Os Olhos da Culpa
O lugar está escuro. Consigo ver uma forma na minha frente, o tempo passa devagar e a forma vai se clareando aos meus olhos. É um homem, agora eu vejo. Uma sensação estranha enche o meu peito, sinto como se alguém estivesse com as mãos seguras e apertando meu coração, forte, como se estivesse se agarrando a última coisa que o mantém longe da morte. Quem é aquele homem? Vejo o seu pescoço, branco. Muito branco. O branco se perde em meio ao negro do seu cabelo e ao de suas roupas. Parece uma manta que o cobre completamente deixando tudo ao redor escuro, menos o seu pescoço que parece brilhar em meio a tanta escuridão. Vejo agora a pequena parte da camisa branca que está cobrindo os braços por baixo da roupa negra que ele usa. Deve ser um terno. Ele não está muito longe de mim. Uns dez passos talvez. Um, dois, três passos. Ele continua na mesma distância, a sensação ruim no peito aumenta. Ele não está se movendo, então por que continuo à dez passos de Distância dele? Ando mais alguns passos. Por um momento pareço estar à beira de tocá-lo, mas ele fica distante de novo. Começo a correr, mas o homem continua distante, é como se eu estivesse em uma maldita esteira. "Corra!", uma voz gritou na minha mente. "Corra, seu imbecil!". E eu corri, corri e corri mais. Mas o homem não saía do lugar. Ofeguei, fechei os olhos e quando os abri o homem estava à minha frente. Ele usava gravata vermelha e uma camisa branca por baixo do terno. Senti um gelo crescer à partir do meu estômago e congelar o suor da minha testa, se olhasse para as minhas mãos elas deveriam estar tremendo.
Tudo estava tão escuro! Tão desesperadamente escuro, mas o rosto do homem brilhava, eu não conseguia ver nem minha mão tocando meu nariz, mas conseguia ver o branco da pele dele. Mas onde deveriam haver boca e nariz não havia nada, mas a falta deles era compensada em grandes olhos que a princípio pareciam ser rubros, mas que iam escurecendo. Os olhos estavam fixados nos meus e agora eu conseguia ver. Ao invés de uma imagem minha refletida em seus olhos, eu via rostos, eles mudavam rapidamente, mas eu conseguia vê-los claramente. Eu conhecia aquelas pessoas. A dor no meu peito se agravou e senti como se mais de uma mão estivesse me puxando, segurando meu coração, pedindo por ajuda. Lágrimas encheram meus olhos, uma sensação de ardor, calor. Um riso.
Meus olhos se abrem, respiro fundo e me sento na beira da cama. Instintivamente minhas mãos vão ao rosto e sinto o suor frio que inundava minha testa enquanto eu sonhava. Tudo está escuro. O interruptor está perto da porta, me sinto como uma criança com medo de levantar da cama e ligar a luz. Palpeio o colchão em busca do controle da televisão, quando o acho deixo que a luz vinda do aparelho ilumine o quarto. A televisão é bem grande, cinquenta e duas polegadas, 3D, bonita. Paga à vista. A luz deixa-me ver o resto do quarto, eu deveria sentir orgulho de mim mesmo, como já havia sentido muitas outras noites antes de deitar naquela mesma cama. Tudo que sinto é culpa. Todos aqueles rostos.
"Corra." A voz sussurrou na minha mente. A voz que havia ouvido no sonho estava clara na minha cabeça agora, eu já tinha ouvido ela. Ouço um riso e olho direto para a televisão. Uma mulher está chorando na tela da tv. Parecia ser um filme francês desses que você não precisa ouvir muito a voz dos atores pra se emocionar. Baixo a cabeça pensando que ainda devo estar sonhando já que me sinto como se tivesse acabado de tomar o maior porre da minha vida, só agora percebo a dor de cabeça como se houvesse alguém cutucando meu cérebro com uma vareta.
Água, é só isso que eu preciso. Ao sair do quarto caminho até a cozinha, ligo a luz e abro a geladeira, um cheiro de putrefação enche as minhas narinas, quase fecho a porta por instinto, mas a curiosidade me vence. Procuro a fonte do odor e acho um pedaço de carne cheirando mal com uma cor estranha, percebo então que a geladeira não emite frio algum. Quando me tornei tão desleixado? Ouço o riso de novo. Olho pra trás e não vejo nada. O riso se faz presente mais uma vez. É uma voz estridente, baixa e que arrepia os pelos das minhas costas. Não há nada ali. Um quarto com banheiro, uma cozinha e uma sala. Não há ninguém na minha casa, nem mesmo eu pareço morar aqui às vezes. Deve ser a televisão. Bebo água do filtro e volto ao quarto.
