Apenas Uma Picada

Baixou a cabeça. Sempre fazia isso quando estava irritado.

-Eu realmente tenho que ir pra lá? Perguntava, tentando conter o tom de voz.

-Se quiser manter seu emprego.

Marcos odiava aquele fato, odiava ter que se separar de sua família para manter o trabalho. Era carcereiro, passava o dia inteiro convivendo com bandidos, arriscava sua vida em troca de alguns míseros trocados no fim do mês.

Vez ou outra recebia uma proposta para traficar drogas ou armas para dentro do presídio. O dinheiro era sempre muito tentador, mas nunca aceitou nada.Acreditava na honra acima de tudo.

Começou a trabalhar no ramo aos vinte e dois anos de idade, era cozinheiro mas logo mudou de cargo.Os superiores viram que ele tinha um belo corpo, braços fortes e ombros largos.

O perfil ideal para conseguir intimidar os criminosos.

Mas a estratégia não deu certo, o rapaz possuía uma personalidade doce e, logo em sua primeira semana nos corredores, foi surpreendido por um preso que tentou lhe enfocar. Só conseguiu escapar dos braços do homem quando os outros guardas viram e interviram.

O assassino sofreu naquele dia, os gritos eram agonizantes.

No começo tudo ali o incomodava.. O cheiro péssimo da comida, os comentários infames que ouvia toda vez que passava na frente das celas, mas uma coisa conseguia o incomodar mais do que todo o resto.

Todos os dias alguns presos eram levados até uma sala secreta, lá eram torturados pelos agentes. Os que participavam do ato o faziam apenas por prazer, diziam que gostavam de escutar os miseráveis gritando e pedindo por clemência.

Marcos nunca agrediu ninguém, mas estava com vontade de socar o rosto do homem a sua frente.

-Mas senhor, eu não posso ir pra longe de minha mulher, acabamos de ter um bebe! Seu tom de voz era triste, carregado de sentimentos.

-Ou você vai ou perde o emprego. Repetiu o diretor.

João comandava o presídio a mais de dez anos, era um homem flatulento e careca. No topo de sua cabeça encontrava-se uma mancha vermelha, alguns diziam ser consequência de uma queimadura sofrida na infância.O fato é que a vermelhidão dava ânsias de vômito na maioria das pessoas que a olhassem por muito tempo.

-Eu vou. Quando preciso chegar lá?

Esperava que a resposta fosse agradável, esperava que o careca tivesse piedade e lhe desse tempo o bastante para se despedir de sua esposa e filhos. ”Um mês, talvez.

-Amanhã um carro vai pegar você em casa. Esteja pronto as seis horas da manhã.

Filho da puta.”.

II

Durante todo o caminho pra casa Marcos caminhou lentamente, observava todas as pessoas. Percebeu como a maioria parecia feliz, casais se beijavam ardentemente ao passo de que crianças brincavam na rua.”Todos eles são tão felizes...parece que não tem preocupação.”

Começou a pensar em como sua vida havia desgraçado em apenas alguns minutos.

Quando Seu João o chamou para conversar, imaginou que receberia um aumento. Desde que sua filha havia nascido, estava se esforçando ao máximo no trabalho.Chegava antes de todo mundo e era sempre o último a sair.Preciso do dinheiro, pensava sempre que o cansaço parecia ser maior que sua força de vontade.

Mas o rumo da conversa foi totalmente diferente do esperado.

O diretor tinha lhe chamado para dizer que iria transferi-lo para um presídio no estado vizinho. St Mundungos havia acabado de abrir e era considerado um mistério para os que não trabalhavam ali.A prisão tratava os criminosos com doenças mentais, era completamente cercada por muros de concreto.

A entrada de não funcionários era proibida.

Apesar das súplicas de Marcos para não ser afastado da família, o gordo não lhe deu outra opção. ”Era claro, ou eu aceitava ou era demitido.”

Quando chegou em casa, começou a imaginar na reação de sua esposa ao descobrir que ele iria passar dez meses do ano longe de casa. Júlia tinha vinte e sete anos, mas ainda conservava uma personalidade de criança.

Era muito meiga e delicada, sonhava em cursar psicologia, mas as condições financeiras do casal não permitiam que a faculdade fosse paga e por isso ela limitava-se a conversar com os vizinhos. As vezes conseguia ajudar algum.

Alguns dizem que quem é possui beleza interior é feia por fora, e vice-versa. Isso não se aplicava a Júlia, do alto de seus um metro e sessenta possuía um rosto angelical e um corpo escultural.Suas curvas e delineações perfeitas faziam os homens entortarem a cabeça quando a viam passar na rua.

