A coragem de Tonho Jamel
Apesar da névoa que se formara ao anoitecer, o bando de desocupados que assiduamente se reunia no canto da pequena praça, logo em frente ao Bar e Sorveteria de Seu Kelé, estava presente. É verdade que o dono do negócio era o fornecedor das inúmeras garrafas da “branquinha” que animava a roda, mas também é verdade que a presença deles incomodava o bodegueiro. Risos altos, piadas de mau gosto, gracejos agressivos e até palavrões, dirigidos ao próprio grupo e, não raro, aos transeuntes e frequentadores do Bar e Sorveteria, incomodavam Seu Kelé. A badernagem deles afastava a clientela que, afinal, sustentava o estabelecimento – argumentava ele –, nas muitas vezes em que teve de intervir para acalmar os ânimos mais exaltados, aquecidos pela ingestão excessiva da “marvada branquinha”.
— Aqui, ó! Eu não quero briga nem polícia perto de meu estabelecimento – dizia ele e ameaçava: – Se for preciso, eu corto a venda de bebida e chamo os homens da “Rádio- Patrulha”!
A bronca baixava o tom dos beberrões por alguns minutos, mas logo eles voltavam às turras, em acaloradas discussões. Naquela noite, o assunto, na roda, era coragem e assombrações. A pracinha onde Seu Kelé tinha sua bodega, que ele batizou pomposamente de “Bar e Sorveteria do Kelé”, ficava no meio de um Conjunto Habitacional, construído pelo extinto BNH, quase confrontando com o cemitério da cidade. Esta proximidade gerou muitas lendas e impôs temores aos moradores do bairro. Conta-se, que em noites de névoa como a daquele dia, fantasmas e almas penadas eram avistadas circulando entre os arvoredos que beiravam a estradinha de terra-batida, ligando o campo santo e o bairro ao centro da cidade. Histórias como a do fantasma que segurou o pé da moça, ao voltar do trabalho, numa noite escura; a da Virgem Maria envolta em lençóis, também aquela dos filhos traquinas de D. Mariquinha... Afinal, são apenas algumas das dezenas de histórias que o povo mais antigo do lugar ainda conta, a despeito de todo o progresso do bairro. Todavia eu vou me ater aos fatos de certo ato de bravura, no qual se meteu um conhecido “bebum” que vagava pelos botecos da cidade.
Naquela noite, Tonho Jamel (esta era a alcunha pela qual todos o conheciam) era um dos acalorados contendores da roda de cachaça. Como disse, o assunto era coragem e assombração. No centro da roda, com dificuldade para se manter sobre as pernas, devido aos efeitos da “água santa”, Tonho Jamel balbuciava, espumando no canto da boca, convidando os demais para uma rodada de cachaça... Logo onde?! No portão do cemitério, em homenagem a um amigo seu que morrera de cirrose hepática, havia alguns dias, e que certamente estava necessitado.
— Cê tá doido, home! Isso é heresia – dizia alguém.
— Num aquerdito nessas coisa! Mais tomém num abuso! – emendava outro.
— Cêis tão é se borrando – desafiava Tonho.
— Se ocê é tão valente, pru quê qui num vai suzim?!
— Eu inté ia, se tivesse arguém qui ia mais eu, pra servi de prova, sá cumé?
A conversa desandou num “trololó” sem fim, irritando Seu Kelé, que precisou intervir com as ameaças de sempre. Felizmente, antes de o bodegueiro chegar às vias de fato, alguém teve uma ideia salvadora.
— Óia, Tonho!, Num percisa di í ninguém. Ocê vai i tráiz arguma coisa qui prova qui ocê foi lá.
— Puis eu vô! Vô e mostro proceis qui sô home de corage! E tem mais: num vô só no portão não! Vô lá dentro, mode bebê mais ele! Tá bão?!... Ah-ah-ah!...
