Nascido das sombras

I

Embora a chuva caísse grossa naquele principio de noite, a empregada da família foi ao quarto da patroa com um bebê chorando em seus braços e avisou que alguém o deixara na porta.

– Agora? – dona Constança perguntou espantada, aproximando-se para ver a criancinha.

A empregada assentiu.

Aquilo era de fato impressionante, já que eles viviam num casarão rodeado por hectares de café, a quilômetros da cidade. Também não ouviram qualquer charrete (muito menos automóvel, ainda raro naquela região) e era bem difícil acreditar que alguém viera até aqui a pé embaixo daquela chuva torrencial.

Dona Constança, que por mais que tivesse um corpo saudável, não conseguia engravidar, notou que aquele menino não tinha as características habituais de um bebê abandonado: ele era branco (loiro até), de olhos claros entre o azul e o cinza, e não estava magro. Bebês assim, quando nascem em famílias pobres, são vistos como verdadeiros tesouros, pois um dia poderão se casar com a filha de algum fazendeiro e oferecer uma nova vida aos parentes.

– Você ainda tem leite, Maria? – perguntou à empregada que engravidara meses antes, mas perdera o filho.

– Sim, senhora.

– Então alimente-o e faça com que pare de chorar. Quando meu marido vier decidiremos o que fazer.

A mulher se retirou com a criança, pouco depois o choro cessou.

Aquela família era das mais ricas na região, até então o café brasileiro era exportado para o mundo todo e a um preço bem maior que o custo de produção. Família rica e feliz, uma vez que nos idos da década de 20 os cafeicultores dominavam a república, escolhiam governantes, participavam de grandes bailes na capital e de rodas literárias em São Paulo.

O marido de Constança, pelo que se sabe, poderia até ser o novo presidente, dependeria tão-somente de uma assembléia com os outros fazendeiros mineiros.

Faltava-lhes apenas um filho para que o sucesso fosse pleno, e parecia que agora o destino cuidava disso também.

Quando o Coronel Linhares chegou em casa, foi recebido pela esposa que não se mostrava tão contente há anos. Ela o abraçou ainda antes de ele tirar o capote que lhe protegera da chuva.

– O que há, mulher?

– Um filho! – exclamou. – Deixaram-nos um filho!

II

Uma semana se passou e Constança se apegara demais ao bebê, de modo que só o tirava do colo quando a empregada iria alimentá-lo. Seu marido, porém, ainda não aceitava aquela criança, não porque não gostava dela, mas sim por precisar saber de onde ela vinha, que família a abandonara, que casal a gerara. Se o herdeiro de tudo o que ele construiu não teria o seu sangue, ao menos gostaria de saber o qual seria.

Pesquisou pela região, falando com médicos, padres e comerciantes (que em geral, eram os que ficavam cuidando da vida alheia), mas ninguém tinha notícia de mulher alguma que tivesse dado a luz nos últimos meses.

– Nada, Constança! Outra vez, nada!

– Que importa isso, homem? – retrucou, acariciando o rosto do menino nos seus braços. – Não encontramos os pais dele: tanto melhor! Eu não saio de casa há meses, posso dizer que o filho é meu de sangue.

– Como 'que importa'? Importa, e muito! Eu não darei meu nome a filho de mestiço ou de mulher da vida!

– E como poderia ser filho de mestiço? – mostrou ao marido o rosto cada vez mais branco da criança. – De mulher de vida-fácil eu também duvido, pois você sabe que esse tipo de gente não doa filho bonito, vende.

– Ora, mas de alguém tem de ser!

No canto da sala, quase um objeto de decoração, Maria acompanhava a cena até que a sua patroa mandou que ela levasse a criança para dormir no quarto. No entanto, por descuido, ou talvez nervosa por ver o coronel tão exaltado, ela tremeu as mãos e deixou o menino cair.

Constança o pegou de imediato e o bebê já chorava copiosamente.

– Me perdoe, senhora...

– Cale a boca! – levantou-se e rumou com o filho para as escadas. – Eu não quero mais vê-lo no seu colo, entendeu? E de agora em diante você só irá amamentá-lo em minha presença!

– Sim senhora! Sim, senhora! E me perd...

Constança bateu a porta do quarto.

