Gabriela

Já passava das 19 horas, o dia havia sido cansativo e improdutivo. Os clientes haviam sumido.

Pendurado no centro da sala, o velho ventilador parecia sentir o peso dos dias pelos quais eu estava passando.

Acabei de fumar um cigarro, e fiquei mais alguns minutos pensando no buraco negro em que minha vida estava caindo. Em queda livre.

Quando tomei a decisão de me levantar e saiu, ela apareceu na porta que estava aberta.

Não era uma mulher bonita, mas algo nela era atraente. Morena, aparentando 40 anos, cabelos presos, sem maquiagem. Seu olhar era vago, fitando o nada.

Tinhas os dedos esquálidos, ostentando apenas uma anel na mão direita.

Perguntou se podia entrar.

- Claro, respondi. Me levantando para recebê-la.

Puxei a cadeira para que ela se sentasse.

Ela me perguntou se eu pegaria um caso. Era algo bem pessoal, mas um tanto quanto complexo, mas que estava disposta a pagar muito bem. E me entregou um envelope com muito dinheiro.

Sem nem mesmo entrar em detalhes sobre o caso, aceitei. Ela precisava de meu serviço e eu precisava do dinheiro. Uma troca justa.

A princípio ela me disse que se tratava de um caso de traição, mas que iria muito além daquilo, envolvia algumas pessoas um tanto quanto diferentes, e que eu não me assustasse com o rumo que as investigações pudessem tomar.

Confesso que senti um certo calafrio e desconforto quando ela me informou sobre isso.

Mas já havia aceitado o caso.

Quando pedi para que ela me colocasse a par do caso, e que me explicasse exatamente o que ou quem ela queria que eu investigasse. Eu precisava de um ponto inicial.

Ela me olhou com aqueles olhos vazios e disse não saber por onde começar.

Ficou calada por uns minutos, olhando para minha mesa um tanto quanto bagunçada.

O tempo que ficamos em silêncio pareceu uma eternidade.

- Pois bem, ela disse. Precisa investigar minha morte e descobrir o assassino.

Eu não sabia se ria ou se me levantava e ia embora.

Mas no fundo, senti medo. Ela parecia falar muito sério. Convicta daquilo.

- Como ?? Não entendi. Foi só o que consegui falar.

- Foi isso mesmo que você entendeu. Ainda vai ficar com o caso? Ela me disse com um envelope na mão, que eu sabia que era o pagamento adiantado.

- Se eu deixar pra te pagar quando desvendar o caso, será impossível te entregar o dinheiro.

E me olhou fixamente em meus olhos, de um modo tão penetrante que parecia ler todos os meus pensamentos.

Estendi a mão e peguei o envelope.

- Sim, o caso é meu. Mas preciso de todos os detalhes.

- Amanhã nos encontramos no Bar Reencontro, às 14 horas. Ela falou, se virou e foi saindo.

- Espere. Qual seu nome?

Sem se virar ela respondeu: Gabriela. E desapareceu no corredor sombrio do quarto andar do velho prédio onde eu tinha meu escritório alugado. Aliás, com três meses atrasado.

Sai, tranquei a porta e fui para minha casa. Entrei no meu carro. Um maverick laranja.

A cena toda me parecia muito bizarra. Como investigar a morte de uma pessoa que ainda estava viva. A mulher era muito misteriosa.

Cheguei em casa quando já eram quase 22 horas. Subi para o segundo andar do prédio. Entrei e na penumbra da sala, me pareceu ver um vulto caminhando. Senti um perfume diferente. Agradável.

Com certeza era minha imaginação. E a tal mulher mexendo com meu psicológico.

Tomei uma ducha, comi alguma coisa, bebi outras coisas e acabei dormindo no sofá mesmo.

A noite toda foi agitada, com pesadelos envolvendo a mulher e o caso.

Pressenti que não devia ter aceitado o caso.

Acordei mais cansado do que quando fui dormir.

