A cantiga do mal
A CANTIGA DO MAL
I
Solitário com sua lira
De melódica e suave
Canção, ávido procura
As insígnias: feras vê
Encarniçadas de ira,
E a dorida morte prevê
Apossar-se de sua alma
Amedrontada e perdida.
Em Iona, uma ilha ao largo do sudeste da Escócia, corria o verão do século VII. Julius, um bardo papalvo de versos medíocres, seguia com vagar por uma estrada árida e solitária, montado num jumento de carnes escassas. Como há dias cavalgava sem rumo certo, desanimado por não encontrar estímulos para suas canções, resolveu fazer uma visita a um seu amigo monge no mosteiro de Cantergod, onde habitavam cristãos celtas. Pelo menos essa visita lhe garantiria algumas horas de boa conversação, regadas com doce vinho e saboroso pernil, que os monges comiam muito à larga.
Declinando o dia, a noite principiava a chegar e via-se ainda o bardo a caminho, esquecido dos perigos que diziam existir naqueles descampados. O jumento, com sua natural morosidade, parecia insatisfeito e decidiu por si aumentar o passo, despertando Julius de uma cochilada que já durava algum tempo, estirado ao lombo do animal. Recolocando-se na posição de montar, abrindo aos poucos os olhos, o bardo percebeu que se tinham desviado do caminho anterior. Atravessavam uma floresta, e passavam por uma trilha desusada. A lua mostrava-se cheia no alto do céu. As árvores projetavam sombras caliginosas, e foi preciso que se acendesse um candeio, retirado de dentro dum alforje.
— Eia, Murlão! — assim se chamava o jumento. — Por quais caminhos tu te foste meter! Já não sei aonde vamos, e decerto nos perdemos. A fome aconselha-me a comer, e pela tua falta não merecias compartilhar da minha ceia - e dizendo isso, Julius sacou do farnel uns nacos de queixo e pão, comendo-os muito a gosto. Murlão recebia na boca o seu quinhão, não ficou sem, e ornejava de contentamento.
Avançando cada vez mais pela trilha, a um determinado lugar surgiu uma névoa sufocante, oriunda duma fogueira, acompanhada de cantos que diziam palavras indistinguíveis, e isso pôs o bardo em sobressalto e em cuidados. Guiando Murlão para detrás duma árvore, como prevenção a que ninguém os notasse, ali permaneceram, esperando ver no que acabaria aquela fumaceira e aquelas vozes. Mas de repente nada mais se ouviu, e depois de algum tempo o ar ficou lúcido, o que muito causou espanto ao bardo. Ele acreditou que sua imaginação lhe pregava uma boa, e por isso continuou em frente.
Poucos passos andaram quando ao solo Julius viu um amontoado de gravetos queimados, vindo a indicar-lhe que não se tinha enganado, como pensou. Mas não havia pessoa alguma, o lugar era aberto, uma pequena clareira, e as árvores em torno tinham os troncos marcados com símbolos que pareciam arder em chamas. Aquilo lhe arroubou os olhos, e, admirado, saltou de Murlão e ficou contemplando um bom espaço os estranhos símbolos. Sussurros frágeis se faziam ouvir aqui e ali, e Julius ficou como que tomado por um instantâneo torpor, deixando-se cair semidesperto.
II
Invocando a besta mestra
Está o incauto bardo
Que, rodeado de olhares
Flamejantes, surgidos
De ocultos lugares,
Ledo ri alucinado
O nefando intento
Que sua lira cantou aos ventos.
Súbito se levantou ainda turbado, e tentou dominar os movimentos corporais. Voltando aos poucos a si, mas não de todo, encaminhou-se ao jumento e de suas bagagens tirou uma lira surrada, em seguida indo se acomodar sentado no sopé de uma das árvores. Tomado duma grande e obscura inspiração, o bardo experimentou as cordas, limpou a garganta e começou a entoar, tangendo a lira com uma macabra moção de dedos, uma medonha e sombria cantiga. As folhas dos ramos agitaram-se com uma brisa que soprou e os tais símbolos ficaram ainda mais chamejantes com as palavras que foram cantadas:
Venha, Endelói, liberto
Das malditas e sombrias
Trevas; venha, nefasto
Ser, invoque as fúrias
Famélicas, cruentas,
E domine a sua floresta.
Das moitas e brenhas retumbaram sinistros regougos e uivos, e olhos irados e rubros apareciam na tenebrosa escuridão. A floresta impregnou-se de sons animalescos e de vultos avultados que, desferindo bramidos contra a lua, exibiam as aguçadas presas de suas bocarras. O bardo permanecia numa espécie de transe, rendido a estímulos exteriores, ensoando cantigas que pareciam ser lidas nas árvores. Assim esteve ele grande parte da noite.
