Sem Face

Costumava caminhar sozinha, aquela trilha deserta a deixava tranquila. Sua mãe sempre recomendava cuidado considerando-a uma criança, algo típico das mães que recusam-se a notar o crescimento dos filhos. Celestine lembrava-se disso, e de retrucar que naquela pequena cidadezinha de apenas 5 mil habitantes nada poderia lhe acontecer. Era guerreira da selva de pedras da cidade grande, acostumada a noticiários de homicídios, roubos e tudo o mais o que representa o terror da natureza humana. Ela mesma, uma jovem engenheira já havia sobrevivido a um assalto a mão armada. Não ficou traumatizada, nem recorreu à terapia, pelo contrário, sentiu-se mais forte. Não se assustava facilmente.

Ali, na pequena cidadezinha de Cerrado encontrava paz durante as suas férias, apesar do período chuvoso já haver passado a mata permanecia verde e exuberante. Caminhava por entre a vegetação típica do cerrado e grandes árvores que adornavam a estreita trilha: mangueiras, umbuzeiros, pés de castanhola, de oiti, podiam ser avistadas em espaços regulares. De ambos os lados, cercas de arame farpado delimitando os limites de pequenas roças. Ninguém trabalhava, até porque o período da colheita dos milharais já havia passado. Estava só, caminhava, se exercitava, e relaxava. Adorava aquele lugar. Quando fazia isso na cidade costumava usar os fones de ouvido e aproveitar um bom rock gótico, mas ali preferia o som da natureza. O ciclo da vida se renovava e às cinco da tarde os últimos raios solares adornavam a paisagem anunciando o fim de mais aquele dia e a ascensão das sombras da noite.

Celestine era uma bela jovem, morena, de pele extremamente delicada, nariz pequeno, cabelos lisos e negros até os ombros. Seu corpo era bem distribuído em seu 1,68 m. Sempre fora alvo de olhares maliciosos por parte de muitos rapazes. Usava roupa de laicra e calçava tênis. As curvas eram realçadas. Sua única tensão era a grande casa velha que via ao longe, depois das cercas. Apesar da distância de vários metros podia-se perceber a sua decadência, com uma pintura azul gasta, o reboco caindo pelas paredes. Na lateral percebia-se os tijolos de barro, típico de uma época em que as pessoas não usavam os tijolos de alvenaria, mais resistentes ao tempo. Era uma casa antiga.

Apenas uma pessoa vivia naquela desolação, um homem, que nunca saia. A solidão era a única compaia deste ser. Conta-se que certa vez se aventurou a ir à cidade, mas a incompreensão e maldade dos habitantes o fizeram arrepender-se dessa empreitada. Sobrevivia cultivando seu próprio alimento e comercializando apenas com o senhor Samuel Fernandez, único a visitá-lo.

As pessoas sempre perguntavam a Samuel como estava o rosto deformado de Francisco, e este dizia que não sabia, pois o homem recluso sempre usava uma máscara rudimentar à base de pano e papelão, com abertura apenas para os olhos e pequenas fendas para a boca. Essa proteção não permitia identificar se estava melhor ou pior, mas com mais de 40 anos, era impossível que estivesse mais atraente.

Francisco, esse era o seu nome, era forte e robusto, muito alto para os padrões locais, 1,90 metros. Era isolado e pacífico. Seus pais foram a única compaia que teve desde que nasceu com a deformidade no rosto, por serem muito pobres nada puderam fazer, e pelo fato de viver só na pequena casinha, muitas lendas surgiam em torno de sua pessoa, como lendas que eram, não retratavam a verdade, mas havia quem acreditasse nelas.

Celestine caminhava, ao longe avistava a casinha, mas não via sinal do homem recluso. Olhava para o relógio, já marcava 5h45min, começava a escurecer. Sabia que devia voltar, mas continuou. Subiu um pequeno morro de pedras e areia. Ao chegar no pico teve uma visão desagradável: três homens conversavam sentados no chão. Pareciam ser sujeitos fortes, que trabalhavam na roça, embora não tenha visto nenhuma enxada, foice ou ferramenta usada na lavoura. Os três a olharam repentinamente e imediatamente ela entendeu o significado daquele olhar, malícia. Sentiu náuseas.

- O que uma jovem tão bonita faz por essas bandas? – perguntou um deles de pele queimada pelo sol. Tinha uma barba rala e usava um grande chapéu de palha, com roupas rasgadas e botas brancas muito sujas.

- Só estava fazendo caminhada – disse sem aparentar temor.

- É muito perigoso para uma jovem tão bonita andar sozinha por aí desse jeito, ainda mais usando essas roupas – olhava o corpo dela dos pés a cabeça. Atitude repetida pelos outros dois.

Celestine começou a sentir medo das intensões dos três e decidiu ir embora, virando-se rapidamente, acenando uma despedida superficial e descendo o pequeno morro a passos largos. Os três ficaram a se olhar, entendendo-se mutuamente sobre a execução de intensões não muito nobres. A jovem caminhava rápido, tentando se afastar deles. Estava longe da casa dos avós, pelo menos 5 km segundo calculava, e a noite começava a vencer o dia. As sombras aumentavam. Nos locais isolados com grande vegetação nativa a escuridão chega muito rápido.

