A Sombra de um Amigo - DTRL
Fernando e Sabrina sabiam que seu filho não era uma criança normal. A forte sensibilidade à luz o tornara diferente. Ele não podia sair ao sol, e sua falta de vitaminas era suprida por diversos medicamentos.
João era uma criança triste, inconformado com sua situação. Queria mudar, mas desconhecia os limites da doença que o afligia desde que nasceu.
Foi então que numa tarde chuvosa, a inocente criança começou a brincar.
Sabrina lavava pratos quando ouviu as risadas do filho. Fernando não havia voltado do trabalho, de forma que somente ela e a criança estavam na casa.
Era um diálogo, mas só ele falava.
Ela se dirigiu até o quarto do garoto e o contemplou escondida atrás da porta. A luz azul que iluminava debilmente o recinto exibia a pequena sombra no chão e o menino empolgado brincava em torno dela, rindo de seus movimentos e animado com sua descoberta. A de que tinha um amigo enfim.
Sabrina deixou o cômodo sorrateira, recordando dos assuntos a respeito de amigos imaginários, experiência vivida por muitas crianças na idade de João.
O relógio já se aproximava do meio dia e as brincadeiras não cessavam. Os risos altos ecoavam pela casa e Sabrina resolveu não incomodá-lo. Ao invés disso, sentou-se no sofá com os olhos atentos na televisão e cochilou.
Nesse meio tempo teve um sonho. Homens mascarados invadiram sua casa e tentavam levar o filho.
Ela implorava que o deixassem quando um deles apontou um revolver em sua direção e disparou.
Sabrina acordou assustada no momento em que ouviu o estampido. A sua frente, João a observava com cara de choro.
-Filho... - disse ela ainda se recompondo - O que foi?
-O Miguel não quer mais brincar comigo...
-Quem é Miguel meu filho?
-Meu amigo... Ele disse que ia embora, mas que voltava depois. Eu falei que não, mas ele saiu...
João falava sobre seu amigo imaginário.
-Filho... Não se preocupe... Logo ele volta, não é?
-Só no meu quarto mamãe. Ele disse que viu você olhando pela porta. Ele não gostou e foi embora... Mas ele disse que volta quando você não estiver por perto...
Sabrina corou por um instante, aborrecida por ter estragado a brincadeira do filho. João não tinha amigos reais. As crianças brincavam na rua e ele não podia frequentar a escola, de forma que a única amizade que seu estado de confinamento permitia era a dele próprio.
-Porque você não chama o seu amigo para comer? O que acha? Já passou da hora de almoçar...
João correu até seu quarto e parou de frente a porta balançando a cabeça negativamente.
-E então, filho? - Sabrina falou mais alto - Ele não vem?
O menino balbuciava palavras inaudíveis e fez um sinal positivo com a mão. Após isso respondeu a indagação de sua mãe:
-Ele não está com fome... Falou que depois come. Mas eu estou!
João correu na direção da mãe, e por um instante, Sabrina teve a pequena impressão de ver uma sombra se mover atrás do menino.
Esfregou os olhos ainda sonolenta, e refeita de seu pesadelo, foi para o fogão servir a comida.
Momentos depois ambos estavam satisfeitos e João assistia Chaves na televisão, aparentemente esquecido de seu amigo.
-Pois é Fernando... Ele ria muito, nunca vi o Jo se divertir tanto assim...
A criança agora dormia com a cabeça sobre o braço do sofá e Sabrina contava a experiência a seu marido através do telefone. Ficou poucos minutos até que ele teve de desligar. Fernando era corretor de imóveis e sempre vivia ocupado.
-Sim, sim, claro que te conto mais... Entendo... Depois nos falamos então amor... Um beijo... Também te amo.
Ao desligar o telefone Sabrina ajeitou a criança no sofá e tomou um copo de água na cozinha. Foi até o quarto do filho abrir as janelas e notou que a lâmpada do abajur estava desligada. O menino jamais apagava aquela luz.
Sabrina abaixou-se e acendeu novamente a pequena luz azul e enquanto abria as cortinas sentiu um vento gelado no quarto e um súbito arrepio na espinha.
Parecia haver outra presença naquele cômodo, e de fato lhe ocorreu que poderia ser o tal amigo do filho. Achou graça do pensamento e tomou um susto ao ver o filho exposto a luz do dia, diante da porta.
Suas pernas falharam e por pouco ela não caiu. Raivosa, fechou a janela com violência enquanto o filho ainda a encarava.
-João!!! Você sabe que não pode tomar luz do sol!
O menino, inerte a bronca da mãe respondeu:
-O Miguel também não. Ele falou que não pode.
