Agradeço a todos que leram os capítulos desta humilde estória. Resumi ao máximo, sem deixar de lado os detalhes essenciais, para deixar a leitura menos cansativa. Acompanhem agora o último capitulo. Boa leitura!



 
 
           
Aos poucos a escuridão cedia espaço para a luz do sol, anunciando um novo dia. Uma paisagem agreste me rodeava, trazendo o alívio para a sufocante noite no jardim funesto. Os raios de sol banhavam minha face trazendo novas esperanças, boas perspectivas para o futuro. Estava vivo, isso por si só seria o bastante, mas me dava ao luxo de perseguir novos rumos, me ater a novas descobertas sobre o mundo, e por que não dizer, sobre mim mesmo. Havia mistérios sobre o meu passado que careciam de respostas, e algo me dizia que estavam mais perto do que imaginava. Seguia aquele homem por uma trilha extensa que rumava para uma mata fechada bem à frente. Não estava completamente perdido. Avistava ao leste a estrada por onde passei, mas sem carro de nada adiantaria retornar. Aquele estranho que destruíra a criatura tinha algo mais a contribuir. Ele sabia como sair daquele jardim, e por certo conhecia toda aquela região – e seus estranhos habitantes. Fui surpreendido pela sua repentina pausa, permanecendo parado sem se mexer.
- Não me agrada a idéia de ser seguido, ainda mais por alguém que não conheço – asseverou ele, com aparente impaciência.
- É que não sou daqui... Desviei meu caminho quando voltava para minha cidade – minhas palavras soavam como um emaranhado sem sentindo. Fiquei um tanto aturdido diante da postura do estranho companheiro. Não se virava para me encarar. Apenas olhava para um bando de pássaros que desfilavam pelo céu sem nuvens. – Tem alguma importância se não fui apresentado? – inquiri, com receio de ser mal interpretado.
- Se fizesse alguma diferença, sim. O que ocorre é que não costumo conversar com estranhos. E receio que seja essa a sua intenção, não é mesmo? Senão seguiria o seu rumo e me deixaria em paz – virou-se para o meu lado, esperando a minha reação. Tudo o que disse, em poucas palavras, tinha a pura intenção de me provocar alguma emoção.
            Dava para sentir a aspereza revelada no tom de sua voz. Realmente aquele homem não costumava interagir com outros. Certamente vivia isolado, evitando contato humano, ou apenas cultivava hábitos excêntricos por motivos que eu desconhecia. Fora isso era difícil inferir alguma coisa. Suas roupas estavam um tanto gastas, desbotadas e desfiadas. Seu cabelo grisalho estava demasiadamente desgrenhado. Era difícil revelar sua idade, mesmo por aproximação. A pele do rosto estava envelhecida, não pela ação do tempo, mas pela exposição prolongada ao sol. O que me chamou a atenção, de forma surpreendente, era aquele olhar. Remetia a lembranças de minha infância, quando vi o estranho convidado de minha mãe. Era o olhar carregado de significados, acumulado de segredos e mistérios que transbordavam de tão intensos. Causava fascínio a qualquer um com um pouco de fé nos fatos inexplicáveis que essa terra escondia. Se alguém na face da terra tivesse as respostas aos mistérios que me cercavam, certamente seria aquele homem. Esperando uma resposta vaga como segunda opção, mas desejando uma verdade reveladora, lancei as primeiras questões:
- O que você estava fazendo naquele jardim àquela hora? E que criatura bizarra era aquela?
            O homem lançou um olhar para o horizonte atrás de mim. Estava pensativo, medindo as palavras pacientemente. Engoliu em seco ao notar que eu estava sério, compenetrado.
- Vi seu carro descendo o barranco. Sabia que não sobreviveria sozinho naquele lugar, por isso embrenhei-me na mata para salvá-lo – enxugou o suor da testa e continuou - Esse jardim já foi verdejante outrora, mas atualmente abriga a criatura que a consome lentamente. O lugar fora amaldiçoado por uma velha bruxa que não se conformava com o casamento de um antigo amor com uma jovem que vivia por lá. O casal acabou desaparecendo pouco tempo depois, supostamente, engolidos pelo monstro.   
            A estória era surpreendentemente verdadeira, assim como todos os personagens bizarros que viviam naquelas terras. Fiquei estupefato, mesmo tendo presenciado fatos igualmente sinistros. Definitivamente aquela estrada me levou a um pedaço do inferno na terra. O fato de ainda estar vivo, apesar de ser um alívio, escondia um significado misterioso e aterrador. Por algum motivo permanecia lúcido. Seria um milagre não ter enlouquecido em meio aos medonhos acontecimentos daquela madrugada. Por vezes me perguntava se estava sonhando. Seria então o pior e mais longo pesadelo que alguém já teve.
- Desde que fui parar nesse lugar, presenciei os fatos mais aterrorizadores e as situações mais inusitadas. Conheci pessoas que ultrapassaram todos os estágios da loucura. Jamais imaginei que um único lugar poderia esconder estórias tão inexplicáveis – confessei, com demasiado entusiasmo, enquanto o homem continuava sua caminhada, resoluto.
