Décimo segundo Andar

Olhei para a janela, mas eu não podia fazer nada.
 
 Á distancia que estava do ponto de partida de toda aquela fatídica tragédia, vislumbrei o reflexo do sol. Meus olhos quase sofreram pela intensidade ofuscante que a luz provocava.
 
  Levantei-me daquela cama dura e me apavorei. Abaixo de mim o liquido denunciador de minha covardia exalava seu odor fétido.
 
 Tamanha a repulsa àquele cheiro, senti o gosto adocicado do veneno da vida tomar minha boca. Podia de certo ser comparado a uma criança que ainda urinava na cama, mas enfim, sempre soube que não era assim.
 
  O barulho da cidade e o cheiro dos diversos poluentes tomavam o ar em forma de fumaça e impregnavam-se ás roupas dos que ali passavam, molestando todo aquele caótico ambiente.
 
  Um guarda noticiava pelo radio enquanto olhava para mim melancolicamente. Pude ver a criança ainda no 12º andar. Estava dependurada e tinha os pés livres enquanto uma mão estava segura a grade que cercava a sacada.
 
  O céu nublado acima de nossas cabeças dava um tom austero aquele momento.  Perdi uma lágrima de vista, e senti o coração pulsar mais rápido, como se isso deveras fosse possível.
 
  Olhei-a e percebi que continuava ali, dependurada, os pés vacilantes no ar enquanto seus cabelos dançavam ao ritmo acelerado do vento que aquela altura, era em demasia intenso.
 
  Não poderia salvá-la, e tampouco a mim. Senti que Deus de alguma forma estava me punindo por tamanha pusilanimidade. Ainda movido pela esperança olhei para os lados e procurei alguém que deveras pudesse me ouvir. Em meio ao denso silencio, senti um espasmo e os últimos trinta minutos de minha vida passaram pelos meus olhos. 
 
...
 
 - Pai? – Ela chamou enquanto eu engolia em seco toda minha tragédia pessoal. Minha mulher havia morrido, eu, bem eu estava na casa do ordinário que a havia matado. Entrei naquele maldito prédio com uma caixa de pizza. Eu vigiei aquele irresponsável por longos dezenove dias, os dias mais amargos que já havia vivido.
 
 Num deles consegui descobrir que o assassino adorava comer pizza, e toda maldita sexta-feira ele comprava uma pizza grande, com bastante maionese, e a recebia na porta de sua casa.
 
 Segui o entregador certo dia. Era um garoto de não mais que dezenove anos. Ele parou num bar após o expediente e então o chamei para jogar três fichas de sinuca. Paguei algumas cervejas e isso bastou para que conversássemos sobre seus clientes, sobre sua rotina e ele, um pobre coitado, contou-me das pessoas e de seus hábitos incomuns. Logo chegamos ao ponto que eu tanto queria.
 
 Hoje há cerca de quarenta minutos atrás lá estava eu, entrei com a entrega do garoto, que estava amarrado e amordaçado dentro de uma caçamba de lixo há três quarteirões dali. Girei o tambor daquele revólver velho que comprei por míseros R$300, 00 por um sujeitinho de olhos vermelhos sangrentos. Um viciado qualquer que decerto queimaria tudo por um enrolado de maconha.
 
 Entrei no elevador e os poucos minutos daquela longa viagem aceleraram todo meu organismo. Senti o pulsar do ódio aliado a ansiedade de executar aquele trabalho que até então parecia ser tão satisfatório.
 
 Toquei a campainha e lá estava ele, sorrindo. Usava terno, gravata, um brilhoso sapato social e ainda queria comer pizza.
 
 - Maldito egoísta filho da puta! – Pensei como se fosse o dono do mundo e completamente ensandecido disparei três vezes tendo a certeza que em ao menos um deles acertara o cerne do peito do ordinário. Três covardes disparos à queima roupa.
 
  Enquanto tudo isso acontecia, naqueles breves segundos derradeiros, a imagem de minha mulher percorria minha mente, e se cicatrizava em meus olhos.
 
  Ela ainda estava na mesa de cirurgia, agonizando de dor por uma imprudência médica, por uma escolha errada, por um diagnóstico que posteriormente fora descoberto como um simples equivoco. Maldito seja o cadáver que estava a minha frente.
 
  Um mero erro de um doutorzinho de quinta que atendia 30 pacientes em cerca de uma hora em seu consultório, apenas para pagar um quarto luxuoso e comprar sua costumeira pizza toda sexta feira à tarde, apenas para dizer;
 
 - Que se dane eu tenho dinheiro para pagar essa porra!
 
  Chutei o desgraçado pelo chão, vi seu corpo inerte responder aos meus golpes abruptamente quase tomando vida, enquanto sua roupa era tingida daquele carmesim sádico que estupidamente me enchia de uma paz quase enlouquecedora.
 
  E foi quando o acertei um chute no rosto possivelmente quebrando seu nariz que ela saiu de traz da porta da sala e senti que a embriagues enfim havia me dominado.
 
