Vermelho-Sangue DTRL

“É saudade, então

E mais uma vez

De você fiz o desenho mais perfeito que se fez

Os traços copiei do que não aconteceu

As cores que escolhi entre as tintas que inventei

Misturei com a promessa que nós dois nunca fizemos

De um dia sermos três

Trabalhei você em luz e sombra”

Legião Urbana (Acrilic on canvas)

“ Aos que se importam com os motivos que nos levam a matar...”

Ao acordar encarou o teto, os olhos abertos buscavam por um horizonte nos desenhos da madeira do forro, as paredes que um dia foram brancas, agora cobertas por quadros de pinturas perturbadoras, o mesmo rosto disforme em todas as telas obscuras, a mesma angústia retratada em cores fortes...

”Seus olhos azuis e profundo realmente me comoviam, não podia ver suas lágrimas aparentemente tão verdadeiras sem querer te proteger do sofrimento, pensei que pudesse instigar sua raiva, mas não sabia a arma que tinha em mãos, você era tão solitário, carente e eu... eu tenho esse problema com caras depressivos...”

Na mesa de cabeceira dezenas de frascos de comprimidos, nos pulsos e no pescoço sinais de suicídios mal sucedidos, no rosto as marcas do tempo...

“Queria curar suas feridas, não percebi que elas não existiam, você era só um psicopata, não tinha remorsos de seus atos imundos, me enganou... mentiu para mim. Me usou, nem sequer sentia algo por mim... e tanta gente morreu naquele dia, também não sinto remorsos, só solidão.”

Ela respirava devagar, quase um suspiro, e sentia a mente possuída pelo mesmo pensamento... repetindo a mesma história vinte quatro horas por dia em sua cabeça. Engoliu algumas das pílulas a seco, em seguidas engoliu um café frio do dia anterior, no corredor ignorou o espelho e seguiu para sua rotina.

”Estudamos juntos durante dois anos, você nunca me notou, nunca. Te observava na biblioteca, no pátio, no caminho para casa... e você nada. Talvez me achasse estranha. Elas te achavam... as meninas da escola. Naquele dia resolvi acabar com meu sofrimento... você estava lá, sozinho... desenhando, cheguei bem perto e vi os fantasmas que te assombravam. Eram retratados em figuras que rabiscava em folhas e sangue...”

No quarto levemente iluminado preparou a tela branca no cavalete, as tintas na palheta e prendeu os longos cabelos desgrenhados. Sentou-se em um pequeno banco de madeira e acendeu um cigarro... tragou saboreando a fumaça encharcando os pulmões e voltando para o ar pesado do recinto. Encarou os olhos azuis e assustados do garoto amarrado no canto do cômodo... achava o terror uma coisa linda, os pêlos de seu corpo se arrepiavam quando sentia o cheiro do medo... e ele se parecia tanto...

“Então sugeri quase inocentemente que poderíamos fazer aquilo juntos – assassinatos em massa – poderíamos calar todos aqueles sorrisos imundos – juntos – você me olhou nos olhos, pela primeira vez... e eu alimentei seu ódio com doses diárias de motivações vagas, fui leal, cumpri minhas promessas, já você...”

Marcou com lápis o esboço de sua pintura- seria sua obra prima- enquanto o menino amordaçado gemia e se debatia no quarto escuro, às vezes ela o fitava por alguns segundos, seus olhos brilhavam... ela nunca quis machucá-los... nunca quis matar nenhum deles.

“Fazia um frio quase insuportável, eu levei as armas, duas doze, um revólver e uma submetralhadora, você estava tão bonito, usava uma roupa toda preta... disse que seria o último dia de nossas vidas e o mais intenso, então fez a promessa... prometeu que me mataria... você prometeu.”

Aproximou-se lentamente do garoto acuado, que se encolhia no canto do quarto, com um estilete bem afiado ela cortou mechas dos cabelos loiros do rapaz com os quais confeccionou os pincéis que usaria... colheu em um pequeno recipiente as lágrimas de medo e diluiu as tintas acrílicas. Era bom aterrorizá-lo.

“Trancada, sozinha, traída, esperei que alguém abrisse a porta. Tarde demais, segui seu rastro de sangue, da entrada da escola enxerguei o massacre. Você matou dez pessoas aquele dia, depois se suicidou...”

Com o mesmo estilete fez, lentamente, um corte preciso no pescoço do menino... e enquanto ele agonizava em seus últimos segundos de vida... colheu seu sangue para os tons de vermelho de sua tela. Fazia isso com uma simplicidade tão grande, que chegava a parecer banal.

“Hoje sou uma velha com pensamentos adolescentes – ridículo – sou mesmo patética. Não consigo me libertar desse fantasma da juventude e essa dor me consome dia após dia... será que nunca vou me livrar da prisão daqueles profundos olhos azuis.”

Após o transe que a consumia na produção de sua arte, se viu sozinha em um quarto escuro, somente um cadáver banhado em sangue lhe fazia companhia... e o quadro recém pintado refletia o mesmo rosto, os profundos olhos azuis que a traíram um dia. E no silêncio corrosivo em que se encontrava, observou uma mosca pousar sobre a tela, e ali permanecer, presa por seu instinto ao sabor do sangue.

“Ele foi minha primeira e única obsessão.”

Nesse dia percebeu que só havia uma coisa que preencheria o vazio que ele deixou em seu peito. E que aqueles garotos que usava como espelhos dele, não passavam de meninos inocentes.

“Hoje realizo meu sonho... na porta do shopping lotado- domingo á noite- descarrego meu ódio e ressentimentos, duas doze, um revólver e uma submetralhadora - era a sua preferida.”

Seus quadros foram expostos e vendidos pelo mundo inteiro... é impressionante com o ser humano se sente atraído pela morte, os corpos dos meninos nunca foram encontrados e a promessa dele nunca foi cumprida...

“Um mar de sangue se abriu para que eu passasse, gritos ecoavam como uma musica forte e intensa e eu soberana no centro do mundo. Corpos irreconhecíveis, pedaços humanos de carne, sangue, fezes e massa encefálica esparramados no piso branco bem encerado... quase reluzente... mais de dez pessoas morreram nesse dia, inclusive eu.”

Talvez ela o encontre no inferno, ou só encontre escuridão.

A duas quadras de onde ela morava uma mãe, que ainda chorava o desaparecimento do filho, tenta acalmar o cão que late compulsivamente para o novo quadro pendurado na parede... o rosto disforme de um rapaz que se parecia muito com o filho sumido.

“Ass: Lenore Raven”

FIM

Escolhi o tema Serial Killer (meu preferido :) rs)... comentem...

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 13/02/2013
Reeditado em 14/02/2013
Código do texto: T4138712
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