Guia prático da sobrevivência, ou a anatomia da vingança

Por Ramon Bacelar

I

— ...quer dizer que além de fofoqueira e linguaruda, Dona Emengarda...

— Manipuladora e ciumenta, bru-xa. – Valter apalpou o pescoço dolorido.

— Mas é difícil acreditar.

— Pois é. A perucona de medusa e toda aquela carolagem não passa de fachada.

— Peraí, camarada...– Júlio suspirou antes de continuar –... que tua sogra é mais escorregadia que sabonete de bêbado, todo mundo sabe... – mordeu os lábios incredulamente –... mas agressão física... Não dá pra acreditar!

— Não...

— Vá lá que às vezes você pega no pé mesmo; suas gracinhas e apelidos nunca ajudaram...

— Não Julhão! – interrompeu com veemência. – Não é isso.

— Não?

— Ai... Merda de bolha! – sentou-se de ladinho, apalpando o traseiro como se acometido por uma epidemia de furúnculos. – Sorry, pensei alto – continuou constrangido. – Na verdade... A bruxa não é uma bruxa; não, não, quer dizer, quero dizer, não exatamente... A bruxa, na verdade... é uma bruxa...Literalmente.

— Que?! – segurou o riso antes de continuar – Bruxa? E a metáfora foi pra onde?

— Pro meio do seu... Porra Júlio, o negócio é sério! Não tá vendo?! – coçou os fundilhos. – Ai!

— Foi maus, Valtinho, literalmente.

— Uma merda que foi! – disse ofendido.

— Macumba, maldição, simpatia, pagode, feitiçaria... Bruxaria?– tossiu dissimuladamente e continuou sério. - Como, quando, onde?

— Nem eu sei ao certo.

— Não?

— Não... Acho que não.

— Eu te conheço? - questionou-o. – Então?

— Bem... A Wanda sabe que eu só como galinha ao molho pardo, mas ultimamente... Olha só ... – apontou para a janela –... nada de piu-piu nem cocoricó. O galinheiro tá vazio! – lamentou. – A megera anda usando sangue de galinha, folhas de louro e o diabo a quatro para me afastar da filha. Estou todo dolorido e mais esburacado que ralador de queijo, olha só!! – virou as costas.

— Um autêntico e refinado queijo suíço!

— Você é impossível cara.

— Eu? Pois é... – ironizou em tom reflexivo.

— Pois é o que?

— Pois é, né? – examinou o galinheiro. - Enquanto tem neguinho sem um puto no bolso fazendo macumba com caldo Knorr, Madame Meméia se dá ao luxo de surrupiar autênticas e deliciosas galinhas caipiras para fins nefastos... Velha chique, não?

— Você não consegue falar sério?

-Sério.

Silêncio.

— Chegue mais perto, Júlio...

— Hã?

— E aí?

— Fala.

— Fala você – aguardou. – Não tá sentindo?

— O quê... – suspirou fundo. – Eeeccaaa! Mussarela vencido. – tapou o nariz.

— Cala boca viadinho! Eu só pedi...

— Gorgonzola fresco! – gargalhou anasaladamente. – A jararaca colocou extrato de gambá em seu ‘Rexona for Men’?! Axe à base de ovo podre!

— Chega porra!! Estou me sentindo um lixo, um autêntico...

— Com rima ou sem rima?

O silêncio denunciou mais que escondeu.

— Júlio, chegou... Posso ser bem sincero?

— Manda meu caro.

— Hoje faz dez dias que a Wandinha... – mordeu os lábios - ... Cê sabe né? Não chega perto nem pra dar um cheirinho.

— Também, com esse cheirinho.

— Que?

— Nada, pensei alto.

— Estou dormindo de bruços no sofá! Meu sovaco tá, tá... A Maga Patalógica me pegou de jeito!

— E a julgar pelo seu estado, tá levando a sério mesmo. Feitiço brabo.

— A medusa não vai sossegar enquanto não nos separar. Lembra quando ela me obrigou a passar a noite no bingo só para testar a Wanda? E a conta falsa no Facebook?

-Sim. Sem contar aquela boataria dos go go boys... A Wandinha andava tão cheirosa e radiante.

— Cheirosa?... O que você está insinuando?!

