou em ser ouvido por Liz.

  Ela atravessou o vão que delimitava os ambientes conjugados e no meio da sala vislumbrou o pai caído de joelhos. Chegando bem perto dele pode ver as lágrimas que o cercavam.  Ela queria matá-lo, queria fazer algo. Pegou o martelo que jazia caído no chão e Augusto ergueu os olhos, ela logo reconheceu o pai que a criou. Desesperada Liz viu o pai abaixar a cabeça e aguardar o golpe.

   Ela não podia matar o próprio pai, soltou o martelo, olhou para a filha e então caminhou pelo corredor, e lá estava ela. Ao som de um ultimo assobio e ao toque de um derradeiro e refrescante sopro de vida que úmido tocou-a, ela tentou escapar, escapar de toda loucura, de toda alucinação, de toda insônia que a havia tomado.

 Dormir não era mais possível, e para acordar agora ela só precisava fechar os olhos.

  Augusto sentou-se à cadeira de balanços, ficou ali enquanto ouviu o barulho da janela se quebrar e por fim um último estrondo do corpo de Liz caindo por sobre a cerca de madeira que contornava o casarão. A tempestade caiu após o show de luzes, e os trovões continuaram a gritar nos céus.

  ...

 No outro lado da sala sentado à cadeira de balanço o velho a encarou. Continuava vendo-as durante todos esses anos, Liz havia sido culpada pelo assassinato da própria filha, ele decidiu ficar ali até morrer, seu castigo era continuar presenciando a dor delas par ao resto de sua vida.

  Olhou para criança, que voltara a brincar com sua mórbida cachorrinha, ambas estavam repletas de sangue, e pareciam encará-lo.  Liz parou, parecia um pouco tonta. Escutou o som da voz da filha, ouviu aquilo com extrema estranheza e então se foi, caminhou novamente na direção da janela, ela só queria fugir dali, e tentaria escapar para sempre. 

Fim!

Apenas mais um conto para matar as saudades.

Abraços a todos e sejam sempre bem vindos!


Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 28/03/2013
Reeditado em 28/03/2013
Código do texto: T4212200
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