Linhares, que assistiu a tudo, entendia a revolta da esposa, mas não compreendeu muito bem porque ela proibira a empregada até de tomar o bebê no colo, dando a impressão de que Maria fizera aquilo de propósito, o que evidentemente não era verdade.

Enquanto ele se servia de uma dose de uísque, a serviçal trêmula perguntou se poderia se retirar e ele concordou.

Sorveu sua bebida ouvindo os passos da esposa caminhando nervosamente de um lado para o outro lá em cima, tentando fazer o menino adormecer.

III

Pelos três dias seguintes o ritual se repetiu: Constança ficava com o menino no colo o tempo todo, a não ser quando ela chamava a empregada até o quarto e a fazia sentar na cama para só então lhe entregar o neném, e assim que ele já estivesse alimentado, mandava-a sair.

Linhares quase já não via a esposa, pois ela só saía daquele quarto para as refeições, fazer suas necessidades e dormir – e ainda assim, levantava-se de madrugada para ver se o menino estava bem.

Porém no quarto dia, ao ser chamada, a empregada não respondeu. Constança mandou alguém até o seu quarto para saber o que havia acontecido, e encontraram Maria morta.

– Hemorragia interna – disse o doutor que tratou de levar o corpo. – Sinto muito, d. Constança....

– Eu também – replicou, mas não pelas razões que ele imaginava: sentia muito porque não sabia como alimentar o filho agora.

IV

O coronel chegou irritado do trabalho na plantação, um de seus funcionários mais importantes morrera no meio da tarde – simplesmente, ploft, caiu duro no chão –, então quando ouviu o choro do menino no quarto, não pensou direito, subiu até lá e ordenou a Constança que o calasse.

– É fome – ela falou.

– Então lhe dê o que comer! Onde está Maria?

Constança sentia-se bem exausta naquele fim de tarde, seu filho chorava há horas, então, para poupar o tempo das explicações, disse-lhe apenas que a empregada saiu a seu pedido.

Linhares se retirou dali e foi beber na sala principal, e por mais que Constança tentasse fazer o bebê dormir para não incomodá-lo mais, a criança só fazia berrar.

A cada dose, o coronel se incomodava mais com aquele choro estridente, a cada copo sua cabeça apitava ao ser obrigado a ouvir aquilo. Por muito tempo ele resistiu, suportou, mas quando até já pingava suor de tão enfurecido, foi até o quarto outra vez.

Apontou para o menino e esbravejou:

– Cale a boca, seu bastardo! Cale essa maldita boca!

Se Constança não se pusesse na frente, ele certamente saltaria sobre o bebê e o mataria. Aos berros, ela implorou para que o marido saísse, depois trancou a porta e pegou o menino no colo.

Aparentemente por instinto, o bebê aproximou a boca do seio de Constança por cima das roupas e ela teve a idéia de tentar alimentá-lo – guiada pela certeza de que esses dias como mãe a tivessem abençoado com leite. Retirou a alça esquerda do vestido e o bebê tratou do resto.

A sensação estava longe de ser como ela imaginava, ele sugava demais, chegava a doer, mas estava dando certo, podia sentir o leite saindo de si para o filho.

Retirou o seio da boca do menino por um instante e apertou-o para ter certeza, e sim, saía leite dali, porém com algumas manchas de sangue. Entretanto, Constança julgou que devia ser algo normal na primeira amamentação.

Ao menos agora o bebê estava quieto.

V

Mais tarde, naquela madrugada, o coronel, que já sentia o peso da bebida na cabeça, acordou com o choro do menino no outro quarto. Era gritante, agudo e muito enervante aquele choro.

Virou-se na cama para ver porque Constança ainda não se levantara para acudir o neném como fazia todas as noites. Sua esposa nem ouvia os berros, Linhares não se lembrava de um dia já tê-la visto tão exausta. Levantou-se ele mesmo e foi até lá.

O quarto que Constança usou para "hospedar" o menino era como todos os outros da casa, contava apenas com uma cama, um guarda-roupa e uma cômoda. O coronel nunca pensou em mandar fazer um berço, pois sabia da infertilidade da sua esposa. Por isso, Constança havia construído um tipo de cercado de travesseiros para que o bebê não rolasse durante a noite e acabasse se machucando, porém, a criança não estava lá.

