Imortal - DTRL

- Achille Pierre. Adrien Wallis. Alícia Gusman. Aristide Bertrand. Amálie...

Desde que acordei nesse apartamento velho chove sem parar. A tempestade é interminável, uma torrente de lágrimas, como se o próprio universo se dobrasse perante à dor que cerceia esse pequeno planeta chamado Terra. E pensar que existem pessoas que não conseguem senti-la, a angústia presente em cada canto, em cada caminhar apressado para o trabalho, em cada buzinada no trânsito movimentado, em cada respirar de cada ser vivo.

Tantas coisas para lamentar e aquele médico idiota falando em estresse, dá para acreditar?

Meu corpo inteiro dói, vítima do trabalho intenso que tive nos últimos dias. Mas nenhuma pontada em meus músculos é relevante perante as marcas que carrego dentro de mim. Eu estou marcado para sempre, cicatrizes tão profundas que retalharam a minha alma. Cada corte fixando uma lembrança que nunca sairá da minha cabeça. Às vezes esqueço coisas simples, como a senha do banco ou o número de telefone dos meus pais, mas o que vi naquele dia me acompanhará para sempre.

Eu fui escalado para aquela missão de paz no Haiti. BRABAT era minha divisão e nosso objetivo era conter a crescente onda de violência naquele país anárquico. Éramos poucos milhares contra milhões, mas isso não nos impedia de ir. Se pudéssemos salvar uma única vida, já seria o bastante, era o que eu pensava.

Entretanto a coisa era utópica somente no papel, com nossas forças de paz indo e oprimindo os opressores, mas logo eu descobri que não era assim, por mais belas que fossem nossas intenções. Lembro que a primeira coisa que vi ao pisar naquele país foi o cadáver de uma mulher. Ela estava estirada no meio da rua, próximo aos restos de uma praça e as pessoas a ignoravam para nos ver, muitas vezes pisando na falecida para isso. Meu pelotão era comandado pelo tenente Marques, um quarentão de cabeça raspada e cara feia, que parecia viver todo dia o pior dia de sua vida. A primeira ordem do tenente Marques foi para que cobríssemos o corpo daquela mulher e levássemos para outro lugar. Aquela foi a primeira ordem que eu obedeci.

A partir daí eu vi muitas coisas. Eu vi a vida humana em seu estado primitivo, onde homens passam a se portar como animais. Autistas, assustados e vivendo unicamente para comer e procriar. Talvez não procriar, mas transar, seja com um par do sexo oposto, do mesmo sexo, uma criança ou uma cabra. É estranho como as pessoas podem ser tão inumanas, como se perdessem a razão dentro delas. Eu vi pessoas de olhares vítreos e nenhuma expressão. Pessoas que se encolhiam nos cantos e se eriçavam a qualquer som, quase como se esperassem um ataque a qualquer momento. Esse foi o país que eu encontrei e o país que eu precisaria ajudar a reerguer.

Nossas missões eram basicamente de patrulha. Seja no quartel, nas ruas vizinhas, na cidade, nas estradas de acesso, nos vales alagados, no comércio e em qualquer outro lugar com ou sem vida. De vez em quando as pessoas vinham conversar com a gente, normalmente para relatarem algum crime em curso, mas às vezes elas diziam algo como bom dia ou boa tarde, um gesto tão civilizado que chegava a ligar um sinal de alerta.

Parte do nosso trabalho também tinha a ver com ganhar a confiança da população, o que incluía dar palestras nas escolas. As crianças são o futuro de qualquer nação e quanto mais mostrássemos para ela que éramos os mocinhos e estávamos ali para ajudar, mais elas confiariam em nós. Isso tinha um ponto humanitário importante, mas eu não conseguia deixar de pensar que, a longo prazo, aquilo também formaria uma população estrangeira aliada de nossa nação.

De qualquer modo, a cada quinze dias fazíamos palestras em uma escola local e como um de meus sonhos era ser professor, acabei chamando para mim a responsabilidade. Era reconfortante estar ali, passando esperança para aquelas crianças e vendo como os olhos delas brilhavam quando eu falava sobre minha casa ou mesmo minha infância. Não eram grandes histórias, pelo menos para mim, mas elas se eriçavam em cada conto, quase sempre fazendo perguntas para que eu explicasse mais a fundo algum ponto completamente indiferente.

Mas não foi pelo serviço de patrulha nem pela minha benevolência com as crianças que o universo se debulhou em lágrimas...