Sabrina silenciou e foi para a sala, deixando menino sozinho no quarto. Este caíra novamente aos risos, em prosa com seu amigo.
O restante do dia transcorreu normal. Fernando retornara do trabalho e João lhe contava empolgado as experiências com Miguel. Sabrina e o marido se olhavam com uma expressão difícil de decifrar. Um misto de alegria com uma ponta de tristeza, e a certeza de que o garoto passava por uma fase normal à maioria das crianças.
Depois de terminado o jantar, Fernando foi para o quarto do filho. Viu um vulto saltar do chão sobre a cama do garoto as pressas, e pegou o filho tentando se ajeitar debaixo das cobertas.
-Quer dizer que você e o Miguel se dão bem então?
-Ele é muito legal papai.
-Que bom filhão!!! Cadê ele, quero conhece-lo!
-Ele não gosta de você, pai.
A expressão do garoto se tornou fria por uns momentos, como se o próprio Miguel proferisse as palavras.
-Tá bom!! Tá bom... - Fernando riu. - Não precisa se zangar. Quer que eu lhe conte uma história de dormir?
João sorriu dando uma risada irônica.
-Elas não tem graça, pai.
Fernando se ressentiu com as palavras do garoto e levantou-se da cama beijando-lhe a testa.
-Certo filho. Boa noite então.
Após 20 minutos o pequeno João dormia sereno em sua cama. Os pais também deitados discutiam animados o progresso do filho. Um amigo imaginário não era de fato o que eles esperavam, mas o sorriso irradiado nos lábios da criança descrevia a sensação que só uma amizade verdadeira poderia dar.
Duas da manhã. Sabrina levanta assustada com o barulho vindo da cozinha. O marido dormia um sono profundo e sequer se moveu com o pulo da companheira.
Hesitante, Sabrina opta por não acordar Fernando e resolve ver o que aconteceu. Ela abre aos poucos a velha porta de seu quarto, atravessa a sala e olha com a visão embaçada a porta da geladeira aberta.
O silêncio da casa a incomoda, sobretudo pelo ocorrido que precedeu aquele momento. Algo vivo deveria estar ali. O gato da vizinha, o cachorro que entrou pela porta da cozinha aberta. Mas nada, absolutamente nada mostrava outra presença. Com um pouco de medo, ela dirigiu-se até a geladeira e fechou a porta.
Repentinamente o silêncio foi cortado por passos rápidos e Sabrina viu uma sombra esgueirar-se escuridão adentro pouco antes da luz da geladeira desaparecer. Em uma reação natural, ela correu até o quarto e deparou-se com seu marido de pé, do outro lado da porta. Nada recomposta, ela assusta-se outra vez e caiu no chão, aos prantos.
-Querida, o que foi?
-Fernando, eu vi um vulto na cozinha. Eu juro que vi um vulto, e ouvi passos também.
-É impressão sua. Porque você levantou? Foi tomar água?
-Escutei um barulho de alguma coisa caindo dentro da pia e fui ver o que era. Achei que tinha deixado a janela aberta e o gato da vizinha tivesse entrado, mas não... Estava tudo fechado.
Fernando pensou por um instante e decidido falou:
-Vou ver se o João está bem.
-Não, por favor... Estou com medo.
-Venha comigo então. Vamos ver se está tudo bem com ele.
Os dois caminharam devagar e a passos silenciosos em direção ao quarto do menino. Sabrina evitou olhar para a geladeira enquanto passava pela cozinha, colada ao corpo do marido, que segurava sua mão com firmeza.
Abriram delicadamente a porta do quarto da criança. A luz azul do abajur estava acesa e o menino deitado sobre a cama.
-Está tudo bem – Fernando cochichou – Vamos voltar a dormir.
Ambos voltaram para o quarto e em poucos minutos Fernando apagou. Sabrina abraçou o marido, temerosa pelo que presenciara. Tentou afastar os maus pensamentos, e por fim o sono se impôs.
Terça-feira, 08 horas da manhã.
Fernando e Sabrina tomam café e conversam assuntos a toa quando João surge cabisbaixo diante deles. O rosto ainda sonolento e os olhos inchados testemunhavam uma noite agitada.
-Dormiu bem, filho?
-Sim mãe...
A voz de João era hesitante. O menino nunca havia mentido antes.
-João, porque não nos conta a verdade?
O tom de Fernando apesar de inquisitivo era dócil. João era uma criança comportada e humilde. Não conhecia e nunca convivera com outros garotos a ponto de desenvolver malícia, por isso uma mentira, mesmo que pequena era capaz de incomodar.
