ÚLTIMO ATO? DTRL

“Triste de quem vive em casa

Contente com seu lar

Sem que um sonho, no erguer da asa

Faça até a mais rubra brasa

A lareira abandonar”

FERNANDO PESSOA

Foi William quem o convidou para aquele passeio turístico um tanto insólito. Iriam de ônibus, madrugada adentro, visitar locais que eram considerados assombrados ou que tinham virado, ao longo dos anos, lendas urbanas.

Não tinha especial predileção por coisas sombrias ou assuntos fantasmagóricos, mas a oportunidade de um tour após a meia-noite pela cidade sem que houvesse riscos maiores de violência o convenceu.

Foram de automóvel até o local de onde o ônibus partiria. Havia em torno de trinta pessoas. Idosos, alguns representantes de tribos urbanas bem típicas, pessoas fantasiadas de zumbis e até os que não se caracterizavam, como ele e o amigo.

Todos acomodados em seus lugares e o ônibus partiu. O guia, um sujeito com pinta de professor de história, distribuiu-lhes um pequeno roteiro do passeio com explicações sucintas sobre cada local a ser visitado e os fenômenos que ali ocorriam. Também tratou de animá-los exibindo trechos de documentários e de filmes de terror. Era nítido o frenesi para que chegassem logo ao primeiro local indicado.

Os locais foram se sucedendo e pelos comentários, risos nervosos e expectativas confirmadas ou não ficava nítido o interesse de cada um ou das pequenas tribos pelo que mais lhes interessava.

O último local a ser visitado foi o centenário prédio do Teatro Municipal. Ex-ator amador de parco talento sentiu um leve arrepio quando pararam à frente do imponente prédio. Ficou por último naquela fila. Desligou-Se por completo do restante quando começaram a andar por corredores pouco iluminados. Entreteu-se com camarins, a casa das máquinas de onde manipulavam todos os jogos de cenários e iluminação. Quando deu por si já estava na plateia, de frente para o enorme palco. Silêncio. Da coxia pareceu ouvir um leve chamado. Olhou imediatamente e imaginou reconhecer na sombra daquele rosto um velho ator já morto; havia ainda a sombra de uma enorme alegoria. Com um gesto ele indicou-lhe a escada lateral que dava acesso ao imenso palco. Subiu pela esquerda. Da coxia a voz ordenou que olhasse para o lado oposto. Viu, ou imaginou ver, a alegoria materializar-se numa imensa serpente que era manipulada pela trupe que até então estivera ao lado dele no tour daquela madrugada. Tentou balbuciar uma frase, mas ouviu um psiu e manteve-se calado. Quando a serpente avançou mais pensou reconhecer o rosto do guia na figura que manipulava sua enorme cabeça. Caminhou em direção ao grupo.

Olhou para a cortina de fundo e a alegoria projetada mostrava uma bocarra agressivamente avançando para ele. Num gesto instintivo de defesa protegeu o rosto com os braços. Sentiu a dor aguda de uma picada.

Enquanto caia notou um riso de escárnio no rosto da figura que parecia um velho ator já morto.

“Não há nitidez nenhuma na natureza humana. Essa é que é a graça da vida.”

LYGIA FAGUNDES TELLES

NOTAS

1 – Devo um tributo à colega de RL, Eliane Verica, pelo uso da serpente ainda que alegoricamente, pois foi a partir do final de seu conto “Na Escuridão” que desenvolvi a idéia.

2 – Parabenizar ao Felipe T S pela feliz sugestão. Valeu, Felipe!

Cleo Ferreira
Enviado por Cleo Ferreira em 01/02/2013
Reeditado em 01/02/2013
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