Ao despontar da manhã, Julius acordou com a boca amargosa e com o corpo doloroso, e a primeira coisa que fez foi esquadrinhar todo o local, procurando os símbolos. Nada viu senão o resto da fogueira e sua lira caída ao solo. Pasmado, riu-se e considerou-se um estúpido por acreditar que o que lhe tinha acontecido fosse verdadeiro. Tudo não passou de um estranho sonho, ou pesadelo. Considerou que, recitando versos que lhe brotavam do íntimo, os quais há tempos buscava, deixou-se levar ao som de sua lira e, cansado, adormeceu satisfeito. Era a explicação que sintetizou de suas vagas lembranças.
Mas uma sensação de temor perpassou-lhe pelos membros, e por isso quis sair daquele lugar o quanto antes. Achegando-se a Murlão, que a alguns passos dali devorava uns grelos, montou-lhe e tomou-lhe a correia, e sem demora partiram, vencendo a floresta e voltando a encontrar a conhecida estrada solitária, da qual não se deveriam ter desviado.
Era meado da tarde quando Julius alcançou a pacata aldeia de Cantergod. Passando pelas tortuosas ruelas, ele notou que as pessoas o olhavam desconfiadas e curiosas, o que não era de estranhar-se pelo aspecto magrizel do jumento e pela figura bizarra do bardo. Escutavam-se estranhos murmúrios das bocas dos rústicos sobre sinistros rumores terem ressoado durante toda a noite anterior, não longe dali. Havia um certo pavor nos olhos dos aldeões, e ele receou ser o motivo de tal pavor. Desfilou ainda um tanto pela aldeia e enfim chegou ao simplório pórtico do mosteiro, onde um gordo monge, que guardava a entrada, dirigindo-lhe um olhar inamistoso, a muito custo o deixou entrar. Em seguida Murlão foi conduzido por um almocreve não à cavalariça, mas a um lugar de menos qualidade, que lhe cabia mais a justo. Entrando no edifício principal, sem demora Julius foi recebido pelo seu amigo, o monge Ambrósio, a quem beijou as mãos pedindo benção, e disse:
— Reverendíssimo Ambrósio, espero que estejais contente por me verdes em vosso santíssimo lar. Vim porque há tempos vos devia uma visita cordial, e sabei que muito me agrada a vossa amigável hospitalidade.
— Que venhas em boa paz, filho meu — volveu o monge —, e que desta vez não aprontes das tuas indiscretas pilhérias com os meus irmãos menores, como a que aprontastes da última vez em que estivestes aqui...
— Oh, não lembreis mais disso — tornou o bardo —; ainda me lembro das santas e dolorosas penitências que o vosso irmão, aquele cenhoso e cruel Reginaldo, aplicou-me em tão má hora... Perdoai-me, que não quis ofender-vos, e confesso-vos que eu bem mereci, ainda que por um pouco daquele bendito vinho fizeram-me pagar por todos os meus pecados.
— Contenhas essa tua boca, que no falar demais é que estão as impropriedades — disse Ambrósio. — E nunca é demais lembrar que, pecado novo, penitência nova...
— Lembrar-me-ei — disse Julius. — Dizei-me, meu bom Ambrósio, ainda tendes daquele vinho em vossa adega? Porque já o sinto em meu paladar, e esperava mesmo que me convidásseis a tomar um cálice, a viagem que fiz secou-me de todo a goela, e melhor licor não há para dessedentar, se não vos peço em demasia.
— Há de arranjar-se um pouco — disse o monge. — Mas por agora venhas a teu aposento, que te mandarei preparar.
E o bardo o acompanhou ao lugar onde ficavam os dormitórios dos hóspedes. Transitando pelos escuros corredores, os monges deram-se ao diabo quando viram o indesejado visitante, pois das passadas vezes que ali esteve a sua presença foi tão desajeitada que o que só fez foi arrumar confusões e provocar altercações com os religiosos. Estes sempre esperavam algo de ruim quando o bardo ali aparecia.
III
Após os cânticos vespertinos, das orações penitenciais e demais rezas inerentes à vida monacal, do campanário propagou-se o tilintar de um sino, indicando aos monges que era a hora da ceia. Todos se encaminharam ao singelo mas bem munido refeitório para abastecer-se de farto e refectivo alimento. Julius sentou-se à grande mesa de carvalho ao lado do prelado Ambrósio, junto a outros tantos, e aguardou ansioso o terminar dos agradecimentos a Deus pelos alimentos de cada dia. Findo os encômios, começaram a comer os pingues assados sem nenhuma sombra de moderação, e em breve tempo saciaram a fome. Depois um refeitoreiro levou dali para a cozinha os talheres sujos e em seguida trouxe algumas garrafas de excelente vinho, que era o regalo daquele mosteiro, para regar a conversação que duraria até não mais que meia noite.