Precisava aguardar até 14 horas. Bar Reencontro.

Quando cheguei ela já estava lá. Estava com melhor aparência. Maquiada, com cabelos soltos, o mesmo perfume do dia anterior. Tinha até um sorriso bem discreto na boca de lábios finos.

Notei que ela era bem pálida. Talvez não tivesse notado por tê-la visto à noite no dia anterior.

Me dirigi até a mesa onde ela estava e me sentei. Ela ficou ali imóvel.

- Pois bem, me conte a história.

Tomei um gole do martini que já estava na mesa, e nem me preocupei em saber como ela sabia que era minha bebida preferida. Olhei para os olhos vazios e tristes dela e fiquei esperando que ela me passasse as informações.

- Vou te passar os nomes das pessoas que provavelmente irão me matar. O resto é com você.

Ela prosseguiu:

- Carlos. Meu tio. Mora nesse endereço. Me entregou um papel.

- Alexandre. Um amigo desde infância muito querido.

- Janete, minha irmã adotiva.

Me entregou os endereços e mais algumas informações e se levantou para sair.

Nem me deu tempo de pegar seu endereço e desapareceu como uma névoa no meio das pessoas que estavam no bar. Aquilo me pareceu muito misterioso. Pensei em desistir do caso, estava me dando medo. De verdade.

E percebi que Gabriela me parecia uma pessoa conhecida. Mas não conseguia me lembrar de onde.

Enfim, o caso estava aceito. Eu queria mesmo era resolver, e sair fora com o pagamento.

No dia seguinte fui até o endereço que ela me deu, fica do outro lado da cidade. Num bairro de classe alta. Rodei com meu maverick por um bom tempo até encontrar o endereço. Depois de rodar muito, entrei na rua citada, só faltava encontrar a casa. Ao parar em frente ao número que ela me passou, tive uma surpresa sinistra.

Estava bem no final da rua, em frente á um casarão abandonado, aparentando não ser habitado por muito tempo. Ao olhar para a casa, senti uma tontura, parecia que já estivera ali.

Quase não havia outras casas por perto. Entrei no maverick, dei meia volta e segui pelo caminho que havia feito para chegar até ali.

Não demorou muito para perceber que eu estava perdido. Avistei algumas pessoas na rua, parei e pedi informações sobre a tal casa e como eu retornava para o centro da cidade.

Me olharam desconfiados e com medo.

- A casa do fim da rua? Quer saber quem morou lá? Tem certeza?

- Sim, respondi sem ter certeza de que queria mesmo saber.

- Bem, ela está abandonada desde que algumas pessoas foram assassinadas lá.

E o assassino nunca foi descoberto. E os corpos ficaram lá apodrecendo no meio da sala.

Duas moças e dois rapazes, mas isso foi há muito tempo. O suspeito principal era um amigo deles que desapareceu logo depois. Nunca mais foi visto.

O caso foi arquivado por falta de provas.

Perguntei se sabiam os nomes das pessoas, mas não se lembravam.

Voltei para casa encabulado com tudo o que estava acontecendo.

Tentei fazer uma busca nos nomes que Gabriela havia me passado. Todos já haviam falecido.

Como ela seria assassinada por pessoas já mortas.

Eu precisava falar com ela urgente. Mas não tinha seu endereço, seu telefone, nada, nada, sem seu sobrenome eu sabia. Que vacilada eu havia dado.

A única coisa que eu tinha dela era o dinheiro no envelope.

Passou se um dia, dois dias, e nada de Gabriela aparecer.

Eu estava apreensivo. Mas não só podia esperar que ela voltasse e explicasse aquela brincadeira de mal gosto.

Cinco dias depois, numa quinta feira quando eu me preparava para ir embora do escritório ela apareceu. Estava muito pálida, cabelos desgrenhados, olheiras profundas e aparentava muita tristeza.

Me olhando friamente e sem ao menos me cumprimentar, ela começou a falar:

- Fiquei sabendo que você esteve lá. Não deve estar entendendo nada não é.