Beirava meia-noite, quando Tonho Jamel se apartou da roda, levando sob o braço uma garrafa da “jeribita”, que Seu Kelé cedeu como investimento, para pôr fim àquela algazarra. A noite estava fria e úmida, por causa da névoa. Tonho trajava uma longa capa preta e seu caminhar trôpego, rumo ao cemitério, tornava sua aparência um tanto lúgubre. Lá chegando, tentou entrar pelo portão principal. Pegou na grade, que estava molhada pela névoa, e forçou de leve. O portão nem se mexeu. Soltando algumas imprecações, por saber que teria de caminhar um pouco mais, ele se dirigiu ao portão lateral, que normalmente não era chaveado. Entrou. O interior do campo santo estava em silêncio e era iluminado apenas pelas lâmpadas da avenida principal. Um vento leve começou a circular, remexendo a névoa, fazendo caracóis no ar. Com dificuldade, ele circulou, meio perdido, por entre as tumbas. Demorou mais que o necessário para localizar a cova do amigo. Zé Pretinho, como era conhecido, fora sepultado na parte dos fundos do cemitério, que era destinada aos indigentes. Os enterros desse setor eram custeados pelo poder público, por isso não se faziam túmulos de granito, como os que fazem famílias abastadas, na vã tentativa de manter, na morte, o status do falecido.
O conjunto de covas – todas rasas e identificadas apenas com uma tabuleta numerada, presa ao solo por uma haste de ferro – compunha um cenário ainda mais desolador que o restante do cemitério. Algumas tinham como diferencial pequenos vasos com restos de flores murchas, que certamente haviam sido deixados por um companheiro de sarjeta ou, quem sabe, algum visitante piedoso. Mais uma vez, o teor etílico no sangue de Tonho Jamel foi preponderante. Os olhos embaçados pela bebida e a obscuridade do local fizeram-no passar algumas vezes pelo túmulo, sem reconhecê-lo. Também contribuiu o fato de a haste da tabuleta de identificação da cova não estar devidamente fincada no solo, mas atirada sobre o montículo de terra. Com muito custo, ele reconheceu o local. – “Que sorte!”, pensou, satisfeito, ao verificar que havia ali um daqueles vasos de flores. Assim, não precisaria furtar de ninguém! Trocaria com o amigo morto algumas talagadas de pinga, pelo vaso que lhe serviria de prova para os amigos vivos. Chegou, cumprimentou o defunto, serviu-se de um bom gole e, só então, ofereceu um ao falecido, derramando um pouco da birita sobre a terra. Depois, de cócoras, ao lado da tumba, ficou de papo com o saudoso “cumpanhero” por um longo período, como se ele ainda pudesse ouvi-lo. Quando a garrafa secou, com a sua parte na goela e a do amigo na terra, Tonho achou que já tinha cumprido seu dever e despediu-se de Zé Pretinho. Antes de se levantar para ir embora, como se tivesse atendendo a um pedido do morto, Tonho Jamel pegou a tabuleta de identificação da cova e cravou-a com força no solo. Então, tomou do vaso, ergueu-se com dificuldade e, ao dar o primeiro passo, sentiu que algo o segurava pela capa. Amedrontado, ele se voltou para a tumba do amigo e balbuciou:
— Quê-quê isso, Zé! Uai!...Fáiz isso cumigo não, qui sô seu amigo!
Falou e tentou se afastar, mas a capa estava firmemente segura! Uma onda de terror tomou conta dele e, apesar da quantidade de álcool ingerida, num lampejo de lucidez, tentou negociar.
—Tá bão, Zé! Cê... cê qué seu vaso, né?...Intão toma!
Gaguejou, atirando o vaso com as flores murchas sobre o montículo de terra. Novamente ele tentou se afastar, mas a força que segurava a capa foi mais forte. Então, totalmente aterrorizado, Tonho começou a se debater e, aos berros, implorava por socorro, misturando insultos e xingamentos, com promessas e pedidos de clemência. Ninguém ouviu.
* * *
Na pracinha, os “bebuns”, já cansados de esperar pela volta triunfante do corajoso colega de garrafa, foram embora, achando que o danado estivesse dormindo, caído de bêbado, em algum canto. Seu Kelé fechou a bodega, e o silêncio reinou no bairro. Só o vento da madrugada ficou assobiando baixinho, tecendo caracóis na bruma que se intensificara. Na manhã seguinte, o brilho do Sol, radiante, fazia crer que a noite anterior, com toda aquela névoa, era parte de um sonho coletivo. Contudo quando Seu Juca, o coveiro do cemitério, passou pelo setor dos indigentes, em sua ronda matinal, deu com o corpo de Tonho Jamel estirado ao lado da cova de Zé Pretinho. A notícia se espalhou e logo uma roda de curiosos se formou no local, inclusive Seu Kelé, que, consternado, também compareceu. O valentão estava morto! – Todos constataram. Todavia ninguém entendeu por que a haste da placa de identificação da cova de Zé Pretinho estava cravada na barra da capa que Tonho Jamel usava...