Assim que girou a maçaneta, foi recebido por gritos acalorados de sua esposa. Ela sempre o recebia assim.

-Meu amor! Por que demorou tanto pra chegar? Estava com saudade.

-Fiquei preso no trabalho, o careca queria conversar comigo.

-Seu João? Por quê?

Antes de responder o jovem olhou profundamente nos olhos de sua esposa. ”Ela parece tão feliz..”

-Ele disse que eu vou ser transferido pra outro estado. Falou tudo de uma vez, temia não ter coragem se demorasse a explicar.

-O que? Por quê? Pra onde? As perguntas foram feitas de maneira rápida, parecia que as palavras iam atropelar umas as outras.

-Pra o St Mundungos, ele disse algo sobre precisarem de pessoal capacitado.

-Pra aquele presídio de loucos? Por que ele precisa logo de você?

-Amor, eu não sei o que se passa na cabeça daquele velho!

-E eu? E a Mariana? Como vamos ficar? O desespero era evidente no tom de voz da jovem.

-Ele disse que meu salário vai aumentar, e eu vou poder te visitar a cada dez e dez meses.. é só até eu arranjar uma coisa melhor.Oh não chore.Subitamente a mulher começou a chorar e Marcos abraçou a mesma, era possível entender o que se passava na cabeça dela.

“Ela está com medo de ficar sozinha. Quem não teria?”

Quando Júlia descobriu que estava grávida, o casal foi acometido por uma felicidade tremenda, mas a preocupação acabou se tornando mais forte. O salário de carcereiro era baixo e mal dava pro casal se sustentar, pra suprir as necessidades a esposa começou a fazer bicos como costureira.Marcos odiava a ver passar noites e noites em claro remendando roupas e cuidando do bebe.

Quando os primeiros raios de sol estavam invadindo a casa, um carro buzinou do lado de fora. Se despediu da mulher e filha e seguiu em direção ao veículo.

A moça chorava, tinha um mau pressentimento com a viagem.

III

O carro devagar, a estrada repleta de buracos e trechos em reforma resultou em duas horas de viagem agonizantes. O carcereiro passou o tempo todo calado, estava com uma dor no coração.

Pensava em como seria difícil viver longe da mulher, já estava casado há quatro anos e desde então nunca havia dormido fora de casa. Isso aconteceu por ser um homem tímido e fiel, suas noitadas com os poucos amigos eram restringidas á algumas horas bebendo no bar da esquina.

Por vezes jogava futebol com os colegas de trabalho. Atuava como ponta esquerda e todos diziam que ele tinha habilidade para a coisa, driblava e cruzava muito bem.Quando jovem chegou a treinar nas categorias de base de alguns times da cidade, mas teve que começar a trabalhar e a carreira foi abandonada antes mesmo de começar.

Quando o Vectra dobrou em uma rua da esquerda, a mudança na paisagem começou a ser notável. Prédios e casas deram lugar a árvores e estrada de terra.Gramas cobriam grandes extensões como uma espécie de tapete verde.

-Estamos perto. Disse o motorista, retirando Marcos de seus devaneios.

-Ah, certo.

-Por que você se candidatou pra ir pra lá?

-Eu não me candidatei.. fui forçado.

-Boa sorte então. Chegamos

Do alto de uma montanha uma construção em concreto fazia contrate com a vegetação. O prédio, composto por diversos andares, era muito largo e completamente cercado por altos muros de concreto.Três torres espalhavam-se de maneira uniforme, era possível perceber que ali existiam homens armados.

Que recepção calorosa. Era o que refletia.

-Suba até o portão e diga que você veio a mando do seu João. Disse o motorista, depois de jogar as malas no chão e sair acelerando no Vectra.

Rapaz simpático ironizava enquanto subia o morro caminhando. Foram precisos cerca de cinco minutos para que conseguisse chegar até o grandioso portão de ferro.Tocou o interfone e repetiu as palavras do motorista, logo foi recebido por um homem vestido com jaleco branco.

-Seu trabalho começa hoje, vai cuidar dos corredores da ala quatro. O dormitório é interno e fica no prédio todo branco.

-E onde é a ala quatro?

-Não é obvio? Disse o médico enquanto saia andando.

Marcos olhou em volta e percebeu que a prisão era composta por diversos prédios, a maioria deles tinha um formato de galpão e todos tinham grandes números pintados na sua frente. Quando seguiu em direção ao compartimento numero “Quatro” foi recebido por outro homem que parecia ser médico.