Confirmei com um aceno de cabeça. Ela continuou.

A impressão que tinha de que já a conhecia agora era maior, seus olhos, sua voz, seu jeito de falar. Tudo.

Ela baixou os olhos e ficou fitando o chão por alguns segundos.

Um ar gelado tomou conta da sala onde estávamos. Um arrepio tomou conta de meu corpo. Gabriela levantou a cabeça e olhava fixamente dentro de meus olhos.

Uma tristeza profunda tomou conta de mim, era como se toda a tristeza que ela sentia estivesse passando para mim.

- Amanhã, me espere em frente ao casarão. Estarei lá e desvendaremos todo o mistério.

Vou te ajudar. Você entenderá tudo. Está preparado.

Nem tive tempo de dizer que não estava preparado e ela se virou e sumiu como um fantasma.

Um fantasma...seria Gabriela um fantasma? Não, isso não seria possível.

Amanhã em frente ao casarão. Mas a que horas? Putz.

O telefone tocou com um som estridente que me tirou de meus pensamentos. Era Gabriela. Só me disse uma frase: Amanhã no casarão às 15h.

Desligou. Fiquei parado com o fone na mão, do outro lado apenas um chiado mudo.

A noite demorou a passar, tive pesadelos, com o casarão, com Gabriela, tudo muito estranho. Acordei várias vezes assustado, mais do que isso, apavorado seria a palavra correta.

Eu me via saindo do casarão todo sujo de sangue, correndo desesperado.

Ouvia gritos vindo de dentro do casarão. Gritos de dor. Uma cena horrível.

Aquele caso estava acabando comigo. Emagreci vários quilos em poucos dias e estava com olheiras enormes.

Bem antes das 15 horas sai e me dirigi para o local, agora já sabia o caminho, mas não queria correr o risco.

Chegando em frente ao casarão, estacionei meu maverick e fiquei aguardando, ainda faltavam 20 minutos para as 15 horas.

De repente notei que o tempo começou a mudar. Nuvens pesadas apareceram no céu deixando a tarde sombria e tensa.

Nada de Gabriela aparecer. Faltavam apenas alguns minutos, claro que poderia se atrasar. Mas acho que não era uma característica dela.

De repente olho para a porta do casarão. E para minha surpresa, lá estava ela, em pé, me esperando. Acenou com a mão, para que eu fosse até lá.

Confesso que aquilo me deixou intrigado. Desde que horas ela estava lá?

Sai do carro e me dirigi para a porta, sem pressa e com muito medo do que me esperava. Os pesadelos que tive durante a noite vieram em minha mente.

Gabriela tinha um sorriso sinistro no rosto. Algo não estava bem.

Ela pegou minha mão e entramos na casa. A sala enorme era assustadora.

- Não se lembra desse lugar? Gabriela perguntou.

Olhei para ela sem entender o que estava falando.

- Vamos, tente se lembrar. Não se lembra mais de mim?

Quando ela disse isso, se virou de costas para mim e a sala toda começou a girar, aumentando a velocidade. E como em uma viagem no tempo, o cenário foi mudando e voltando a ficar tudo claro e limpo. Me sente para não cair.

Depois de alguns segundos que pareceram uma eternidade, tudo parou.

Tudo estava mudado. Lá fora fazei sol e um vento agitava a cortinas.

Gabriela continuava de costas para mim.

Chamei pelo seu nome. Ela se virou devagar. E para meu espanto a reconheci.

Minha primeira namorada, de muitos anos atrás. Mas como era possível.

Eu não me lembrava mais dela, de como nos separamos ou o que teria acontecido.

- Quer saber mesmo que vai me matar? Você.

- Não, que loucura é essa. Como assim.

- Feche os olhos e você verá. Ela me disse....

Fechei os olhos e me vi entrando no casarão, com flores, eram para Gabriela.

Não havia ninguém aparentemente. Deixei as flores e fui ver os outros cômodos.