O choro se acabou repentinamente, mas ainda assim não demorou para que o encontrasse: o menino estava caído no espaço entre a cama e a parede, dormindo. E Linhares sorriu sarcástico ao pensar que se sua esposa o visse assim, ela diria que era um anjinho...

Aproximou-se para pegá-lo no colo e pô-lo novamente entre os travesseiros, mas quando suas mãos tocaram nas laterais do bebê, ele abriu aqueles olhos e eram negros, total e profundamente negros. O garoto soltou um gritinho de euforia ao ver o estado catatônico em que deixou o pobre homem.

Com muito esforço, o coronel Linhares segurou o grito na garganta, e depois o engoliu, deu passos para trás até sentir a parede nas suas costas, e depois saiu correndo de lá, podendo jurar que ainda ouvia aquele gritinho do menino, embora a casa estivesse afundada em completo silêncio.

Na manhã seguinte, quando Constança foi ver seu filho amado, encontrou-o dormindo tranquilamente entre travesseiros.

VI

Mais quatro empregados morreram na plantação num espaço de dois dias, o que era bem preocupante. A chuva caía constantemente, então eles não sofriam de desidratação, e não havia chegado a época de colheita, portanto o trabalho ainda não estava tão extenuante.

Contudo, Linhares não podia reclamar da safra, que naquele ano seria bem produtiva.

No caminho de volta para casa, enquanto ainda pensava naquele evento aterrorizante de dias atrás, via o brilho alto da fogueira que os seus empregados faziam nos fundos do casarão todas as sextas-feiras.

Encontrou Constança na varanda, com o bebê mamando em seu peito. Quando ele saíra para trabalhar, ela já estava amamentando aquele menino.

O coronel nunca vira a esposa tão magra, e com olheiras profundas demais para apenas duas noites. As rugas que surgiram agora lhe atribuíam dez anos a mais. Cobria o bebê com um manto, e o coronel percebeu que nos últimos dias já nem via mais o rosto dele – tanto melhor, pensou.

– O que há com você, mulher?

Ela não respondeu, apenas se embalava na cadeira de balanço e olhava para o seu filho alimentando-se.

Quando ele se aproximou dela, o bebê desatou a chorar novamente. Constança chegou a pensar que fosse pela proximidade do marido e mandou que ele entrasse em casa de uma vez, mas depois, sozinha, percebeu que seu filho chorava por outra razão: o leite acabara, secara-se. E o menino a fitou, furioso.

Em seu escritório, sobre a mesa havia um telegrama da capital; mas o coronel nem teve tempo para lê-lo. Ouviu gritos desesperados do lado de fora.

Da varanda, viu na ala de terra que separava as duas porções de pés-de-café a caminho dos portões da fazenda a sua esposa correndo – e em chamas, como uma tocha.

Rumou desesperadamente até lá para tentar ajudá-la, assim como muitos empregados seus que viram quando ela se jogou na fogueira. Mas não adiantou. Constança caiu na metade do caminho, com seu vestido ainda flamejando nas costas, torrando a carne.

Estava morta, Linhares não teve a menor dúvida.

– E o menino? – ele perguntava ao círculo de empregados assustadíssimos. – Onde está o maldito menino?!?

– Não havia nenhum, senhor.

A porta da frente de sua casa balançava. Forçando a vista, Linhares percebeu... Não. Não era possível! Correu novamente naquela direção e ao entrar em casa escutou o som das risadinhas desastradas de neném vindas do seu escritório.

Lá estava ele, o causador de todas as desgraças que ocorriam em sua família, sentado sobre a mesa de carvalho. Não era mais o recém-nascido de quando chegara aqui, há menos de um mês: o garoto crescera muito depressa, já aparentava um ou dois anos de idade. Em suas mãos, ele brincava com o telegrama e ria. Ria. Ria. Ria!

O homem o jogou dali no chão, mas a criança não chorou, não reclamou, apenas foi engatinhando para fora da sala.

Pelo telegrama, o coronel soube que Nova York quebrara. A sua imensa plantação de café não valia mais nada.

Do lado de fora, o menino, olhos negros, seguia rumo a uma sombra intensa gerada pelo cafezal no inicio do anoitecer, e adentrando nela, ele voltou para o lugar de onde viera – mas só depois de ouvir o disparo de revólver dentro do casarão.

J Sant Ana
Enviado por J Sant Ana em 25/02/2013
Código do texto: T4159027
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