Mudo o canal de televisão, onde a mulher permanecia a chorar. Um jornal, uma cena de filme de terror, um desses documentários chatos, risos de um sitcom sem graça, paro num canal que me atrai. No filme um homem dirige um carro sport, a câmera faz questão de mostrar apenas a parte de trás de sua cabeça dirigindo o carro, dando uma visão do que o motorista vê, depois de algum tempo ele para em frente uma casa parcialmente destruída no meio do nada, uma mulher negra abre a porta para ele, há uma troca de papéis e ela sorri. A câmera foca em seu rosto e os olhos dela ficam vermelhos.
— O inferno é aqui, doutor.
Ela ri o riso estridente que eu tinha ouvido antes e a câmera muda para o rosto do motorista, era o homem dos meus sonhos, apenas olhos. Sem boca e sem nariz. Um grito se forma em minha garganta, meu coração salta como o de um atleta no momento da vitória. A televisão desliga por si só. Eu ainda estou sonhando? Corro até a tomada e retiro o cabo da televisão que os liga. Saio do quarto ofegante sem saber o que pensar direito. A frase que a mulher disse na tv paira na minha cabeça e não sai até que vejo uma pasta semi-aberta em cima da mesa. Eu já tinha ouvido aquela mesma frase. Vou até a mesa e procuro entre os papeis da pasta. Não demoro a achar uma ficha com a foto de um homem, o homem que eu defendi a menos de uma semana.
Rodolfo Marques Silva era o nome dele, mas o homem fazia questão de ser chamado de Capitão Marques, o maior traficante do Rio de Janeiro. E ele estava livre. O riso de canto do criminoso era uma memória viva em minha cabeça. Acusado de ser mandante de uma chacina em uma das favelas cariocas, além de crimes como latrocínio e estupro. E ele estava solto, talvez sem minha influência ele estaria apodrecendo como o pedaço de carne na minha geladeira. Entrei jovem no ramo da advocacia e cresci rápido, agora continuo jovem e me sinto um velho. O caso valia muito e eu sabia como ganhá-lo, faltava tão pouco para pagar o meu carro, eu tinha que ganhar aquele caso. Quando o réu foi absolvido sussurrei comigo mesmo que desejava que o homem ardesse no inferno sem esperar que ele estivesse ouvindo.
— O inferno é aqui, doutor.
Ele disse e gargalhou alto, muito alto. O barulho da movimentação no tribunal abafou uma parte do som, mas foi o suficiente para me amedrontar, mas aquilo não havia me tirado o sono, não até hoje. Quando me tornei alguém tão desprezível? Pego o celular que estava ao lado da pasta com os papeis que havia acabado de ver. O teclado aparece na tela do aparelho, fico olhando para ele pensando para quem ligar. Eu não tenho à quem ligar. Jogo o celular de volta na mesa sentindo um misto de raiva e angústia. O que quer que estivesse acontecendo comigo estava me matando por dentro. Ouço uma batida na porta.
— Doutoooooor, abra a porta. — A voz estridente gritou no corredor e logo em seguida sorriu debochadamente. — Doutor, abra a porta para o seu velho amigo. Algumas pessoas querem conversar com você esta noite.
A batida na porta vira uma batida mais forte e logo se transforma num estrondo alto, o barulho faz meu coração bater mais forte.
— Doutor! Abra a porra da porta, doutor! — A voz soou irada, oscilando entre o grave e o agudo. Não parecia ser a voz de um homem, mas também não parecia ser a voz de uma mulher. Uma única batida forte foi dada. Penso que a porta vai ceder, mas nada acontece. Passos se estendem no corredor. Respiro aliviado. Lembro então que tenho algo que pode me ajudar. Volto ao quarto e abro o guarda-roupas. No fundo de um dos compartimentos há uma caixa de sapatos, abro-a apressadamente e encontro a arma que me obriguei a conseguir depois de prender um traficante no início da minha carreira. Rio da lembrança esquecendo por um momento o que estava se passando comigo. Nem sempre soltei assassinos. Caminho até a porta com a arma em mãos, verifico as balas. O tambor está cheio, seis balas. Eu só preciso de uma.