Ouço conversas e risos. Vem do quintal. Dirijo me para lá, mas ao mesmo tempo penso em voltar. Imagino o que pode estar acontecendo e sei que não vou controlar o ciúmes.

Volte. Saia da casa. Ouço uma voz me dizendo.

Mas não, continuei caminhando para o quintal. As imagens começam a aparecer distorcidas. Somem, perdem a cor, se misturam. Ouço vozes, gritos, como nos pesadelos. Não, não era possível. Me vejo exatamente como nos sonhos que me apavoraram tanto. Eu saia correndo da casa. Ensangüentado.

Abro os olhos. Estou sozinho na sala. Está escuro, como se já tivesse anoitecido.

Meu primeiro pensamento foi de ir até o quintal. Mas tinha medo do que encontraria lá.

Mas algo me arrastava para lá. O medo tomava conta de meu corpo. Meus pés pareciam estar grudados no piso velho de madeira. Com esforço para dar um passo após o outro segui para o quintal. Conforme eu caminhava, a casa envelhecia mais ainda.

Ao sair para o quintal, queria fechar os olhos para não ver a cena que se abria diante de mim. Estavam lá, quatro corpos, num estado de putrefação. O fedor era intenso, quase insuportável.

Gabriela apareceu do nada, subitamente, e estava muito próxima de mim.

- Por que? Por que fez isso? Por que não confiou em mim. Covarde.

Para onde você achou que poderia fugir? Achou que não pagaria pelo crime?

Achou que poderia usar sua mente doentia e se esquecer de tudo como se esqueceu até agora? Nós éramos inocentes e você nos matou. Por que?

Fui andando de costas, voltando para a porta que dava acesso á cozinha.

Gabriela me segundo. Ela estava toda suja de sangue. Suas roupas, seu rosto e braços.

Novamente o sol havia se escondido e estava escuro, muito escuro.

Consegui chegar até a porta de entrada. Me virei e sai correndo, tropecei, cai. Me levantei de novo. Corri. Tudo começou a virar, sabia que não iria chegar até o portão que dava acesso à rua. Me sentei no chão antes que caísse. Gabriela estava na porta, em pé. Me olhava com um misto de ódio e compaixão. De repente vi o casarão se decompondo em uma névoa e tudo voltar ao normal. Perdi os sentidos e cai.

Quando voltei do que imagino ter sido um desmaio, três dias haviam se passado desde que entrei no casarão com Gabriela. Estava em um leito de hospital. Ao ver uma enfermeira entrando perguntei sobre o que havia ocorrido e ela só soube me informar que haviam ligado para o hospital informando que um individuo estava caído na rua com um ferimento na cabeça e precisava de socorro urgente.

No mais nada sabiam sobre mim.

Gabriela, o casarão, os corpos e toda a cenas vieram em minha cabeça. Mas o que eram real? Quem realmente eu era? O que eu teria feito?

Essa seria minha vida para o resto de meus dias.

Quem acreditaria em mim? Quem?

Para onde irei quando sair daqui? Onde moro?

Não sei. Não sei quem sou eu ou se realmente existo.

A enfermeira saiu e fechou a porta. estou sozinho.

Me levanto e me aproximo da janela. Estou no segundo andar. Lá fora as pessoas caminham apressadamente. Não me lembro daquela esquina.

De repente uma transeunte, para e olha diretamente para a janela onde estou.

Dou um passo atrás, me assusto. É ela. Gabriela fica uns segundos me olhando.

Deixa um sorriso tomar conta de seus lábios. E continua a caminhar se perdendo na multidão.

Ela sabe que estou pagando pelo que fiz.

Ela sabe que desde aquele dia perdi minha sanidade.

Até quando viverei aqui nesse manicômio tentando encontrar alguém que acredite na minha história? Até quando?

E você acredita na minha história?

Paulo Sutto
Enviado por Paulo Sutto em 27/03/2013
Código do texto: T4210764
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