— Eu? Imagina... - observou o amigo se contorcer. – Amor de mãe levado às últimas consequências.

— Para completar, ontem tive um pesadelo horroroso.

— Sonhou comigo?

— Antes fosse – refletiu melancolicamente. –Sonhei, ou achei que sonhava que era um sonhador apaixonado, no meio de um sonho...

-Que merda é essa!

— Aqueles sonhos dentro de sonhos, dentro de...

— Fala logo urubú... e mantenha uma certa distância da faixa de segurança – disse anasaladamente antes de espirrar.

— A primeira coisa que me lembro... Acho que... – refletiu - ...estava com a Wanda no Hawaii deitado em uma rede, no remelexo. Cê sabe... Dançando o hula-hula, hôhôhô, hehehe... – riu constrangido. - Cavalgávamos um dó menor, próximos a um estridente ti-co-mi-no-sol-fá, antes do derradeiro bate estaca quando, allegro ma non troppo, senti um formigamento no traseiro; de um pulo abri os olhos suando em bicas.

— Suspirou aliviado.

— Não! Suspirava suando em bicas de olhos abertos, sentado em uma porra de formigueiro numa praia do Caribe. Tentei me levantar. Doloridas ondas de formigamento percorriam meu culote, glúteos e regada...

— Me poupe dos detalhes!

— Foi maus! Pedi socorro me contorcendo fixo ao formigueiro; olhei os arredores, e em meio ao spray enevoado de ondas que moviam um revoltoso oceano de prata... – simulou um gesto afetado –... vi, eis que vi... Acho que vi! Ela, e-la; a velha bruxa, bruxa velha, bruxa e velha, rodeada de pergaminhos, galinhas pretas e folhas de louro; vestida em um minúsculo corpete negro, rebolando e balançando a perucona em uma cerimônia ritualística ao Som do Pará!

— Que merda é essa?!

— “...Oio-ôô, oio-ôôô!” A jararaca rebolante gesticulava freneticamente enquanto o refrão ribombava em harmoniosa sintonia com o formigamento na região do...Deixa pra lá! Não sabia se tampava os ouvidos ou coçava o traseiro, se coçava o traseiro ou, ou... Aaaahhh!! Fosse eu uma criatura de fé, tivesse eu... Como colocar? – Valter parecia envolto em um transe de afetação hipnótica. - Tivesse eu o segredo e sabedoria dos grandes antigos, imploraria a Poseidon...

— Você tá louco!

— ... ou invocaria um leviatã Cthulhóide.... – fechou os olhos como um médium picareta - ... e ele, ELE(!), desperto de sua onírica siesta milenar, com pegajosos tentáculos, abafaria minha audição enquanto minha mãos, presas no pesadelo de feitiçaria e ridículo rebolado caribenho, momentaneamente aliviadas, coçariam aquilo que não deveria inchar nem supurar (Cthulhu Fhtagn!). Mas não, não... Para mim, patética e insignificante criatura, só me restava fazer aquilo que minha constrangedora condição permitia: Socorro!! Gritei, berrei como um pobre diabo, mas antes que meus tímpanos sangrassem e o céu enegrecesse por completo, despertei... Das tempestuosas e formigantes realidades de pesadelos para o pesadelo da realidade... Abri os olhos e me vi sentado no vaso sanitário, preso em um feitiço coberto de folhas de urtigas, coçando de cabo rabo, em especial... no rabo. Maldita bruxa!

— Porra.

— Porra, digo eu – futucou os bolsos. - Olha só.

— O que é isso?

— Isso é o que é - arranjou as folhas no piso como um quebra cabeças. – Cantos, encantos e rimas, rimas, rimas. Não notou as manchas nas folhas?

— Símbolos cabalísticos?

— Dois mais dois?

— Letras?... Com sangue de galinha!

— Meu molho pardo foi pro beleléu.

— Onde arranjou isso?

— Encontrei atrás do vaso sanitário. Agora siga as palavras na diagonal... da esquerda para direita.

— Olheira: coceira, peito: peido, ferido: ardido...

— Ardido, ferido e fodido! Tô lascado do primeiro ao quinto!

— Não queria estar na tua... pele? – abafou o riso. - Ela pode até querer te afastar da Wanda, mas convenhamos que não é todo mundo que suporta ser chamado de supositório de baleia e ter o nome impresso em um cartão de natal com trocadilhos infames.

