O Cravo e a Rosa - DTRL

Já é a terceira vez que olho essa navalha, isso hoje, se tivesse de contar todas as vezes que olhei para ela com outras intenções desde que tudo começou, demoraria uma vida inteira.

Mas como acontece todas as vezes eu deixo a navalha no banheiro e subo as escadas com passos trôpegos. Meu estômago está roncando, tão alto que toda a casa poderia ouvir se eu não fosse a única alma nela. Talvez eu devesse tentar dormir, com sorte, talvez, a inanição me mate, ou o estresse finalmente faça eu enfartar. Acho que poucas coisas no mundo devem ser mais patéticas que um suicida com medo de se suicidar, mas esse sou eu, a figura mais patética da terra.

A luz acabou há muito tempo, por isso a única coisa que me cerca é a escuridão. As sombras me eram assustadoras no começo, mas hoje já somos amigas, não as melhores amigas, por que por mais que eu implore elas se recusam a me levar. Os fantasmas da minha vida não me querem como parte do grupo, eles gostam apenas de me observar.

E um em especial gosta de fazer isso bem de perto.

- Ei, ei, cara, você está acabado! Já pensou em fazer a barba? Sério, aquela navalha lá embaixo serve para um monte de coisas além de se suicidar.

Eu já fiquei muito bravo com o Edgar, meu companheiro de solidão, mas eu aprendi a não me importar. Edgar normalmente ignora tudo que eu falo, preferindo martelar suas bobagens na minha mente cansada. E mesmo que o Edgar não falasse bobagens, não acho que seja inteligente ouvi-lo.

Edgar não existe.

Eu não falo isso à ele, em parte por que ele não me ouviria, em parte por que não quero arriscar ferir seus sentimentos e fazê-lo ir embora. Edgar é minha única companhia, cada louco tem a sua mania, a minha mania é o Edgar.

Já fazem quase dois meses, mas eu lembro como se fosse ontem. Era uma sexta feira e eu estava irritado por que haveria um feriado e precisaria emendar a data. Muitos acham estranho quando eu reclamo dos feriados, mas eu sempre digo que a posição de patrão é diferente da do empregado. O empregado ganha trabalhando ou não, já para o patrão pagá-lo é preciso ter trabalho. Mas claro que essa ralé não vai entender. A ralé quer saber de festa, por isso são empregados, se pensassem em trabalho seriam patrões e estariam mal humorados.

De qualquer modo, estávamos as vésperas do feriado e eu dirigia resmungando para casa. Mesmo com as festividades, a rádio não falava de outra coisa a não ser naquele meteoro que passaria a não sei quantos mil quilômetros da Terra. Uma distância estupidamente gigante mas que, segundo os astrônomos, era o mais perto que um corpo celeste daquele tamanho já esteve do planeta.

Eu e bilhões de pessoas não demos bola para aquilo, e as pessoas que deram estavam preocupadas festejando o fato daquele monstro não nos acertar. Mas as pessoas esqueceram de uma coisinha chamada gravidade, que conseguiu fazer o meteoro bagunçar o planeta tanto quanto se tivesse nos atingido.

Acho que todo objeto de vidro no planeta se desintegrou naquele momento, quando houve um estrondo tão grande que fez meu carro morrer. A partir daí foi como se a gravidade tivesse mudado de lado e eu de repente tinha a nauseante sensação de que o chão ficava para cima, mesmo vendo que ele estava para baixo. O dia escureceu, não por que nuvens apareceram, mas por que o Sol se mexeu rápido demais fazendo as horas passarem. Quando eu abri os olhos não acreditava no que via, em algumas regiões tudo parecia normal, em outras era como se bombas atômicas tivessem explodido, criando vales e planícies onde segundos atrás haviam prédios e asfalto.

Aquele amigável pedaço de rocha tirou a Terra de sua órbita, não que tivesse nos ejetado completamente do Sistema Solar, mas agora o planeta estava muito mais parecido com Plutão do que com qualquer outro. Imagino que o rebaixado Plutão tenha se divertido muito naquele momento, perguntando se os cientistas que o rebaixaram, rebaixariam também a boa e velha Terra da condição de corpo celeste.

- Cara, você está viajando? Os cientistas já morreram! – Edgar me lembrou.

Sim, é verdade. Às vezes eu acho que todos já morreram, mesmo tendo provas do contrário.

O frio que se fez nas últimas semanas foi assustador. Agora estamos com algo mais suportável, talvez uns dez graus negativos, e cada dia é mais quente que o anterior. Espero que nossa órbita peculiarmente elíptica não esteja nos levando para perto do sol, ao frio extremo ainda é possível resistir, mas se as temperaturas baterem cinquenta graus, não sei o que poderei fazer além de usar aquelas navalhas.

Sento diante da janela de minha casa, perscrutando a rua pelos vãos da veneziana. Há gelo por toda parte. Gelo a menos de duzentos quilômetros do Equador! Dá para acreditar? O céu acima de mim é o rosto de um adolescente negro, marcado por espinhas estelares. A lua – pobre lua – está em frangalhos. Ela foi destruída, o que antes era uma esfera agora é uma massa amorfa, com um cordão de rochas que se estende por meio planeta. Volta e meia é possível ouvir uma delas caindo em algum lugar. Desintegrando um pedaço da eterna história da humanidade.

Devo ter ficado ali por dez minutos antes de ouvir a velha senhora Eva. Uma das últimas figuras humanas que se tem notícia. Mas ela não vai durar muito mais. Eu não conheci a senhora Eva antes do mundo ter acabado, mas depois que ele acabou eu a vejo quase todo dia, andando nua pela frente da minha rua e cantando aquela maldita canção do cravo e da rosa. Graças ao silêncio que cobre o planeta como um sudário, eu consigo ouví-la desde antes dela chegar e muito depois dela ter ido. Não sei como aquela mulher não morre congelada, acho que Deus ainda deve estar lá em cima, continuando seu longo trabalho de proteger os idiotas.

- Ei, ei, ei, quer jogar cartas! Eu arranjei um baralho novinho!

Edgar me estendeu uma carta de um baralho surrado, é o coringa e por algum motivo eu penso que é uma ótima escolha.

Estendo a mão e quando Edgar solta a carta observo ela passando pela minha pele, atravessando meus nervos e ossos e indo cair no chão logo abaixo.

Eu olho para o Edgar com aqueles olhos escuros e aqueles cabelos desalinhados, a roupa suja e as feridas que nascem de uma pele judiada pelo frio e pela falta de cuidados. Eu vejo o pobre empresário que agora não passa de um nada. Então eu lembro que aquele Edgar não existe, ou pelo menos vai deixar de existir em pouco tempo. Não há muito futuro para uma casca vazia, cuja alma a acompanha deprimida pela escuridão.

Dou espaço para Edgar se esticar pela janela e acenar para a senhora Eva. O cravo e a rosa. Debaixo de uma sacada. O cravo está ferido. E a rosa despedaçada.

É. Acho que é assim mesmo.

FIM

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Ai minha pequena contribuição para o 2º DTRL, espero que gostem!

Gantz
Enviado por Gantz em 17/02/2013
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