Era uma quarta feira, como hoje, mas o céu estava tão limpo e o sol tão brilhante que parecia impossível acreditar que em algum momento fora diferente. Eu estava indo para mais uma palestra na escola local que já estava bem agitada aquela hora, pensando em como seria tenso o trabalho da tarde, pois ultimamente vínhamos sofrendo ameaças. Nosso trabalho começava a espantar os traficantes de drogas e de pessoas, e mexer com esse tipo de gente sempre é perigoso.

Talvez por estar pensando nessas coisas eu não tenha reparado aquela van de descupinização parada próxima a entrada da escola. Ora, quem se preocupa com descupinização num país onde noventa por cento da população não tem comida para o dia seguinte? Mas talvez tenha sido melhor assim, pois eu não poderia fazer nada mesmo que tivesse desconfiado...

Eu estava para atravessar a rua quando tudo explodiu.

Mesmo indo para guerra são poucos os soldados que entram em combate. Atualmente a política é ostentar armamentos poderosíssimos e usá-los como intimidação para que o inimigo nem se atreva a chegar perto. Isso gera pontos positivos e negativos. Positivos porque é mais simples preservar a vida de soldados que não precisam se preocupar em serem baleados. Negativos porque quando a coisa é para valer, é mais difícil para os soldados entrarem no tal “modo de guerra”.

Eu era um desses soldados, vítima da falsa sensação de paz. Estava caído e embora meus olhos estivessem arregalados eu nada via. Nos meus ouvidos haviam sinos tocando, como se eu tivesse sido transportado para uma igreja antiga.

Aos poucos as coisas foram voltando, de modo que eu ouvia pessoas gritando e correndo. Uma delas passou por mim, um amigo soldado que eu não lembrava mais o nome me levantou e perguntou aos berros se tudo estava bem. Eu o encarava com meus olhos arregalados, não sabendo o que responder, não sabendo dizer nem quem eu era. Demorou um minuto inteiro antes que as coisas começassem a tomar forma.

A escola havia desaparecido, transformando-se em uma pilha de entulhos irreconhecível. Demoraria um pouco antes que eu percebesse que aquilo se tratava de um atentado, provavelmente suicida, que levara embora vidas com possibilidades infinitas, deixando um vazio que jamais seria recuperado. Foram cento e trinta e três mortes aquele dia, noventa e quatro de crianças que ao invés de alimentarem o futuro, alimentaram o cemitério.

Não tive nenhum ferimento maior que uma pequena escoriação na testa, mas isso não evitou que eu fosse dispensado dos serviços militares horas mais tarde e embarcado num avião de volta para casa, liberado pelo psicólogo do exército sobre aquele título de estresse pós-trauma. Não consegui lutar contra aquela volta, mesmo com uma vozinha bem no fundo soprando que eu deveria continuar e lutar. Mas lutar pelo quê? Não pude salvar sequer as crianças que alimentei com a minha esperança, então que diferença eu poderia fazer em um país inteiro? Como uma pessoa sozinha pode enfrentar tanto ódio?

Fazem duas semanas que eu estou de volta, duas semanas que não saio do meu apartamento. Pelo menos família e amigos me ligam de hora em hora perguntando como estou. A preocupação deles me ajuda, mas ao mesmo tempo me deixa mais destroçado pois me fazem perceber que eu nunca mais vou ser o mesmo, nunca mais vou encarar o mundo com os mesmos olhos, nunca mais vou sorrir como antes...

Por isso eu estou cansado. Porque nas duas últimas semanas eu me preocupei em pegar o nome de cada uma daquelas vítimas, cada uma das almas que eu não pude salvar. Elas estarão comigo para sempre, por isso fiz questão de talhar nas paredes de meu apartamento o nome de cada uma delas. Cada homem, mulher e criança que não viveu para ver o futuro. Do A ao G estão na minha sala, do H ao M na minha cozinha, do N ao T no corredor e o restante no meu quarto.

Os nomes enchem minhas paredes, os relevos do meu espírito. Talvez não seja muito, ainda mais vindo daquele que deveria proteger aquelas almas, mas uma das coisas que aprendi é que uma pessoa não morre quando seu coração pára de bater ou quando seu corpo se decompõe. Uma pessoa morre quando é esquecida.

Por isso eu não esqueceria nenhum daqueles cento e trinta e três nomes.

Jamais.

- Achille Pierre. Adrien Wallis. Alícia Gusman. Aristide Bertrand. Amálie...

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Foi aos 45 do segundo tempo, mas tá valendo ^^

Gantz
Enviado por Gantz em 11/03/2013
Reeditado em 18/04/2013
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