-Você é o cara novo?

-Sim, eu... Foi interrompido quando o rapaz o entregou um cassetete e uma arma de choque.

-Vá.

IV

Os corredores do St Mundungo eram escuros e úmidos, a cada passo os gritos ficavam mais altos e fortes. Os loucos estavam quase todos presos a camisas de força e alguns possuíam ferimentos por todo o corpo.

As primeiras celas eram as maiores, mas a cada metro percorrido os compartimentos ficavam cada vez menores chegando ao ponto de suportarem apenas um adulto em pé.

Deuses, espero que não usem essa sala para pessoas, era o que pensava enquanto olhava pela abertura.Não encontrou ninguém.

O restante do dia foi bastante calmo se comparado ao início do mesmo. Marcos ficou andando pelos corredores durante toda a tarde e a noite seguiu em direção ao dormitório.Assim que entrou no prédio percebeu que quase todas as camas estavam vazias.

Caminhou até que encontrou uma cama com uma marmita em cima. Comeu o jantar com velocidade, o dia inteiro trancado em um lugar escuro acabou o fazendo esquecer da fome mas o cheiro de frango assado fez o seu apetite abrir imediatamente.

Colocou a embalagem de lado e deitou-se na cama. Assim que adormeceu sonhou com sua esposa e filha.

No sonho as duas estavam dançando no jardim de casa, sorriam a todo o momento e a felicidade era clara em seus semblantes. Mas a alegria durou pouco.

Um carro invadiu o jardim em alta velocidade, o veículo estava desgovernado e impactou-se contra as duas mulheres. Os corpos voaram em direções distintas, o barulho de ossos quebrando foi assustador..

O som do alto falante acordou o homem do pesadelo.

-O HORÁRIO COMEÇA DAQUI À UMA HORA, O CAFÉ DA MANHÃ SERÁ SERVIDO NOS DORMITÓRIOS.

V

Caminhava de um lado pra outro da cela, estava nervoso.

Dave tinha trinta e sete anos de idade, estava preso a mais de vinte. Quando ainda era muito jovem cometeu um crime cruel.

Vivia uma boa vida, mas, por influencia dos amigos, acabou se viciando em drogas. Começou fumando maconha em festas e em reuniões com os colegas, mas logo trocou a erva pela pedra e foi ai que sua vida começou a desgraçar.

O crack era barato mas o efeito durava rápido, as quantidades precisavam aumentar a cada vez que a droga era inalada.Com o tempo o dinheiro do emprego acabou não sendo o bastante para comprar as preciosas pedras e ele precisava de mais!

Começou a roubar, no início furtava algumas carteiras dos familiares mas isso resultou em brigas e ele partiu para assaltos a mão armada.Logo na primeira tentativa fez algo que jurou nunca fazer.

Matou uma pessoa.

O velho havia se recusado a lhe entregar a carteira e a arma acabou disparando sem querer. Ainda lembrava dos miolos do velho espalhados pelo chão, a cabeça explodiu com o tiro a queima roupa.

Fugiu e encontrou abrigo em um beco escuro, chorou durante toda a noite acabou se entregando para a policia pela manhã. Dentro de cada prisão existe um código de conduta secreto. As regras são bastante simples: Você recebe punições de acordo com o seu crime, alguns presos recebem permissão para aplicar essas torturas.

Matar velinhos indefesos acarreta em umas das piores torturas.

Foi espancado pelos policiais e violentado pelos presos, era essa a punição para aqueles que matavam velhinhos. Depois do terceiro mês ele acabou se acostumando com a sensação de ser penetrado por mais de um homem por dia.

Quando deu a quarta volta na cela, escutou o barulho da porta se abrindo. Olhou na direção do som e foi recebido com socos e pontapés, depois que caiu no chão um saco preto foi colocado em sua cabeça e ele desmaiou por falta de ar.

Acordou em uma sala escura, estava com as mãos e os pés atados em uma cadeira. Na sua frente uma câmera digital parecia estar no modo de filmagem.

Não demorou muito para que dois homens vestidos de branco entrassem na sala, eles traziam consigo diversas seringas e instrumentos de cirurgia.

-Se acalme, Dave..Você vai sentir apenas uma picada.

V

O terceiro dia de trabalho foi complicado. Estava se acostumando com a indiferença de todos os funcionários e com os gritos dos loucos, mas, quando estava seguindo pelo corredor pela primeira vez naquela tarde, escutou um som estranho.Parecia um grunhido.

