Adormecida

´´ Em seu leito, repousava eternamente, reluzia em beleza esplêndida, iluminada pela luz bruxuleante de uma vela. A pele pálida e tenra, os olhos cerrados em sono tranquilo. E a mãe, observante, a velar o sono profundo de sua princesa... Por toda a eternidade...``

O casarão sussurrava todas as noites, aspirava o ar frio entre seus corredores vazios, soprando as folhas secas por entre as janelas destruídas pelo tempo. Todo o esplendor e riqueza, foram devorados pelo tempo, assim como todas as lembranças da grande casa envelhecida.

Possuía a fama entre os mais antigos moradores de Graveland, como sendo mal assombrada, ou a morada dos demônios antigos. Conheciam bem sua história: Uma família destruída, um pai que abandonará a esposa e filha. Uma esposa resignada e triste, substituída por uma artista circense, trocando-a por algo mais fresco. Mãe e filha sozinhas, pobres e endividadas. Logo a menina, na flor da idade, cai em um misterioso sono, tão profundo quanto à morte. Deixando a mãe a zelar pelo sono da menina, até o fim de seus dias. Muitas foram às histórias, algumas muito fantasiosas, e assim permaneceu o casarão em estilo Francês, ficando conhecido como o palácio da Bela Adormecida.

O mistério do palácio atraiu diversos curiosos, muitos fanáticos, pesquisadores paranormais, provando que nada existe na grande casa, além de pequenos roedores assustados e aranhas a tecer suas teias sem muito entusiasmo. Suas estruturas foram condenadas, sendo que o único evento significativo fora o desabamento do teto circular em vitral e parte do piso do andar superior, tornando a visita perigosa a qualquer um.

Mas ainda havia jovens curiosos, desafiando seus próprios medos e histórias...

Arthur atravessou os portões retorcidos, adentrando a casa com certa facilidade. A chuva salpicava o piso desbotado do hall de entrada, atravessando o teto destruído, semelhante a uma bocarra gigantesca de onde se via a noite rubra, o estômago da besta.

Acampou ali mesmo, organizando o saco de dormir, as câmeras e os sensores de movimento. Observou a casa com atenção, forçando os olhos na penumbra, imaginando toda a beleza em bronze ali roubada, depredada e desgastada pelo tempo. Escadas laterais levavam ao andar superior, para os grandiosos aposentos. No salão principal ainda era visível o piso em mármore trabalhado em formas geométricas e mosaicos apagados. Os painéis, possivelmente pintados à mão, podiam ainda se identificar figuras humanas incompletas. Estátuas esculpidas em madeira se dissolviam devido à umidade presente do ambiente. Subiu em direção aos quartos, pisando com cautela, nos degraus da escada em algumas vigas apodrecidas que rangiam a cada passo.

Ele permaneceu sozinho, sob a luz do lampião a escrever suas histórias fantásticas que jamais seriam publicadas. Sonhava em ver seu nome, Arthur Green, escrito na capa de um livro reluzente, exposto em uma livraria qualquer. Eram o que chamavam de desocupado, desempregado, para alguns mais próximos, vagabundo. Mas na realidade era um escritor, por vocação e escolha, e confiava na qualidade do seu ofício, e que um dia, iria triunfar, mesmos sobre os protestos negativos de sua família e mesmo que fosse considerado apenas um escritor amador.

Observou com cautela as formas através da escuridão, desviando o olhar para o céu noturno que depois da chuva fez despontar a lua. Deitou-se, deixando a mente vaguear em suas histórias, remoendo suas próprias palavras. O silêncio, logo trouxe o sono, e seus olhos pesaram, fechando-se calmamente, adentrando no mundo das imaginações.

Sua mente flutuou em um passado distante, partes se conectavam, sons, cores e formas, unidas como em um quebra cabeça vivo, tomando suas estruturas originais. Os moveis lustra dos, o teto com o belíssimo vitral colorido, luminárias em cristal, partes de um todo reunidas, tomando o seu antigo esplendor e riqueza.

Ouviu o som do piano distante, seguiu a triste melodia. Chegou até a porta de um grandioso aposento, sentindo a brisa cálida e o perfume adocicado que o vento trazia consigo. Os dedos finos tocavam calmamente o piano. Os olhos tristes da garota fitavam de vez em quando a janela, e alguém partir em uma carruagem no horizonte, desaparecendo entre as colinas e árvores. As lágrimas caiam em uma dor tímida, ofuscando os olhos claros da menina. Não percebeu a imagem da mãe, parada sobre o batente da porta, preocupada a segurar uma xícara de algo fumegante. Observava-a impotente, alimentando-se do sofrimento da filha, pois ver alguém partir lhe causara o mesmo sentimento em outras primaveras. Lembrou-se da imagem cravada em sua memória; da mulher, ainda jovem com um bebê rosado nos braços, sem esperança e resignada com seu próprio destino.

Enquanto seus olhos fitavam a menina, observava receosa a xícara em suas mãos, voltando a olhar para a face triste da garota. Ofereceu-a com carinho, que tomou um gole sem muito prazer, torcendo o nariz para o gosto amargo. Arthur parecia observar a memória de um tempo passado, mas como em um filme mudo, identificava somente as expressões e gestos, nada mais. Súbito a menina levou as mãos aos olhos, sentindo-se visivelmente indisposta. Seu corpo estremeceu, os olhos perderam-se nos da mãe. Entorpecida, desabou nos braços amáveis de sua mãe, que a abraçou e chorou.