-O Miguel não deixa.
O menino parecia transtornado, de forma que sua mãe o pegou no colo e o tranquilizou:
-Diz baixinho, no meu ouvido.
O garoto então sussurrou ao que uma Sabrina pálida olhou em direção do marido.
Fernando, inerte a situação tomava seu café sem ligar para aquilo quando por fim a mulher se pronunciou:
-O Miguel veio comer de madrugada.
-Sabrina... Você acredita numa coisa dessas? – Fernando indagou – Foi só um barulho que você ouviu. Não era nada demais...
-Mas e a porta da geladeira aberta?
-É claro que podemos ter esquecido ela assim... Olha amor, não me leve a mal, mas estou atrasado para o trabalho. Vê se não fica pensando nessas coisas. Preciso ir. Depois você me liga e conversamos mais.
Sabrina riu da proposta do marido. Seus telefonemas não duravam mais de dois minutos. Fernando vivia em outro mundo quando estava no emprego.
O dia transcorreu sem maiores novidades. João continuava brincando com seu amigo imaginário e Sabrina continuava cuidando da casa. Fernando chegou cedo, às 18 horas já tinha voltado do trabalho. Assistiu uma comédia com a mulher, e achava graça de João não estar deitado no sofá, e sim sentado para dar espaço ao seu amigo.
As 23h o pai insistia em ler uma história para João, e este negava dizendo que não queria mais ouvir. Aliás, que o Miguel não queria.
Um pouco preocupado, Fernando sai do quarto e ouve estupefato o filho dizer:
-O Miguel vai te matar, pai.
Ignorando o aviso do filho, Fernando contou a sua esposa as experiências do dia e perguntou:
-O João te disse alguma coisa hoje? Algo diferente? Estranho?
-Não... – diz a mulher sorrindo. – Por quê?
Fernando abaixa a cabeça por uns segundos e finalmente responde:
-Por nada. Vamos dormir? Tenho que acordar cedo amanhã, pra variar...
Sabrina estranhou a pergunta do marido, porém mais calma que no dia anterior não demorou-se a deitar e logo adormeceu. Sonhou com uma sombra negra e enorme, que emanava um odor pútrido. Ela saía com veemência do quarto de João e entrava onde ela e o marido estavam. Com uma faca na mão desferia golpes sobre o corpo adormecido de Fernando, que desesperado começava a gritar...
Sabrina caiu da cama. O marido ainda se debatia debaixo de um vulto que lhe cortava a garganta. Seu olhar expressava terror e desespero enquanto o menino lhe dilacerava a têmpora. Ao perceber a mulher acordada o menino sai de cima do pai e abraça a mãe.
Uma sombra sai detrás dele cerca o cômodo. João chorava com a faca na mão e Sabrina aflita, tentava abrir a porta e sair logo de casa. Naquele momento, a liberdade perigosa das ruas era o mais seguro que ela podia conseguir.
Ensanguentada pela roupa do filho, ainda olhou para trás e observou o rosto sem vida do marido. A sombra ainda tentou alcança-la, mas voltou para dentro do cômodo enquanto João balbuciava:
-Foi o Miguel, mãe... Foi o Miguel...
Duas horas depois, os policiais do plantão da madrugada do 6º DP de Andradina ouviam boquiabertos os relatos da mulher coberta de sangue. O menino pálido dormia sobre o banco de visitas, aparentemente tranquilo, indiferente a tudo que aconteceu.
Uma ambulância branca parou em frente à delegacia e dela saíram dois enfermeiros com uma camisa de força. O sol brilhava enquanto Sabrina era arrastada por dois brutamontes até o veículo. O delegado, convencido de que lidava com uma louca não deu atenção da história da mulher e já tinha ligado para o IML buscar o corpo do pobre homem assassinado.
Desatento, olhava processos e não notou o menino correndo aos trancos em direção à mãe. Quando este pisou para fora da delegacia, os raios de sol atingiram sua pele, fazendo-o cair no chão. Foi levado inconsciente para dentro do prédio. Ao menos a parte de alergia a luz do sol que Sabrina se referiu era verdade. Pouco antes do menino falecer, o delegado Oswaldo constatou a veracidade do restante da história: uma sombra negra deixou o corpo do menino e materializou-se diante do apavorado homem.
-Prazer, meu nome é...
Não houve tempo e a reação foi imediata. Os policiais entraram afoitos na sala do chefe, sem entender porque um delegado tão tranquilo cometeria suicídio. Detrás de um quadro pregado na parede, uma sombra movia-se protegida contra a luz, espreitando, olhando ao redor quem seria sua próxima vítima.