Sentiu medo e começou a correr olhando para trás. Quando se virou para frente viu um dos três homens na estrada, caminhado em sua direção. Ela parou e ele começou a correr. Ela deu meia para correr, mas viu mais um, este se encontrava bem próximo. Os dois eram muito parecidos, não muito alto, aproximadamente 1,70 e de pele que um dia pode ter sido clara, mas bastante castigada pelo sol. Também usavam roupas rasgadas e maltrapilhas. Antes que pudesse esboçar uma reação, Celestine foi surpreendida pelo individuo que a havia cumprimentado anteriormente, saindo do meio das árvores. Ele pulou em cima dela, tentando imobilizá-la, este era forte, e segurou seus braços, enquanto gritava palavras de baixo calão. Os dois se aproximaram rapidamente gritando obscenidades sobre o que fariam com a jovem.

Celestine se debatia e gritava como toda mulher faria diante de situação tão detestável, no entanto, não tinha forças para enfrentar três homens, estava escuro. Uma de suas mãos se soltou, agarrou um monte de terra seca e atirou para cima, cegando um de seus captores, com a outra socou outro com muita força. As pernas se debatiam freneticamente e chutaram o mesmo que estava por cima, distraído, tentando limpar os olhos com as mãos. Ela conseguiu se levantar e correu sem direção, apenas buscando fugir. Não foi longe, o terceiro agressor que nada tinha sofrido a agarrou pela cintura e ambos caíram no chão. Já refeito e com os olhos doendo, o que parecia ser o líder do bando ficou de joelhos e esmurrou a face de Celestine, gritando palavrões. O outro chegou e a segurou pelos braços. Ela começava a ficar inconsciente.

Quando a sua blusa foi rasgada e calça de laicra ia ter o mesmo destino, o primeiro agressor sentiu uma mão gigante agarrando seu braço esquerdo, impedindo-o de concretizar o ato. Apesar da fraca luz da lua que começava a imperar no céu viu um grande homem com uma máscara cobrindo a face. Não teve tempo de pensar nada com um poderoso soco vindo em seu rosto e levando-o de encontro ao chão. Os outros dois se levantaram rapidamente investido contra o estranho, enquanto era agarrado desajeitadamente pelos dois, o grande homem ergueu o punho e desceu como um martelo sobre a cabeça de um dos agressores que caiu desacordado no chão. O outro conseguiu dá-lhe um soco. Uma máscara voou levemente e pousou rasgada, no chão, como se uma borboleta fosse. O grande homem o segurou pelo pescoço, apertando com força. Empurrou contra uma árvore. Ao bater a cabeça no troco, este também desmaiou. Era o segundo fora de combate. Enquanto isso o primeiro a ser abatido tinha se recuperado e investia com uma faca na mão. O golpe foi rápido e a defesa também, segurando a mão direta do criminoso e golpeando-o mais uma vez. Não levantaria mais.

Francisco olhou a jovem desacordada no chão. Não sabia o porquê havia feito aquilo, não nutria bons sentimentos com relação às pessoas da cidade, mas a havia salvado. Foi até Celestine, notou que ela era muito bonita. Abaixou-se a segurou nos braços. Dirigiu-se acidade. Não sabia quem ela era, nem onde morava, mas decidiu que ao chegar à entrada da zona urbana a deixaria no chão. Venceu os 5 km rapidamente e chegou a área mais urbanizada onde há casas e ruas com pedras de calçamento, começou a deixá-la no chão, momento em que a jovem acordou, levou as mãos a cabeça e tentou se lembrar do que havia acontecido. Recordou rapidamente que um homem a havia salvo de uma tentativa de abuso sexual.

- Muito obrigada eu não sei o que teria acontecido.....- a voz ficou embargada quando viu a face à sua frente. Era desprovida de pálpebras e lábios, assemelhando-se a uma caveira envolta em pele seca. Sem sobranceiras, nem orelhas. Celestine Gritou!

Só então Francisco percebeu que estava sem a máscara. Pôs as mãos na face, aterrorizado! Virou-se e correu. Lágrimas brotavam de seus grandes olhos. Jamais se acostumaria àquela reação das pessoas. Engraçado perceber que mesmo depois de tanto sofrimento ainda podia chorar.

Ao vê-lo correr Celestine parou e percebeu o quanto havia sido injusta, nesse momento algumas pessoas apareceram e a socorreram, avisando os familiares e conduzindo-a ao pequeno hospital da cidade, onde pôde tratar todas as escoriações que sofreu. Relatou a polícia e a família tudo o que aconteceu, surpreendeu-se ao perceber que ninguém sorria quando disse que foi resgatada por com-paia homem com rosto deformado. Os agressores jamais foram encontrados ou avistados pela cidade. Quando em companhia de alguns familiares Celestine se dirigiu até a isolada casa de Francisco “Sem Face”, viu a residência abandonada. Uma grande dor abraçou seu coração, chorou por perceber o tamanho de sua ingratidão.

Desde então nunca mais nenhum movimento foi visto na velha casa de Francisco. Samuel foi diversas vezes ao local, mas não o avistou mais, desistindo de procurá-lo, por fim. Mais uma lenda surgiu na pequena cidade de Cerrado, que ninguém ouse fazer nada de mal pelas redondezas, pois Francisco Sem Face, mesmo ante a ingratidão de seus habitantes, estaria à espreita, pronto a punir o criminoso com as próprias mãos.

FIM