- Posso afirmar, com certeza, que você não deveria estar aqui – ele me surpreendeu com suas palavras – Se veio parar aqui, é por que há algo de errado – fez um silêncio, como se esperasse uma segunda confissão.
- Como pode afirmar isso, se nem me conhece? – questionei-o
- Ninguém, além de mim e das pessoas que vivem nessas terras, poderia penetrar esse jardim amaldiçoado. Para tê-lo feito, era necessário estar nas mesmas condições que nós – ele respondeu, retirando um cigarro do bolso – por acaso conheceu a velha do casebre e o jovem coveiro?
- Infelizmente. Lembranças macabras das últimas horas – não pude entender a intenção dele ao lançar tal questão.
- De fato pode explicar muito – ele seguiu em silêncio, rumo a um abismo que ficava logo à frente.
- Explique-me, por favor, o que há de errado comigo?
            Ficamos na beira do abismo apreciando a escuridão abaixo. Ele acendeu o cigarro e devolveu o isqueiro ao bolso da calça. Estava muito sério, o mais concentrado que o um homem poderia suportar.
- Por diversas vezes pensei em me jogar desse abismo. Olhe para ele, ocultando o fundo através da escuridão abismal... – soltou gargalhadas secas enquanto prendia o cigarro por entre os dentes. – Já pensou em suicídio, meu jovem?
- Algumas vezes. Mas o que isso tem a ver com a conversa? Você ainda não respondeu a minha pergunta...
- Tudo! Tudo está relacionado. Todos os fatos e pessoas envolvidas estão presas numa teia sobrenatural que poucos conseguem explicar. Tolo! Não foi seu instinto que o fez seguir aquela estrada, mas sim o seu interior. Está aqui por um motivo muito forte. Estamos aqui, conversando, porque somos iguais! Estamos no mesmo barco! E não digo só nos dois, mas sim todos nesse lugar... Todos nós temos algo em comum com aquele jardim amaldiçoado.  Consegue perceber agora?
- Quer dizer então que estamos mortos? – perguntei, não acreditando nas minhas próprias palavras.
- Quem me dera se fosse isso, seria um atenuador e tanto para a terrível verdade. Sabe, meu jovem, tem coisas piores que a morte. O fato de pisar nessa terra seca e sentir o sol queimando-lhe a face são exemplos bem simples. A morte nada mais é do que o fim da dor e das preocupações, o apagar da existência e da realidade. Não existe outra vida, nem inferno. Tudo se paga aqui, nessa terra. Vou-lhe contar minha estória. Quem sabe possa entender melhor a situação:
            “Antes de vir para cá, eu era um rico fazendeiro. Vivia rodeado de belas mulheres. Poderia escolher qualquer uma como companheira, mas todas eram vazias e superficiais. Por longos anos preferi a vida de solteiro, deixando brecha apenas para pequenas aventuras. Foi numa dessas que conheci Marlene. Era filha de um pequeno agricultor, homem muito rígido e de tradições arcaicas. Definitivamente era diferente das outras. Havia muita ternura em seu jeito de ser, uma amabilidade fora do comum. Apaixonei-me por ela perdidamente.
            “Depois de meses de namoro escondido dos pais dela, decidi pedi-la em casamento. Comprei o anel mais caro e fui até a sua casa. Ao chegar lá escutei gritos vindos do quarto. A mãe dela estava vigiando a porta, com o terror estampado na face. Parecia ter visto um fantasma. Pedi para entrar, mas ela me proibiu. Os gritos de Marlene penetravam meu coração como flechas, ferindo-me terrivelmente. Empurrei sua mãe e corri para ajudá-la. Ao chegar ao quarto, não pude acreditar no que via. Uma criatura verde, de aparência repugnante, estava estuprando-a. Por sorte eu sempre andava armado. Empunhei minha arma e disparei três tiros na cabeça do monstro, que caiu ruidosamente espalhando uma gosma grotesca pelo chão. Marlene não parava de chorar. Fui ao seu encontro para confortá-la, afinal, havia passado por momentos terríveis nas mãos daquela criatura. Mas para meu espanto, ela me empurrou e me xingou furiosamente. Perguntei por que ela estava agindo assim, e ela respondeu:
- Desgraçado! Você matou o meu pai! Ele não estava fazendo nada de errado comigo. Iria me dar um filho para manter a sua espécie!
            “Sai daquela casa não desejando mais voltar. Mesmo amando Marlene, era impossível aceitar tal situação. O tempo passou, mas o meu sentimento por ela não mudava. Quando finalmente tomei coragem para procurá-la na cidade, descobri que havia se matado. Desde então uma dor indescritível me assaltou. Sentia que estava morrendo aos poucos... Vendi tudo que tinha e sai por uma jornada sem rumo, até que fui parar nesse lugar.”