Seguiu na direção do barulho e acabou parando na frente da última cela. Olhou pela fechadura e teve uma das piores visões da sua vida.

Preso com correntes estava um homem. Os ferros apertavam os pulsos e os tornozelos a ponto de deixá-los em carne viva ao passo de que o corpo, completamente nu, estava coberto de hematomas e cortes.

Pela disposição dos ferimentos, dava para perceber que eles haviam sido feitos por mãos habilidosas. Dezenas de finos filetes de sangue escapavam por dentre cortes profundos.Mas a pior coisa era o estado do rosto do detento.

Sua cabeça estava completamente raspada e os olhos não estavam presentes. Pelo buraco dos dois glóbulos oculares grandes quantidades de pus eram expelidas.

A única ação que Marcos teve foi correr e gritar, seu corpo foi tomado por um medo intenso e ele só parou quando sentiu uma mão segurar seu ombro. Olhou para trás e percebeu que era o porteiro do prédio quatro.Estava se preparando para falar quando recebeu um soco no rosto.

Desmaiou e só acordou em uma sala escura. Uma câmera estava parada em sua frente.

-Olá, Marcos. Vejo que você descobriu nosso pequeno segredo.Disse um homem que havia acabado de entrar na sala, usava uma máscara preta que cobria todo o seu rosto.O jaleco branco manchado de sangue era assustador.

-Quem é você? Onde eu estou? O que você fez com aquele homem? O desespero do carcereiro era evidente, estava temendo a morte.

-Oh, oh! Calma aí campeão.. uma pergunta de cada vez.

Permaneceu calado, esperando pelas respostas.

-Eu sou o Doutor Rosemberg e você está no meu consultório

.

-Isso não parece um consultório!

-E verdade, mas eu prefiro assim. As paredes são abafadas para que o som não saia para o exterior..entende? Ficaria difícil de explicar os gritos.

-Não estou entendendo..

-Nosso pessoal errou.Colocou Dave na cela errada e você acabou vendo o que não deveria..E eu acabei ganhando mais uma pessoa.

- O que você está dizendo?

-Que você vai ser meu novo brinquedinho! Disse Rosemberg, antes de enfiar uma seringa no pescoço do jovem.A adrenalina começou a causar espasmos no corpo, não demorou muito para que eles estivesse tremendo e rangendo os dentes.

Sem esperar por qualquer resposta da vítima, o doutor começou a injetar outras seringas, algumas tinham líquidos brilhantes. Não demorou muito para proferir cortes e escoriações por todo o corpo da vítima.

Balançava a cabeça negativamente toda vez que o sangue jorrava em abundância.Parecia estar decepcionado.

Depois que Marcos morreu, o assassino caminhou lentamente em direção à câmera e proferiu palavras em um tom de voz calmo e sereno, parecia já ter feito aquilo antes.

-Centésima quarta tentativa, o paciente não resistiu à fórmula e morreu A Z-Bender precisa ser melhorada. Nenhum sobrevivente até o momento.

VI

João estava estressado, dezenas de papeis acumulavam-se na mesa a sua frente mas mesmo assim ele só conseguia pensar no novo empreendimento.Havia feito um acordo muito lucrativo com o presidente.

Eu apenas permiti que aqueles insanos fossem usados naqueles testes.. acho que nada de mal vai acontecer com eles.E se acontecer? Os presos não são ninguém mesmo, buscaram por isso. Era o que pensava, todas as vezes que a consciência o impedia de dormir.

O diretor havia assinado um acordo que permitia o uso de presos em experiências do governo. Tinha recebido informações de que o presidente queria desenvolver uma fórmula para melhorar as condições físicas dos soldados.Ele quer transformar homens em super heróis, pensava.

Acho que o que eles fazem não é nada tão grave...

FIM

Aí galera..mais um conto novo pra vocês! Espero que gostem e não esqueçam de comentar...

Critiquem, opinem, apontem erros, digam que não gostaram...mas sejam sinceros.Aceito TODAS as críticas e não fico com raiva de ninguém, apenas espero que sejam sinceros!

Abraços e até o próximo.

Ah, já tá rolando o DTRL..eu já postei o meu conto e uma galera também! Estão ficando ótimos..vale a pena conferir!

Rayan Fernandes
Enviado por Rayan Fernandes em 17/02/2013
Reeditado em 17/02/2013
Código do texto: T4145111
Classificação de conteúdo: seguro
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