Caminho até a porta da sala devagar até encostar o ouvido na porta, fico daquela forma por alguns instantes até que decido olhar o corredor. Meu apartamento é o último do corredor, abro a porta e nenhuma luz entra no recinto. As luzes do corredor estão apagadas. Olho para o final do corredor e não enxergo nada. Antes que tivesse tempo suficiente vejo uma figura de vermelho bastante alta correr em minha direção, dava pra ver o sorriso dele no escuro, os cabelos da minha nuca se arrepiaram, não estava nem a cinco metros de distância quando percebi. Fecho a porta com força e no instante que a fecho ouço a batida mais uma vez.
— Não fuja, doutor. Eu só estou brincando com você.
Minhas mãos tremem ao segurar a chave e fica difícil trancar a porta, quando estou quase enfiando a chave na fechadura a pessoa atrás da porta bate-a novamente. Perco o equilíbrio e as chaves caem no chão. A maçaneta gira, ouço o riso estridente de novo. Seguro com toda força a maçaneta, mas a força das mãos que a gira do outro lado é muito forte.
— Eu tenho uma arma aqui! Você vai morrer, desgraçado! — Tento intimidá-lo, mas o meu tom de voz não ajuda. Ele ri de mim novamente. Os segundos que passo ali tentando me agarrar à minha segurança parecem durar uma eternidade. Seguro a maçaneta com toda força que tenho com apenas uma das mãos, coloco a arma na cintura, enquanto uso a outra mão para tentar pegar a chave no chão, quase pego-a quando então o estrondo na porta é maior do que posso aguentar e caio de costas no chão. Acontece tudo muito rápido, a dor na cabeça é quase imperceptível. Vejo uma figura branca vestida completamente com um vestido vermelho e cabelos cobrindo a maior parte do rosto, lá estão os olhos vermelhos, mas isso é tudo que vejo antes de estar novamente com a arma empunhada e atirar de olhos fechados. Penso que estou morto por alguns segundos até que abro os olhos e não vejo ninguém na minha frente. Nada. As luzes do corredor agora estão ligadas.
Levanto rapidamente e tranco a porta. Olho o tambor da arma. Uma bala, e eu pensei que era tudo que eu precisava, mas na verdade era tudo que me restava. Corro para a sala e procuro o celular, não encontro em lugar algum. Se tudo isso é um pesadelo porque minha cabeça dói tanto agora? Talvez eu tenha deixado no quarto, as coisas ainda estão confusas na minha mente. Olho o relógio. 3:20 da manhã. Procuro pelo celular e não o vejo em canto algum. A tv liga sozinha em um noticiário. A âncora do jornal das oito está lá dando as notícias da quinta-feira, mas o estranho é que ainda estavam faltando algumas horas para que aquele jornal fosse exibido. Ela começa a falar.
"Pela manhã corpo de advogado renomado no Rio de Janeiro é encontrado em seu apartamento. Encontrado com um tiro na boca, os policiais ainda investigam a morte do homem, a principal suspeita é assassinato já que os especialistas não encontraram nenhuma carta ou bilhete suicida. O advogado ficou conhecido após defender o famoso traficante..."
Parei de ouvir quando mostraram cenas do julgamento do Capitão Marques, logo trocaram para uma foto minha. Eu estava estático olhando para a televisão, em poucos instantes ela desligou sozinha de novo. Caí sentado na cama com a arma solta na mão direita. Fechei os olhos com força.
— Eu quero acordar!
Gritei desesperado sentindo as lágrimas descerem pelos meus olhos, quando os abri a figura estava ajoelhada na minha frente. Lá estavam os olhos vermelhos escondidos por trás da cabeleira negra. O rosto do que eu julgo ser uma mulher estava deformado, vários cortes verticais marcavam suas bochechas e um deles havia decepado parte do seu nariz. Tento fazer algo, mas estou paralisado. A mão da mulher se move devagar com o dedo indicador fazendo o gesto para que eu fizesse silêncio. — Shhhhh, tudo vai ficar bem. — Mas tudo fica escuro.
É difícil de explicar, mas tudo faz sentido para mim agora. Quando me encontrarem amanhã não vão fazer ideia do que aconteceu comigo. Por que não aconteceu nada. Eu estou louco. É a única explicação que posso dar. Acordei com a mulher de vermelho ao meu lado, sentada na beira da cama de costas para mim. Quando viu que acordei ela se virou lentamente.
— Shhhhhhhh. Relaxe, doutor. Nós estamos com você agora.
A princípio não entendi o que ela queria dizer, mas agora eu via olhando nos olhos dela. Deus, como é difícil olhar para ela. Tantas cicatrizes. Vendo com atenção dá para perceber que a cabeça dela não é normal, é menor, distorcida, pensa para um lado. As unhas são enormes e sujas, o olhar é doentio, a feição é magra, como a de uma pessoa anorexa. Se há algum demônio na terra ele se parece com a mulher que estava à minha frente, mas os olhos estavam lá com os rostos de cada vítima da chacina comandada pelo homem que eu libertei me olhando com sede de sangue.
