Bem meus caros, atentendo a um convite de Felipe T S resolvi dar as caras e participar do desafio. Aliás uma iniciativa que só merece aplausos, pois tem produzido excelentes contos e incentivando muita gente boa a escrever. Parabéns pelo projeto pessoal, espero que meu conto esteja a altura, coloquei um pouquinho de cada tema e o contextualizei a minha região mesmo. Boa leitura!

O Lobo e a Donzela - DTRL
A História de Antônio e Danielle

 
Muitos homens sãos castigados por seus crimes. Mas meu crime meus caros, meu crime foi somente o de amar, amar sem limites. E minha pena para isso é um sofrimento eterno, uma maldição da qual não posso escapar.
E isso já faz cem anos...
Meu nome é Antônio. Era o início do século XX, eu, um mero filho de ex-escravos, trabalhava tão ou mais do que meus pais trabalharam em sua época de escravidão, colhia café em uma fazenda no Vale do Rio Paraibuna entre os atuais estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Vivia para trabalhar e meu trabalho servia apenas para enriquecer ainda mais o antigo Barão dono da fazenda, homem mau e cruel que nunca aceitou a libertação dos escravos, por isso tratava todos os negros da fazenda como se ainda fossem cativos, até o açoite ainda era usado em seus castigos.
Neste ambiente desolador havia uma única luz a brilhar em minha vida: Danielle. Danielle era a filha do Barão, moça altiva, de pele clara como o leite e os cabelos negros e brilhantes como a própria noite estrelada. Desde criança Danielle e eu nos encontrávamos as escondidas, cresci junto dela, com ela descobri os segredos do mundo, com ela vivi a inocência da infância, pois todo o resto eram apenas desolação e dor.
“Danielle, quantas vezes já falei para não brincar com este negrinho sujo!” – esbravejava o Barão quando nos flagrava juntos. Quando isso acontecia Danielle ficava dias trancafiada em seu quarto e minhas costas de menino recebiam a visita do açoite. Porém isso não nos desestimulava, assim que o castigo acabava Danielle voltava e me procurava.
E por muito tempo foi assim, entretanto até o próprio tempo passa e chega o dia em que as crianças não são mais crianças. Eu crescia, Danielle crescia. Vi a meiga menina ir se transformando em uma formosa moça, seu corpo tornava-se mais esquio, suas formas ganhavam contornos arredondados, seus pequenos seios ganhavam volume e me alimentavam com estranhas e desconhecidas fantasias. A própria voz de Danielle mudava, assim como seu cheiro, mais doce do que o das rosas dos jardins. Já naquele tempo um sentimento estranho tomava conta de mim, algo que não sabia explicar. E Danielle sentia por mim algo reciproco, em nossos encontros já não era mais com as brincadeiras infantis que nos ocupávamos e sim com a busca do olhar mútuo e a redescoberta do corpo, mesmo que de forma inocente, pois ainda éramos jovens, contávamos os dois com quinze anos cada.
Mas havia o grande problema na forma daquele demônio feito homem, o Barão, que cansado de nossos encontros decidiu mandar a filha para a capital, naquela época ainda o Rio de Janeiro.
“Assim ela aprende a conviver com gente de sua estirpe. Enquanto este negrinho sem vergonha receberá o castigo merecido!”
Assim Danielle foi levada de mim e eu castigado. Fui usado como exemplo, todos os antigos métodos de tortura foram usados pelo Barão e seus outros filhos, os irmãos de Danielle, tão cruéis e covardes como o pai. Ele ria e se divertia enquanto meu sangue era derramado.
“Conheça teu lugar seu negro!” – dizia ele.
E eu chorava e gritava, não pela dor das chagas impostas, mas sim por perder Danielle, minha amada Danielle, sim, mesmo jovem já sabia que aquilo só poderia ser amor.
Cinco anos se passaram. As cicatrizes, remanescentes das sessões de tortura, dominavam todo meu corpo, uma lembrança dolorosa de um amor perdido. Mas eu ainda esperava por ela, rogava aos céus poder vê-la novamente. E fui atendido, Danielle voltou e meu coração quase parou ao contempla-a de novo. A menina havia completado sua transformação, agora era uma mulher, uma bela mulher.
Impedido de me aproximar dela apenas a observava de longe, descia da carruagem com a delicadeza de uma dama, movimentos cronometrados, porte altivo. Mas será que ela se lembrava de mim? Será que se lembrava de nossos dias perdidos na infância? Será que a vida na capital, com seu luxo e esplendor, não a tinha feito esquecer-se do inocente amor juvenil?