Ao redor de uma das mesas estava acomodado o monge Reginaldo, o qual havia anteriormente aplicado a paga das ofensas ao bardo, e de quando em quando lhe direcionava uns olhares tão ameaçadores, que Julius não teve que fazer senão sustentá-los e ainda mais lhe provocar a ira, embicando muito vinho que Ambrósio, a bem da verdade, muito a contragosto lhe ia servindo.
Sobre o que falavam não há que dizer nem é bem que se diga, pois toda sorte de assuntos entrava à roda e mudava tão rápido quanto começava. Assim passavam e passaram eles grande parte da noite, jogando as palavras fora, como diz o outro, até que, pouco antes da zero-hora, grande alarido surgia nos portões do mosteiro, o que os obrigou a se levantarem e irem ver o que acontecia tão a desoras. Ali chegando depararam-se com uma turbamulta de aldeões armados de forcados e tochas acesas, bradando não se sabe que nomes, como quem esconjura as ações maléficas de algum demônio. Os monges embriagados, espantados com aquela barulheira e agitação, imaginaram ou que o mundo acabava ou que uma hoste de seres saídos do inferno invadia a pacata aldeia.
O monge Ambrósio, sempre parcimonioso com o vinho, não estava tanto com a mente volteada que não entendesse o que aqueles rústicos queriam, que era simplesmente ajuda cristã para banir uns espíritos demoníacos que naquela noite estranhamente apareceram, causando sustos e algumas mortes, segundo eles. Um dos aldeões dizia:
— Monges, abram-nos os portões! Acolhem-nos nesse lugar sagrado, que já não podemos mais viver tranqüilos em nossas casas, que estão tomadas por horríveis demônios...
E tomando-lhe o exemplo outros aldeões falavam semelhantes razões, mas tudo tão misturado que já os monges não lhes podiam compreender, e o que ficou determinado era que todos os religiosos acompanhassem aqueles rústicos até as suas casas, munidos de crucifixos e demais objetos, com o fito de exorcismar quantos demônios fosse possível, até mesmo do inferno todo, como pareceu, porque foram pelas ruelas estreitas entoando rezas e esconjurando os malefícios do mal. A procissão que se formou não descansou até que visse finalmente o dia raiar, embora durante toda a noite nada se viu de espíritos e outros avantesmas, e então se inquietaram quando perceberam que na aldeia imperava novamente a tranqüilidade.
IV
O lendário ser vagueia
Esconso pela floresta
Escura e sombria,
Coberto duma manta
Preta, e, cheio de astúcia,
Sente, fareja e mata
O serôdio viajante,
Que não mais segue adiante.
Ao cair da noite os monges viram-se extenuados pelo trabalho de exorcismo que praticaram na madrugada anterior, e recolheram-se cedo, temendo que os aldeões voltassem com novos casos de espíritos malignos. Enquanto todos dormiam o monge Reginaldo maquinava em seu íntimo um modo de expulsar o bardo dali, pois nutria grande aversão a ele. Andava pelos escuros corredores com esse pensamento quando, ao passar pelo quarto do indesejado visitante, foi atraído por uns sussurros e sons que lá de dentro saiam, e, curiosíssimo, colou a orelha à porta para melhor se inteirar do que se tratava. Assim pôde ele escutar nitidamente o que ali se cantava: reconheceu como sendo uma canção, a mesma que o bardo aprendeu inconsciente na sombria floresta, e a Reginaldo pareceu medonha, que, petrificado com o que ouvia, foi célere ao aposento de Ambrósio relatar-lhe sobre o que acabava de descobrir. Bateu rudemente à porta, até que o pobre Ambrósio a abriu, indagando-lhe severamente o porquê daquela perturbação no meio da noite.
— Entremos, que vos conto tudo, reverendíssimo... — e fecharam-se no aposento, com grande admiração e espanto de Ambrósio.
— Que há? — perguntou-lhe Ambrósio muito irritado.
— Perdoai-me vossa reverendíssima — volveu Reginaldo, perturbado —, mas andam acontecendo aqui debaixo do vosso nariz coisas de causar espanto.
— Que dizes aí, imbecil?
— Digo — tornou Reginaldo —, que o nosso bardo estava, e por força ainda há de estar, invocando o demônio em seu aposento, como pude ouvir, com uma canção que só nas trevas se pode inventar, de tão horrível que me pareceu.
— Não pode ser — disse Ambrósio —, vamos a ver!