— Não há crime sem castigo. Você devia saber disso. — A voz estridente disse num tom baixo. Ela foi se aproximando de mim enquanto minha respiração ofegava e meu coração ameaçava saltar para fora da boca. — Você não pensou que tudo ia ficar bem para você, doutor.
Lágrimas saltaram dos meus olhos e me vi desesperado querendo chorar, quando os sons lamuriantes começavam a sair da minha boca a mão magra e ossuda dela com os dedos maiores que eu já havia visto na vida calaram minha boca.
— Agora você vai fazer silêncio, desgraçado. Você calou a todos por muito tempo, mas os olhos.... Os olhos estão sempre aqui. Vendo, vigiando. Os olhos não esquecem, doutor. — Em nenhum momento o olhar dela desgrudou do meu, sentia o suor frio descer pela minha testa. Eu ia morrer, eu sabia disso.
— Mas você tem opções. Nenhum de nós teve opções, mas você tem. — Ela começou a rir e pensei que não ia parar nunca. — Que homem de sorte você é, doutor. Um homem de sorte, sorte, sorte, sorte. — Ela repetia quase cantarolando, como uma pessoa esquizofrênica faria, mas quem sou eu nesse momento para julgar alguém insano quando eu não saberia dizer onde havia perdido a minha sanidade. — O que você está vendo não é o que deveria ser visto, doutor. Nós não devíamos estar aqui. Nós não éramos assim, doutor. — A voz da mulher de repente mudou para um som mais agudo típico de uma jovem. — Eu só estava indo pra escola. Eu tinha um trabalho pra apresentar. — A voz disse quase iniciando um choro e voltando ao tom estridente. — Viu, doutor? Você defendeu o indefensável e nós nem defesa tínhamos. Você é muito bom. Muito, muito bom. Por isso vamos lhe dar duas escolhas. Você quer ouvi-las? — Ela ficou lá em silêncio por um tempo me encarando, ainda com a mão na minha boca. — Responda, desgraçado! Você quer ouvir? — Fiz que sim com a cabeça e ela soltou meu rosto e se levantou da cama sorrindo feliz.
— Sua cabeça ou nós. Imagine, doutor. Imagine bem todos os dias você chegar em casa e nos encontrar aqui lhe esperando. Ah, doutor você não sabe como somos uma boa companhia. Suas noites seriam muito divertidas. — Ela começou a rir, mas um riso diferente, quase um grito. Eu era mesmo um velho cheio de culpa, envelheci vinte anos em seis meses, havia me tornado miserável, egoísta, mesquinho e o pior de tudo é que não me lembrava se um dia havia sido realmente bom, ou se tudo que fizera fora por interesse. — Mas o mundo pode ficar bem melhor sem você. É tudo que queremos.
Eu devia fazer pelo menos alguma coisa boa na vida. Tudo que eu fiz pensando que tinha sido por um motivo bom na verdade era apenas para que ganhasse algo no final das contas. Levantei a cabeça procurando a criatura medonha, mas não encontrei nada. Corri para o banheiro do quarto me abaixando para lavar o rosto e quando o levantei lá estava ela. Me assustei a princípio, mas vi que não estava atrás de mim. Eu era o monstro, o espelho refletia aquela imagem e a imagem disse:
— A sua alma é podre, doutor. Tudo que restou foram os olhos. Os olhos nunca esquecem.
Soquei o espelho com força quebrando-o em diversas partes, mas as imagens distorcidas ainda exibiam o monstro que eu era. Ainda na porta do banheiro enxerguei a arma em cima da cama. Uma bala, a princípio era tudo que eu precisava, depois se tornara tudo que me restava e agora voltava a ser minha necessidade.
Uma vez havia visto um filme em que o personagem principal dizia que quando se está com uma arma na boca só se fala em vogais. Ri com a lembrança.
— Foda-se — Disse ouvindo e sorrindo do barulho engraçado que agora saía da minha boca.
Não há mais monstros, nem olhos vermelhos, nem lembranças engraçadas, tudo que me restou foi o barulho atordoante da bala que estava disfarçada de "a única coisa boa que fiz na vida", quando na verdade era só a fuga de um egoísta. O barulho da bala cessou e meu coração foi agarrado com força. Eu estava morto, mas não sozinho.
— O inferno é aqui, doutor.
A voz sorriu dentro da minha cabeça enquanto minha pele queimava.