Um olhar perdido em busca de algo ao redor, Danielle procura por alguém nos descampados a volta do casarão da fazenda. Quando seus olhos finalmente encontram os meus vejo primeiro uma hesitação, como se tentasse lembrar-se de algo, depois um brilho repentino em sua face e o esboço de um sorriso. Ela se lembrava de mim!
O belo sorriso não dura muito, eis que surge o demônio. O Barão arrasta a filha para dentro como se ela fosse menos que um objeto, mesmo assim Danielle move um pouco a cabeça e vejo outra vez seus olhos castanhos, brilhando com a alegria de voltar as suas origens. Mas vejo também o olhar do Barão, vermelho, colérico e ameaçador e me retiro dali, feliz por meu amor ter retornado.
Os dias vão passando. Danielle não sai de casa. É vigiada dia e noite pelos pais e pelos irmãos como se fosse uma prisioneira. Eu também sou vigiado, impedido de me aproximar do casarão. A esperança surge então nas palavras de uma velha criada, a ama de Danielle:
“Antônio, Sinhazinha quer vê ocê, meia-noite lá na capela, mas num dexa ninguém apercebe não.”
Agradeço a velha senhora e me preparo para o encontro. Minhas roupas não passam de farrapos, por isso percorro a fazenda em busca de vestimentas decentes, me lavo no rio e me perfumo com as ervas dos campos.
A noite cai. Espero na capela. A ansiedade me consome. Será que ela viria? Conseguiria ela escapar do cerco do Barão?
A porta da pequena igreja se abre e um anjo surge a minha frente. Lá está Danielle, iluminada apenas pela luz das velas, parece uma entidade enviada pelo próprio Deus.
“Antônio!” – diz ela – “Ó Deus, como esperei por este momento!”
Corremos um em direção ao outro. Nossos corpos se tocam em um grande abraço. Toda a infância e juventude são relembradas em poucos instantes, era como se nunca houvéssemos nos separado.
“Lamento tanto Antônio, lamento tanto ter feito você sofrer por minha causa.”
“Pois sofreria tudo novamente Danielle.”
E nossos corpos se exploram, nossas bocas se tocam. Descobri em Danielle o mesmo sentimento contido em mim. Cinco anos afastados estivemos e naquele tempo todo nosso amor só cresceu com a distancia.
Assim, no ambiente sagrado da capela consumamos o mais divino dos pecados. Eu e Danielle, Danielle e eu.
A noite corre. Perdidos em nosso tempo particular não nos damos conta da passagem das horas. O galo canta. O Sol ressurge, mas ao invés de luz apenas as trevas nos esperam.
Abraçados e nus no chão da igreja percebemos apenas sombras sobre nós e depois aquela voz trovejante do demônio:
“Desgraçados!” – irrompe o Barão nos despertando com sua fúria – “Malditos! Desejarão nunca ter nascido.”
Somos contidos e arrastados, nus como estávamos, pelo Barão e seus filhos.
“Filha minha não nasceu para dormir com um negro!” - continuava ele em sua ira – “Deus é testemunha, prefiro vê-la morta a passar por essa vergonha.” Dizia ele enquanto esmurrava a própria filha.
“Larga ela seu desgraçado!” – eu gritava enfrentando meu carrasco pela primeira vez.
“Cale-se escravo.”
“Não sou escravo, ninguém mais é! Sou livre, livre para viver e amar sua filha!”
O Barão apenas riu de mim.
“Pois tua liberdade vai custar caro, enquanto essa aqui.” – falou ela puxando os cabelos de Danielle – “Essa aqui vai conhecer o mesmo castigo aplicado a você no passado.”
Assim meus caros iniciou-se minha sina. Fui acorrentado e vi Danielle ser castigada pelo próprio pai, as mesmas torturas pelas quais passei. Eles foram além e não pouparam nem seu ventre, tiveram relações violentas e incestuosas com ela. Danielle foi violentada pelos próprio pai e irmãos.
“Já não é mais pura mesmo!” – gritavam eles como animais.
E ela não resistiu. Era dor demais para ela. Minha amada morreu aquele dia.
“Viu Antônio? Matou Danielle!” – disse o Barão - “Agora é tua vez de ser castigado.”
E mais uma vez sofri. Chutes, socos, açoites, ferros em brasa. Todo o tipo de castigo imaginável. Meu sangue escorria como torrentes de água, minha carne era rasgada e queimada como a de uma rês condenada. A esperança acabava-se aos poucos.
“Agora, amarrem esse infeliz no tronco e deixem que morra!” – ordenou o Barão.
