O FIM - DTRL

Tarde demais. Eu tive todo o tempo do mundo pra evitar este momento, e mesmo assim não consegui.

O mundo havia se tornado um caos e agora tinha se perdido. Países deixaram de existir e deram lugar a enormes desertos. O que restou é fruto de conquistas duvidosas.

Não existe um governo. O exército não passava de uma lembrança. A guerra por água devastou continentes. Nem mesmo o promissor programa espacial conseguiu salvar o mundo de seu destino cruel.

A água trazida da Lua era insuficiente, e a missão em pouco tempo foi considerada ineficaz e obsoleta. Revoltas populares se tornaram comuns e logo o transporte aéreo deixou de existir.

O já falido Direitos Humanos lutava somente por sua sobrevivência, buscando garantir a seus próprios membros os direitos básicos de alimentação.

As ruas estavam tomadas pela violência e não havia mais distinção entre o que era ou não crime. O mais forte sobrevivia.

Lembro-me de quando tive de matar meu cachorro. A carne dura retirada daquele corpo magro durou um dia. A fome era enorme e para piorar a situação já eram 08 meses sem chuva.

Pessoas morriam dentro de dutos de esgoto, bebendo a água suja que insistia em correr por eles, porém cada vez menos volumosa.

O cheiro da morte a principio era insuportável. Mas agora não. Os poucos que restaram estão acostumados. Já não há mais urubus voando no céu. Sinal de que a água realmente acabou.

Ninguém enterra os corpos que estão na rua. Aliás, os ossos que estão nas ruas. Ainda não tive coragem apesar da minha fome, de assumir o canibalismo.

Ontem mesmo vi a filha de meu vizinho comer o corpo do próprio pai. Dentro de sua casa, galões e mais galões de urina são utilizados como fonte de hidratação. A situação é aflitiva, e está cada vez mais perigoso andar por aí.

Todos os dias olho para o céu. O silêncio cada vez maior é perturbador. Os pássaros sumiram. As árvores secaram e tudo parece um deserto.

Não há o que comer. A água me mantém vivo e dentro de minha sanidade. Tudo o que eu podia digerir já acabou. Plantas, raízes... Tudo. A água é meu segredo. Depois que as bombas caíram, ela foi tudo o que me restou.

A nascente cada vez mais exígua dava sinais de que não duraria para sempre. Transformei minha casa numa espécie de reservatório. Galões, baldes, panelas. Tudo o que servia para armazenar água era utilizado. Uma pena eu não ter conseguido salvar a piscina.

Assim que a água acabou lá fora, ela foi o primeiro alvo.

Num mundo como este, não existe joia mais cara que a da sobrevivência. As balas há muito já tinham acabado. A humanidade regredira aos primórdios. Pedaços de pau eram lanças, e alguns sortudos eram providos de arcos e flechas. Na verdade, tudo tinha virado uma arma. Mas não existia ameaça maior que encontrar um grupo de pessoas. Todos estavam fracos, muito doentes. Mas ainda assim o instinto de sobrevivência se impunha e eles lutavam. Quem morria era devorado.

Mas a falta da água era crítica. Foi muito tempo, mas enfim, os esgotos secaram. Já não havia outro meio de sobrevivência e todos começaram a sucumbir. O calor era muito forte. Algo entre 40 e 45 graus.

Não havia esperança. Deitado sobre minha cama observo todo o patrimônio que criei. Aquela água era minha e não a tomariam de mim.

Finalmente cedi a meus instintos. Ela já estava morta, e pelo cheiro, já há alguns dias. Abri a porta e entrei em seu quarto. Minha vizinha estava roxa e com várias marcas de marrom que deixavam evidente a podridão de seu corpo. Moscas varejeiras partilhavam de seu macabro prato quando avancei.

Não precisei se esforço. Uma dentada e eu já sentia o gosto amargo da carne descer por meu organismo. Meu estomago doía quando ela acordou se debatendo sobre a cama.

A desgraçada ainda estava viva e ciente do que acontecia. Coloquei minhas mãos ensanguentadas sobre seu pescoço coberto por chagas e o apertei. O nojo, a repulsa que eu sentia eram o de menos perante minha necessidade.

Sempre me reservei ao direito de não matar ninguém. Mas isso quando o mundo era mundo. Agora, tudo o que eu sempre acreditei foi deixado para trás. Os valores, as crenças e a esperança se perderam.

Priscila ainda revirava os olhos quando por fim deu seu último suspiro. Seu corpo coberto de feridas me enganara ao fazer meu julgamento. Minha vizinha se deixou levar pela morte. Eu só a adiantei. Acabei com seu sofrimento, fazendo-a por fim descansar, e saciando finalmente minha fome.

São três horas da tarde. Receio ser o único ser ainda vivo em minha cidade. Não escuto mais passos, não ouço mais gritos e não vejo sinal de outras pessoas.

Acho que estou pronto para meu ato final.

Pego a mangueira encho a piscina. Não há ninguém para me atrapalhar. Absolutamente ninguém.

O único som que escuto é o da água caindo. O calor faz minha pele rachar debaixo do sol. Os raios insistem em queimar tudo o que atingem, e a ardência em minha pele branca não faz diferença.

Sinto a morte me olhando. Ela me observa do fundo da piscina. Sabe que estou pronto. Minha família já estava morta há muito tempo. Antes de este apocalipse começar. A piscina era para minhas filhas.

Não, eu não sabia nadar e temia não aprender ali. Ciente de que tudo acabou eu pulo.

Como isso era bom! O banho que há meses eu não tomava. Senti cada milímetro de água envolver meu corpo. Gelada, fresca. Por um momento voltei no tempo e senti estar de volta à vida.

Por um minuto o mundo deixou de girar. As lembranças do passado, de minhas filhas brincando nos finais de semana, de minha esposa me abraçando... Como isso era bom.

Mas a morte era implacável. Do fundo da piscina ela me olhava, e quando finalmente afundei pelo que pareceu uma eternidade, ela segurou meu pé.

Tentei lutar desesperado para emergir. O instinto de vida é algo miserável, cruel. Nos faz querer viver mesmo diante das piores circunstâncias. Lutei. Lutei contra ela me esforçando para sair dali.

Foi então que finalmente entendi. Não havia pelo que lutar. A água finalmente tomou o lugar do ar e deixei me levar. Seu trabalho ali estava cumprido, pensei eu. A morte enfim poderia descansar, após ter levado sua última alma e cumprir no fim do mundo o seu papel.

Bonilha
Enviado por Bonilha em 18/02/2013
Reeditado em 19/02/2013
Código do texto: T4146781
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