 - Pai? – Ela chamou enquanto eu engolia em seco toda minha tragédia pessoal. 
 
  Os olhos inocentes da bela viam a fera que transparecia em mim, num auto-relevo assustador.  Os olhos dela mergulhados num mar exterior que eclodia de seus mais íntimos e perturbados sentimentos.
 
  Senti um choque interno, o peito parou e o coração já não respondia ao meu pulso ou vice e versa. Meu único impulso foi o total e vão arrependimento, deixei a arma cair e mergulhei dentro de minha própria culpa.
 
  Olhei para a criança e a vi assustada. Uma garotinha de não mais que oito anos de idade, trajando um vestido rosa, com dezenas de corações meticulosamente proporcionais, e em sua cabeça prendendo os longos cachos dourados, havia um arco com uma flor de pano presa a ele.
 
  Eu sentia muito, mas não tanto quanto ela. Ela olhou seu pai no chão e correu temerosa de mim. Segui-a por um tolo reflexo e quando vi já havia cercado-a na varanda.
 
  Ela olhou para mim e então subiu até a grade da varanda, ficou de pé sobre a viga de não mais que oito centímetros de largura e então me olhou fixamente deixando seu corpo cair para trás, se jogando do décimo segundo andar.
 
  Culpado, vi-me um maldito covarde. Um homem que havia cometido um grave erro com a intenção chula de concertar outro. Lancei-me ao encontro daquele suave e pequeno corpo, e num ato de misericórdia divina vi que Deus deveras era piedoso.
 
  Minha mão vacilou no ar e meu corpo bateu contra a grade que não tão forte assim rompeu-se ficando dependurada no beiral, por dois parafusos, entortada, mas firme enquanto eu descia desenfreado, doze andares avistando cada vez mais longe o corpo de uma pequena criança, um anjo que havia me mostrado que a vida fazia sentido e que eu estava errado.
 
  O espasmo terminou e então vi os bombeiros apavorados gritando que não daria tempo, que ela estaria morta. A grade cedeu e eu implorei a Deus por um milagre. Senti o sangue tocar minha língua de forma devassa e uma melodia cheia de suspense regada a batidas e suspiros audíveis chegou a mim num ritmo que chegava a ser frenético.
 
  Eu não estava mais em meu corpo, pois esse estava molhado, deitado sobre um colchão negro e duro. Eu parecia viver em outro alguém. Estava mergulhado em meu próprio sangue, uma alma covarde aguardando o momento de queimar no inferno, mas Deus me olhou por uma ultima vez e então me concedeu um pedido.
 
  Eu vi a mão dele, era como se eu tivesse um binóculo, era como se eu o visse de perto, como se eu estivesse lá. E eu estava.
 
  Os dedos dela deslizaram pela grade enquanto ela olhava para aquele céu tenebroso e a luz do sol brilhou enquanto pelo medo os olhos dela se fecharam.
 
  Pude sentir o baque do corpo dele quase sendo puxado por ela, eu não poderia acreditar, mas ele estava vivo. Havia um caminho de sangue por onde ele havia se arrastado heroicamente.
A menina estava viva, junto a seu pai. Ele a puxou para cima enquanto um bando de bombeiros acabara de arrombar a porta e entrar no quarto. Um médico chegou enquanto ele aparentemente podia me ver. O médico o olhou e então o disse:
 
  - Você foi muito forte, homem. Sua filha está viva! - Disse o médico enquanto já cuidava dele.
 
 - Ele a salvou. Ele me perdoou e Deus me deu outra chance – Ele disse como se pudesse me ver ali. Mas eu era apenas uma alma e não havia feito nada.
 
 - Você está delirando! Ele está delirando! – O médico dizia.
 
  E assim ele me olhou fixamente e então pude ter certeza de que ele falava comigo.
 
 - Eu sinto muito por sua esposa, eu sei o que é perder alguém – Disse enquanto olhava para uma foto encima da escrivaninha. Nela pude ver a mulher dele, e o estranho é que havia várias fotos e em uma delas ela não tinha cabelo algum e os três comiam uma fatia de pizza.
 
 As bocas quase se encontravam. Os rostos colados, unidos e para que eu entendesse bem aquele momento havia uma frase no rodapé da imagem que dizia;
 
  “Eu sempre serei uma fatia dessa pizza!”
 
 E então eu sorri para ele. Olhei para meu corpo, eu estava tão longe, bem no décimo segundo andar. Ali eu vi que por uma fração de segundos eu fui ele. Nossos olhos se encontraram e me vi no parapeito. Olhei para o mar de pessoas lá embaixo. Ninguém me via a não ser minha amada. Fazer o quê uma hora dessas?
 
 Eu simplesmente pulei do décimo segundo andar.
 

Fim!

 
Sejam sempre bem vindos!

 
Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 04/02/2013
Reeditado em 05/02/2013
Código do texto: T4123026
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