Fui amarrado ao velho tronco e lá deixado, nu e sangrando, indefeso contra os ataques do tempo e dos animais carniceiros. E Danielle foi posta em um caixão e enterrada sem um funeral, apenas com uma cruz de madeira a marcar seu sepulcro.
E meus castigos prosseguiram. Durante três dias e três noites fui alvo de pedras, paus, socos e todo tipo de agressões, minhas chagas eram molhadas com vinagre, minha pele tostava ao Sol. Mas o ódio crescente em meu coração e a sede de vingança me mantinham vivo.
“Não quer morrer negro? Melhor assim, que sofra mais!” – dizia o Barão cuspindo em minha cara.
E na terceira noite meus olhos não resistiam mais e davam adeus as luzes do mundo, sentia a vida escapar do meu corpo, sentia meu espirito vagar pelo mundo das sombras. Amarrado ao tronco eu vi surgirem a minha volta as almas dos muitos que morreram ali, todos os escravos que sofreram nas mãos da família do Barão em todas as eras passadas. Eles pareciam dançar e cantar, entoando rituais a muito esquecidos. Eu observava tudo aquilo e tentei balbuciar algumas palavras:
“Me ajudem, me ajudem por favor!”
Um daqueles espectros, a figura de um ancião de barba e cabelos brancos, se aproximou de mim e disse:
“Muito ódio ainda vive em teu coração Antônio, abandone-o e venha conosco.” – pediu ele.
“Não! Eu quero vingança! Quero vingança e o amor de Danielle de volta!”
“Pois bem Antônio, vejo que teu desejo é forte, mas lembre-se, aqueles que buscam o mal viverão com o mal. Amor e vingança não podem viver juntos. Se escolher viver assim viverá nas sombras, você e sua Danielle. Tem certeza que quer isso?”
Sem Danielle não haveria luz, sem Danielle a escuridão seria pior do que as sombras. Sim, eu estava certo do que queria.
“Eu quero vingança!” – sentenciei.
O velho se afastou e reiniciou sua dança frenética. Gritos e urros na noite mais escura jamais vista. Pretos velhos invocando entidades antigas e poderosas. Senti meu corpo se regenerar. Senti meu coração bater mais forte. De repente meus músculos explodiram em força e arrebentei as grossas cordas que me atavam ao tronco.
“Está feito Antônio.” – falou o velho – “Fez um acordo, e por este acordo para sempre serás maldito, tanto você como tua Danielle. Você Antônio vagará de dia desfigurado pela tortura que lhe foi imposta, mas depois do por do Sol andará altivo como as feras da escuridão e tua Danielle conhecerá apenas a noite e terá como alimento somente o sangue dos vivos. Mas como disse, está feito, e não há como voltar atrás.”
O velho e os outros espíritos desapareceram na noite, me deixando sozinho na escuridão. Grato pela minha nova vida caminhei alguns passos, mas logo cai ao chão, uma dor lancinante corroía minhas entranhas. Não entendia o que acontecia e por instantes cheguei a pensar que os espíritos me enganaram. Estava errado. Na verdade eu iniciava minha transformação, a maldição mostrava sua face.
“Danielle...” – murmurei. Aproveitei meus últimos momentos como homem e corri até o túmulo de minha amada.
Quando lá cheguei ouvi o som de socos na madeira, era ela! Tentava escapar. Cavei a terra com minhas próprias mãos, mãos que a medida que cavava transformavam-se em garras.
Enfim alcancei o caixão e com a força de uma animal eu o retirei de sua cova e o depositei suavemente no chão. Mal conseguia ficar de pé, tamanha a agonia que sentia, de qualquer forma abri o caixão. Ao invés do cheiro repugnante da morte senti apenas o doce cheiro de Danielle, seu corpo não apresentava mais as marcas da tortura, sua pele conservava-se branca e suave como sempre foi e ela estava de olhos abertos e assim que me viu disse:
“Antônio!”
Mas eu já não era o mesmo Antônio, cai ao chão mais uma vez. Me contorcia e grunhia como um monstro. Meus pelos cresciam, minhas unhas cresciam, minhas pressas cresciam e, sobretudo, crescia dentro de mim o desejo animal de provar carne, carne humana.
“Oh Antônio!” – falou Danielle se levantando do caixão e se aproximando de mim – “Visitei o mundo dos mortos, mas muito pedi para voltar. Eles nos fizeram sofrer Antônio, foram eles os culpados de nossa sina.”
Danielle se abaixou e acariciou meus pelos, seu toque angelical aliviava um pouco meu sofrimento.