- Realmente uma estória muito triste – assenti instintivamente. – E posso crer que encontrei a relação. Todos aqui, assim como o jardim, estão morrendo. A velha do casebre não poderia suportar a morte de sua irmã, e mesmo que a dor da perda não a matasse, uma terrível infecção causada pela decomposição dela o faria. O jovem coveiro, respirando aquelas ervas usadas para embalsamar os corpos, acabou ficando doente e morreria numa questão de tempo. O mesmo valia para as viúvas, que tinham contato com os cadáveres. Reconheço que há muito sinto a morte me rondar. Perdi minha mãe e meu irmão quando criança, e meu casamento acabou depois de uma traição. De certa forma estava morrendo também...
- Que bom que pôde entender... – ele jogou o cigarro no abismo, observando-o flutuar até atingir a camada escura que o fez desaparecer.  Virou-se para a cabana e a contemplou por alguns segundos. Era tão velha que sua estória se confundia com a própria criação do universo. – Eles já fizeram sua escolha. Agora falta você. A sua frente está a morte, no fim deste abismo. Atrás de si, nesta cabana, está a vida, a cura para a sua dor. Você pode simplesmente pular e esquecer tudo que passou, toda a dor que carrega durante tantos anos, ou entrar na cabana e encontrar respostas para as suas angustiantes perguntas.
- Mas e você... Já fez sua escolha? – questionei-o, não acreditando em suas palavras.
- Como pode saber se não fiz minha escolha?
O homem caminhou em direção ao abismo. Acendeu o último cigarro e pulou sem pestanejar. Vi seu corpo esvoaçando-se pelo infinito, como se jamais tivesse existido, como se fosse um fantasma.
            Escolhi o caminho oposto. A porta da cabana estava aberta. Caminhei cautelosamente, medindo meus passos. O medo do desconhecido me assombrava, como um fantasma de eras passadas. Seu interior estava escuro. Não havia nada além do vazio e do silêncio. Passos mais firmes, coração acelerado, assim entrei. Uma figura oculta nas sombras levantou-se da cadeira e ficou de pé diante de mim. Parecia me fitar como se esperasse uma reação explosiva de minha parte. Fiquei curioso. Sentia algo de familiar naquele ser. De repente outro saiu detrás deste. Tinha aparentemente o mesmo tamanho e conservava a mesma sombra que o escondia. Ambos ficaram lado a lado, me fitando, esperando alguma reação. A luz do sol penetrou pela janela e pude ver claramente. Eram duas criaturas verdes, semelhantes a que vi na noite em que minha mãe morreu. Uma parecia mais velha, e a outra, mesmo com a imprecisão de sua aparência, aparentava ser um pouco mais nova que eu. Esta veio em minha direção e segurou meu braço:
- Amado irmão, como é bom vê-lo. Como vê, não morri naquela noite. Meu pai me trouxe à vida. Infelizmente o preço foi alto, pois custou a vida de nossa querida mãe. Mas não fique triste, ela está bem.
                        Não pude explicar o que de fato estava sentindo naquele momento – se era repugnância ou emoção por reencontrar o meu irmão. Descobrir que estava vivo e que era uma criatura horrenda assim como o pai me deixou perplexo, mas nem tanto devido a uma idéia que tinha sobre ele, se estivesse vivo.
- Meu querido irmão, tem algo que precisa ver – disse ele, me puxando pelo braço em direção a um quarto.
            Ao chegar à porta, vi minha ex-esposa ajoelhada ao pé da cama. Estava chorando copiosamente.
- Por que, meu Deus, por quê? – ela lamuriava, deixando suas lágrimas pousarem no lençol da cama – Por que trai meu amado marido? Mesmo ele se fazendo ausente, deixando-me sozinha por longas noites, jamais deveria ter feito isso com ele. Sempre foi um bom homem, e eu sempre o amei com todas as minhas forças. Jamais vou me perdoar por isso...
            Meu irmão afagou meu ombro. A figura de minha ex-esposa sumiu como numa miragem, deixando apenas quatro paredes velhas e um escuro vazio.
- Sua jornada chegou ao fim, meu irmão. Pode voltar para casa, pois sua dor agora não existe mais. Que bom que escolheu viver...
            Acordei no banco de trás do carro. Ainda estava escuro, e as estrelas brilhavam como nunca tinha visto antes. Tudo pareceu um sonho, ou um terrível pesadelo. Voltei para o volante e segui viagem, ainda um pouco aturdido. Os caminhões cruzavam por mim com os faróis altos, praticamente me cegando. Praguejava a cada rajada de luz, e a cada buraco na estrada que tinha de desviar. Olhando para a beira da estrada vi algo que contrariou por completo a idéia de que estava sonhando. Caminhando sob a luz da lua, vi uma velha com uma corcunda disforme e grotesca, acompanhada de duas crianças igualmente horrendas. Apenas sorri para elas, afinal, tem coisas neste mundo que não precisam ser explicadas.
 

Cleiomar Queiroz
Enviado por Cleiomar Queiroz em 10/03/2013
Código do texto: T4181178
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