— Chega Júlio, eu sei.

— O feitiço virou contra o feiticeiro meu caro... Literalmente – observou pensativamente –; vilarejo, sogra, amor, ciúme, fofoca. A equação do capeta; dois mais dois...

— Igual a veneno de cobra e chifre queimado. A madame anda possuída pela perucona lilás e quer vingança! Vai matar dois coelhos com uma cajadada só.

— Esse troço vai dar muito pano pra manga.

— Ainda está lubrificando a máquina de costura!

— Quê?

— O começo de mais um ridículo novelão mexicano... – refletiu melancolicamente- ... E eu que achava ter abocanhado o papel de destaque neste drama patético; velha tão silenciosa quanto talentosa, se fosse homem teria os colhões do Hitchcock e mataria o protagonista no meio do filme com requintes de crueldade. Estamos no início de um legítimo...

— Não seja dramático.

— Mesmo? – encarou-o. - Venha logo antes que a dupla dinâmica chegue do salão.

— Onde?... Espere!

Adentrou o quintal como uma sombra ansiosa.

***

O sol matinal colocava em relevo resquícios do espetáculo de manipulação e bruxaria no antes estridente galinheiro: penas flutuantes, manchas coagulantes e folhas de louro, preenchiam o espaço como lembranças de orgias gastronômicas regadas a sangue cozido, torta de laranja e sonrisal limão. Valter fechou os olhos e mais uma vez se sentiu no centro do drama, mas a dura realidade de almoços vazios, vazios de Wanda e alergias precoces, obrigaram-no a se contorcer incomodamente. Abriu os olhos de punhos fechados e com um suspiro profundo, berrou aos quatro ventos:

— Cocoricóóóó!!!! Que saudades, Wandinha! – acariciou a barriga e coçou o saco.

— Surtou? O que estamos fazendo no meio desse galinheiro fedorento? Merda... – examinou o sapato – ...pisei em merda. – “A merda da merda”, pensou.

— Acho que me exaltei, sorry. Queria lhe mostrar algo. - apontou para o fundo.

— Porque não aproveita aquelas sacas de milho para...

— Milho? Se isso ao menos fosse um galinheiro... – lamentou –; veja você mesmo.

— Caraca!! - sapos secos, folhas exóticas e animais empalhados transbordavam das sacas profusamente -; a bruxona anda jogando pesado contigo... Amor de mãe o cacete, isso é psicopatia neo-freudeana!

— Entendeu, Julhão? – apalpou cuidadosamente o pé do ouvido. – Estou com os dias contados!

— Haja feitiço pra tanto ciúmes. Mas ela não é Hitchcock; tá mais prum Ed Wood... Calma.

— Calma!... Olha essa sangueira; deprimente.

Silêncio.

— Putz, é mesmo... A velhota transformou o galinheiro num macumbódromo pessimamente intencionado.

— Pois é... e agora... - engoliu em seco –... me ajuda Julhão!!

— Sim, claro; mas como?

— Não sei.

— Nem eu. Valter... O que é aquilo atrás da última saca?

— Alí? Achei que tinha visto.

— Uma, uma... Cascavel de quatro ventas? – disse a si mesmo como se acometido por um súbito insight.– Cas-ca-vel.

Não fosse o vidro temperado, Júlio jamais aproximaria: os olhos vítreos, em aparente disparidade com as contorções da língua em V e os oleosos gotejos do denso veneno, o envolviam em uma hipnótica rede de fascínio e maquinações.

— Aconteceu alguma coisa, Júlio?

— Não, não... Sim! Amigo... – encarou-o – ...promete que vai se cuidar; na próxima segunda passo às cinco para... Bem, faremos uma visitinha. Té mais.

— Como? Visita...– questionou confuso. – Júlio, você não vai levar o aquário com essa cobra.

— Não quer ajuda? – disse rispidamente. - Vamos dar um pulinho na capital; aguenta a megera mais uns diazinhos e depois...

— Depois?

— Um dia é da caça, meu caro...

— O outro? – questionou impulsivamente.

-Valtão Strikes Back! Se cuida... Té mais.

— Júlio...Júlio!

Em meio a olhares de sapos, odores rançosos e penas carmim, Valter simplesmente emudeceu.