“Não se preocupe meu amor.” – continuou ela – “Eles pagarão por isso e nós nunca mais iremos nos separar, viveremos juntos para todo sempre. Agora vamos Antônio, vamos cumprir nosso destino.”
Assim Danielle e eu, agora metade homem, metade lobo, seguimos na direção do casarão, prontos a cumprir nossa vingança.
Danielle para em frente à porta. Bate com força. Escutamos obscenidades e palavras de ódio, é o velho Barão enfurecido por ter seu sono interrompido.
“Quem ousa bater a minha porta?”
Alguém abre a porta. Um grito rouco dispara na noite terminando por acordar a todos:
“Cruz em credo!” – esbraveja a velha criada enquanto cai desmaiada.
Todos na casa se sobressaltam, Danielle entra no recinto e eu a sigo de perto, com meus novos sentidos farejo o medo crescer nos moradores daquela casa. Não demora o primeiro deles, um dos irmãos de Danielle, surge aos pés da escadaria.
“Danielle!!!” – grita ele e tenta correr.
Mas eu não permito, corro em sua direção e o derrubo no chão, minhas pressas arranham suas costas e meus dentes cortam seu pescoço. Pela primeira vez sinto o gosto da carne humana, um gosto bom e agradável que me vicia já naquele instante.
Os outros irmãos de Danielle logo aparecem. Minha amada esquece todo o resquício de amor fraternal e avança sobre eles, de sua doce boca surgem duas pressas, bem menores que as minhas, mas igualmente mortais, ela as crava na garganta de um de seus irmãos e eu finalmente entendo as palavras do velho: “e sua Danielle conhecerá apenas a noite e terá como alimento somente o sangue dos vivos.”
Avanço sobre o outro irmão, me atiro em cima dele e o esmago só com o meu grande peso, sinto seus ossos se quebraram e seu coração explodir, coração que busco perfurando seu peito e o arrancando com meus dentes.
Assim prosseguimos. Matamos todos os irmãos de Danielle, matamos os capatazes do Barão, capangas tão corruptos quando o patrão. Danielle se alimenta de seu sangue e eu de suas carcaças. A própria mãe de Danielle, conivente com as perversidades do marido, tem seu destino decretado e morre nas mãos da filha que um dia amamentou com leite, mas que agora quer somente seu sangue.
Contemplamos nosso feito. O velho casarão transformado no palco de uma carnificina, entretanto ainda falta alguém, falta um corpo. A carne mais desejada, o sangue mais cobiçado, o Barão, não está à vista.
“Pai!” – exclama Danielle. – “Não se esconda pai. Sabemos que está aqui.”
Farejo um odor covarde no ar, um cheiro repugnante. Guiado por meu olfato eu e Danielle percorremos os inúmeros quartos daquela casa até o encontrarmos. Lá estava o velho Barão, encolhido no chão e chorando feito uma criança, segurando um rosário na mão.
“Afasta-te demônio!” – grita ele.
“Tem medo de demônios pai?” – perguntou Danielle –“Mas como pode ser se se comportou como um a vida toda?”
O velho Barão ainda tremulo se arrastou aos pés de Danielle e implorou:
“Perdoe-me filha, eu só queria protege-la daquele negro.”
Ao ouvir isso eu rosnei e o Barão olhou dentro de meus olhos.
“É você!” – ele gritou apavorado – “Seu negro maldito! Os dois são malditos! Sumam de minha vista, sumam!”
Era tarde para ele. Eu e Danielle avançamos sobre seu corpo imprestável e o fizemos sofrer devagar, extraindo dele até a última gota de dor. Não ingerimos nem de seu sangue nem de sua carne, frios demais para nosso gosto, apenas o deleite da vingança nos saciava.
Estava feito.
Abandonamos a fazenda. Arrastei o caixão de Danielle para uma gruta escura e protegida da luz. Assim que o dia amanheceu ela dormiu novamente em sua urna mortuária e eu deixei de ser uma fera, voltei a ser o Antônio de antes, mutilado pela tortura.
E assim tem sido há cem anos. Eu e Danielle. De dia ela dorme e eu vago como um deformado, uma forma grotesca e desfigurada, simples sombra do homem que fui um dia. A noite ela acorda, sempre com sede e sempre bela, mas eu, eu abandono a minha forma humana, sou apenas um grande e abominável lobo-homem, correndo pela escuridão em busca de presas para minha amada.
Essa meus caros é nossa sina, nossa maldição, estamos juntos para todo o sempre, mas nossas bocas nunca mais se beijarão. 
 
Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 31/01/2013
Reeditado em 31/01/2013
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