Tudo transformou-se em uma breve escuridão, sombrio e frio, como uma cripta, ouviu o insistente tilintar de gotas em algum lugar. Podia ver ao fundo a figura da menina, adormecida entre véus amarelados, com as mãos cruzadas em seu ventre. A luz da vela a iluminava, marcando seu rosto com um contorno obscuro. Parecia morta, mas podia ouvir sua respiração suave. Permanecia ali, a bela adormecida, em um sono profundo de morte.

Sentiu o ar estremecer ao seu redor, o frio lhe roubava o ar dos pulmões, sugando gradativamente a sua vida. Ouviu um sussurro longínquo, uma voz feminina ecoando em um tom quase inaudível, como se o vento noturno lhe dissesse algo.

- acorde-me... acorde-me...

Um par de olhos vermelhos e baços rompeu a escuridão, emanando puro ódio, encarando-o através da escuridão sulfocante.

Despertou do pesadelo, confuso e trêmulo, olhou ao redor e a luz pálida do dia que iluminava o círculo disforme no teto. Um dia frígido e nublado, nem mesmo calor do dia conseguiria penetrar através da névoa espectral. Decidiu reiniciar seu passeio, vasculhar novas áreas, agora reveladas em pleno dia. No andar superior, passou pelos seis aposentos destruídos, reduzidos a pichações e depredações, mas em um deles teve a estranha sensação de lhe parecer algo familiar. O que sobrara da estrutura da janela, lhe fornecia visão ampla da estrada, sem árvores ou colinas, apenas o cinzento asfalto quebradiço. Próximo ao quarto, no final do corredor, outro aposento ainda mantinha sua portas originais, bloqueadas por grandes placas de madeiras pregadas ao batente, tornando impossível a entrada.

Uma estranha energia emanava.

Ignorando a porta que lhe causara certo desconforto ao olhar, retornou ao piso inferior, observou o que em outros tempos fora uma cozinha, em outro aposento a sala de jantar no qual a estrutura retorcida de um lustre desabara. E por fim o escritório, com seus livros bolorentos. Retornado ao hall de entrada notou uma portinhola a ranger na lateral da escadaria, sentiu o vento sussurrar por entre a fenda. Observou na penumbra uma escadaria úmida, ascendeu à lanterna e desceu calmamente, raspando os dedos nas paredes cheias de musgos, o cheiro de bolor penetrava nas narinas e o frio lhe enrijecia os músculos tensos pelo medo. Por mais assustador que isso lhe parecesse, e as sensações desagradáveis lhe fugiam, pois a curiosidade era maior, contrariando o medo.

A respiração irregular lhe agitava o peito ansioso, o suor escorria salgado entre os olhos ardentes. Os pés não encontraram mais degraus, percorreu o lugar com os olhos guiando-se pela luz fraca da lanterna, fixando em um ponto de luz distinto. Uma vela iluminava timidamente uma imagem que ganhou formas ao se aproximar. Rendas amarelas deslizavam por entre o teto cobrindo toda a extensão de uma cama. A luz iluminava timidamente a face sombria de uma dama adormecida, oculto por entre as rendas. Uma face amarelada, como os bonecos de cera, com lábios finos e rosados bem marcados. Os cabelos dourados ondulavam até a altura dos seios. Podia ouvir o som de sua respiração ecoar, como se a própria escuridão fizesse parte da menina. Observou veias pulsantes conectadas ao franzino corpo, desaparecendo em meio à escuridão, que respirava e sussurrava.

Seu nome...

Seu nome, repetidamente...

Afastou o véu revelando o rosto angelical de menina em sono profundo, absorto em sua imagem e beleza, como encanto de sereia sentiu o pulsar do corpo da menina adormecida. As mãos estendidas para toca-la, deslizavam entre seus cabelos, com o dedo indicador refez os traços de seus lábios ainda tenros, o fino pescoço descendo até os ombros e os braços, observando os seios maduros e pequenos, mas não atreveu a tocar lascivamente uma figura tão encantadora. Imaginou-se nos lábios dela, despertando-a do sono eterno, os olhos azuis brilhantes ainda sonolentos e o sorriso luminoso a se abrir.

Algo moveu-se na escuridão... rondando-o, observando-o com os olhos de um predador.

Um golpe violento o arremessou brutalmente contra o chão, o peso o fez arfar no desespero de buscar ar. Sentiu o trincar de ossos e logo o gosto ferroso do sangue a subir pela garganta. Milhares de mãos, tão fortes o esmagavam contra o chão.

Os olhos assustados estavam perdidos na escuridão, a procura de seu agressor. A criatura rosnou em seus ouvidos, experimentou o hálito quente contra o seu rosto. De suas entranhas sons guturais surgiram em palavras.

- deixe... minha filha...em paz...

O gosto de sangue subia até os lábios empapando o chão. Sua consciência começou a desvanecer. Sons de urros e gritos tornaram-se confusos e distantes, até desaparecer na escuridão.

Encontrado alguns dias depois, deitado na estrada, sangrando à beira da morte, foi levado até o hospital do centro da cidade, permanecendo em coma por alguns dias, despertou sem ao menos lembrar o próprio nome. Ninguém soube o que de fato ocorrera com o homem sem memória, o fato é que em todas as noites uma vela misteriosa aparece em sua cabeceira para acalmar o seu sono agitado, repleto de pesadelos e medos que o fazem ter receio de fechar os olhos cansados e adormecer na escuridão.

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Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 22/02/2013
Reeditado em 24/02/2013
Código do texto: T4154767
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