II

— ...quer dizer que agora Valtinho anda preocupado com a sogrona?

-Júlio, parece que o negócio é sério. Já te falei... A megera sumiu.

-Sei...

-Foi pro bingo e não voltou; a Wanda tá pra me enloquecer – encarou o amigo absorto no semáforo -; onde estamos indo?

— Ora, ora... Nossa visitinha, não lembra? Promessa é dívida meu caro. As escoriações e bolhas amenizaram, não? Que bom.

— Você fala como se... Júlio, que tal abrir o jogo?

— Que jogo Valter... – assoviou.

— Putz, nunca bati por essas bandas; este lugar me lembra a Cozinha do Inferno daquele gibi do Frank Miller.

Embaçado pela neblina espessa, o emaranhado de ruelas imundas, restaurantes baratos e casas de jogo ocupavam o espaço como ideais urbanos carentes de ângulos e curvas.

— Chegamos?

— Vou saltar pela sua porta para não molhar o sapato.

— Espera... Vou sair de ladinho. – “Merda”, pensou.

Beiraram incontáveis marquises na noite úmida, antes de adentrarem um recinto iluminado com neon vermelho: Madame Bardot.

— Que tal, Valtão?

— Putz... Vá lá que as pernas da Wandinha ultimamente andam mais fechadas que alicate enferrujado, mas não tô nesse desespero todo não meu caro. Parece que...Que... – olhou ao redor. - Que porra de lugar é esse?! – esbravejou no lusco fusco seboso.

— Isso, é o que é,.. Não está vendo? – riu.

Atrás de uma cortina de contas, rodeada de curiosos, uma bruxa de nariz enrugado com chapéu de cone jogava folhas e sapos em um caldeirão: círculos de fumaça multicores flutuavam no recinto e pairavam na platéia como inquietas auréolas espectrais. Valter parecia suspenso:

— O que é isso? – disse a si mesmo. - Agora... Não, não... Júlio! A velha jogou uma cabeça no caldeirão! Insanos, insanos; estão batendo palmas...

— Valtão...

— Que porra de ritual é esse! Vamos chamar a polícia!– agarrou o amigo. – Estão saindo pelos fundos, fugindo! Outra cabeça meu Deus!

— A peruca da Hebe na careca do Gugu, que horror! - gargalhou no mesmo instante que a bruxa acenou para ele.

— Acendeu as luzes... está, está vindo...

— Madame Bardot é o nome artístico, Valter – gesticulou com um sorriso. -Cláudia, este é o amigo que lhe falei. Tudo...Ok?

Acenou-lhe positivamente antes de retirar a máscara de borracha e o chapéu de cone: cabelos loiros e olhos azuis iluminaram um velado sorriso na sedutora face balzaqueana. Desembaraçou os cabelos com um brusco movimento e saudou o amigo com um afetuoso beijo na face.

— Linda como sempre... Não, Valter? O showzinho da bruxa é o diferencial na casa da Cláudia, digo... Madame Bardot – riu. – Vamos.

— Vamos? O que... – emudeceu quando o casal virou-lhe as costas.

Atravessaram a cortina e entraram em um cubículo à direita do caldeirão.

— Fiuuuu... Anda caprichando nos serviços hein Claudinha? – riu maliciosamente. - Gostou amigo?

— Que... Que merda de jardim zoológico é esse?! – Valter se viu repentinamente transportado para um anacrônico museu de história natural: Vigílias de olhos empalhados e ataques suspensos no tempo acenaram-lhe de incontáveis prateleiras e aquários.

— Promessa é dívida meu caro.

— Júlio, o que significa tudo isso... Que lugar...– petrificou em uma prateleira. - O que a cobra da dona Emengarda está fazendo neste aquário?

— Na verdade, a cobra não... Quero dizer... – encarou-a fascinado. - Paguei adiantado.

— Na verdade, Valter... – Cláudia interrompeu - ...eu reverti a sua sogra ao estado natural!

Com estas palavras, a pobre cascavel cravou as mandíbulas no corpo cilíndrico, e com um leve guizo do chocalho, envenenou-se em sua própria condição.

FIM

Ramon Bacelar
Enviado por Ramon Bacelar em 21/03/2013
Código do texto: T4199962
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