E saíram muito silenciosamente a ouvir a tal canção, receando que os outros monges acordassem e viessem futricar no caso, que isso seria deitar lenha na fogueira. Mas ao chegarem à porta do bardo nada escutaram, com pasmo de Reginaldo, que disse não fazer dois minutos que tinha percebido aqueles sons. Convenceu mesmo a Ambrósio para que ali esperassem novos sinais, mas ao cabo de muito tempo tiveram de retirar-se, pois nada se ouviu de diferente.
Novamente em seu aposento, Ambrósio passou uma leve admoestação em Reginaldo por lhe ter acordado por um motivo que, analisando agora, era banal. Porque era natural que Julius, àquela solidão da noite, procurasse uma distração em seus versos que, para ele Ambrósio, não tinham nada de demoníacos, pois o bardo sempre se mostrou muito cristão e não andava por aí invocando o mal. Disse ainda a Reginaldo que esse erro de sua parte vinha-lhe por estar impressionado com a história passada dos aldeões, e que deixasse disso, senão era capaz de ver e ouvir a todo instante coisas que na verdade podiam ser diversas do que imaginasse, e mandou-lhe ir se deitar.
Reginaldo obedeceu e desculpou-se com o prelado, prometendo-lhe esquecer o bardo, e seguiu ao seu aposento, com infinitos pensamentos atormentando-lhe a cabeça, e em especial um que não lhe deixou pregar os olhos, porque teimava com ele, que era que algo de muito estranho acontecia, e o culpado não podia ser outro senão Julius.
E a teima de Reginaldo veio a engrossar-se ao outro dia, quando a noite ia alta trazendo consigo toda sorte de vultos endiabrados, causando furor nos corações de toda a aldeia e também ao mosteiro, onde os monges corriam com o coração para fora da boca, atemorizados com a invasão de infinitos monstros e espectros que lhes queriam a alma. Havia efetivamente uma legião de malignos seres por toda a parte, e dos terríveis sons que saiam de suas bocarras pareceu a Reginaldo distinguir algumas palavras, que eram: queremos o bardo!
Os monges, espavoridos, foram se juntar ao aglomerado de aldeões que se formou em frente ao mosteiro, que agora ardia em medonhas chamas, donde se vislumbraram formar feições monstruosas. O espetáculo causou ainda mais pavor em todos, mas logo o medo foi cedendo espaço à raiva, a que Reginaldo ia infundindo na cachola daqueles rústicos, porque lhes dizia que o causador de todo aquele tormento era o malicioso bardo, que estava aliado ao demônio. E exortava com tamanha força os aldeões e os monges a acreditarem nisso, que Julius quedou-se apalermado vendo-se no meio daquela turbamulta, e ficou ainda mais apavorado quando os aldeões passaram a bradar com violência estas palavras:
— Peguem o bardo! Atirem-no ao fogo, livremo-nos do mal!
Sem remissão o queriam condenar ao fogo. Julius, temendo o calor das chamas, não atinava meio de safar-se das garras dos seus algozes, o que lhe deixou desesperado. Estava perdido. Mas um fato veio-lhe abrir uma brecha, que foi ver ao longe, livre e desimpedido da turbamulta, o seu querido Murlão, que não parecia senão que o estava esperando para fugirem dali, e não se sabe com que manhas o bardo conseguiu chegar-se a ele, e sem perda de tempo puseram-se em fuga.
Não deixaram de notar isso os monges e os aldeões, os quais, irados e sedentos de vingança, seguiram ao encalço do bardo armados de tochas, lanças, forcados e varas de pau. Murlão sentiu o perigo que o ameaçava, e mais do que a sua natureza o permita, não digo que corria, mas que voava à frente dos aldeões. E estes não corriam pouco, tirando forças da gana que tinham em por as mãos em Julius: queriam-lhe a alma no inferno.
Durante muito tempo esteve fugindo o bardo, parecendo-lhe que lhe seguiriam até ao fim do mundo, pois sempre que olhava para trás via com espanto os seus perseguidores incansáveis, mas, ledo engano, já não eram os aldeões, eram seres ferozes cujos grandes olhos vermelhos e inflamados fizeram-no confundir com o fogo das tochas que, a grande distância dali, tinham-se perdido na escuridão da noite nas mãos dos aldeões, que voltavam para a aldeia, cansados da corrida.
Quando Julius reparou em seu engano, foi tal o pavor que dele se apoderou que não se deu conta do lugar onde agora se entranhava, que era naquela floresta que anteriormente lhe havia acontecido coisas estranhas. Então o lume dos seus olhos ameaçou extinguir-se, não havia modo de escapar, via-se cercado daqueles horríveis seres que bramiam assanhados contra ele. Era o seu fim.
Após esse desgraçado acontecimento, nunca mais se teve notícia do bardo Julius, tampouco de Murlão. Dizem, e dizem bem, que aquele que tocar a cantiga do mal se deve juntar às entidades malévolas da noite.