SOBRE COMO A SENHORA ANTÔNIA SE PREPARA PARA RECHAÇAR A TERCEIRA INVASÃO
DONA ANTÔNIA MANUELA VELASQUEZ SOARES DE ANDRADA tem 67 anos. Seu nome é uma homenagem ao ascendente mais remoto, Dom Antônio, navegador famoso, integrante da comitiva de Vasco Fernandes Coutinho, fundou a aldeia de Vila Velha em 1535, com o intuito de explorar o comércio de pau-brasil, madeira abundante na região; posteriormente, dedicou-se ao plantio de café. Dona Antônia vive na casa edificada pelo patriarca da família no que hoje é o centro da cidade; a fazenda, responsável pela riqueza do clã, fora desmembrada e vendida pelos tios -gente urbana, educada nas melhores escolas, ambiciosa e nada disposta a se sujeitar às durezas da vida no campo- de Dona Antônia após a morte de seu adorado pai, em 05 de outubro de 19--. Ela é a única remanescente do clã Soares de Andrada que permanece na cidade; uma personalidade conhecida e muito procurada por estudantes do curso de História, em razão de sua proverbial hospitalidade e dos acurados registros mentais da velha dama, verdadeiro arquivo do desenvolvimento da antiga vila no decorrer dos anos.
Acompanhada de perto por Fiel, um enorme, atento e silencioso pastor alemão de aparência feroz, Dona Antônia recebe todas as suas visitas com um invariável sorriso acolhedor, um bule de café fresco e uma fatia de bolo de laranja. Sempre após as duas da tarde; a boa senhora dorme até as onze horas da manhã. Assim que os visitantes estão confortavelmente acomodados na sala -após o indefectível período de adaptação à ameaçadora presença de Fiel- e diante das suas fisionomias complacentes, ela passa a contar como seu tataravô combateu e derrotou os aymorés naquela que ficou conhecida como a Primeira Invasão. Os aymorés, índios de enorme estatura, robusta compleição, ferocidade extrema e voraz apetite por carne humana, especialmente a branca, cercaram a vila poucos meses após a chegada de Dom Antônio. Ocorre que o bandeirante não era menos feroz; sim, Dom Antônio também pertencia a essa raça de gigantes que um dia caminharam sobre a terra. Durante oito dias, os colonos suportaram o duro cerco dos índios; durante oito dias, combateram sem trégua, rechaçando os terríveis ataques diuturnos; durante oito longos e tenebrosos dias as flechas e lanças e balaços e furiosos gritos de guerra e imprecações cruzaram os céus da vila e o sangue (fato curioso: uma vez derramado, era impossível distinguir se o líquido vital pulsara em veias índias ou brancas...) de incontáveis valentes encharcou aquele solo embriagado de violência, até que, derrotados, os índios bateram em retirada.
Dona Antônia faz uma pausa, apreciando o impacto da narrativa -que inclui precisos e vívidos detalhes sobre olhos vazados por flechas, cabeças rachadas por balas, orelhas, dedos e narizes decepados e outras consequências naturais em circunstâncias com aquelas- em seus ávidos ouvintes. As xícaras estão suspensas no ar, as bocas abertas, e os pedaços de bolo intactos em seus respectivos pratos. Após sorver um deleitoso gole de café e abocanhar um modesto naco do bolo, a elegante senhora prossegue seu relato de como as coisas prosperaram após o feroz combate; de como o café trouxe a riqueza nas décadas seguintes; de como Dom Antônio gerou a Dom Antônio Segundo, que gerou a Dom Manuel, que gerou a Dom Leôncio, que gerou a Dom Antônio Terceiro, seu pai.
E a Segunda Invasão, quando foi, perguntam (sempre há um estudante mais afoito). A segunda tentativa de invasão, você quis dizer, corrige, bem humorada, Dona Antônia; graças aos céus, não faltou um Soares de Andrada para defender esse pedaço abençoado de chão quando foi necessário...
Antes de prosseguir a narrativa, Dona Antônia se levanta, retira cuidadosamente de seu nicho na parede uma antiga espingarda -herança de Dom Antônio Terceiro- e passa a limpar a imponente arma com todo cuidado e perícia. Aos visitantes curiosos informa, sem abandonar o sorriso, que precisa estar preparada para rechaçar a Terceira Invasão. Invariavelmente, as visitas riem, deleitadas com a fanfarronice guerreira da saudável anciã. Então, a velha descendente dos fundadores da cidade se dirige para o amplo alpendre, convidando a todos para que a sigam. Intrigados com os estranhos modos da distinta dama, os estudantes se postam na varanda, aguardando a próxima cena daquele divertido teatro involuntário. Dona Antônia chega a espingarda ao ombro, faz mira por um instante e dispara. O estrondo reverbera no ar e assusta os jovens; ao longe, um pássaro que os rapazes e moças da cidade não estão aptos a identificar despenca dos céus como um anjo caído, sem vida. A pontaria da velha excêntrica é precisa e letal. Mais alguns certeiros disparos em alvos inertes e distantes (parece-me oportuno mencionar que a residência de Dona Antônia situa-se aos fundos do vasto cemitério da cidade; também é conveniente observar que as autoridades locais intentaram inúmeras vezes, sem sucesso, demovê-la do reprovável hábito de alvejar as lápides e esculturas que ornamentam a morada final dos habitantes de Vila Velha) aguçam a admiração e a curiosidade dos estudantes; Dona Antônia aparenta estar realmente apta a combater um eventual inimigo. Felizmente, nos civilizados dias de hoje, uma invasão bárbara é algo restrito aos volumes de História ou aos romances de capa e espada que já não cativam os jovens leitores (onde estão os Dumas desta geração? Onde foram se meter os Cervantes?), mais propensos a consumir com voracidade contos sobre apaixonados e bondosos vampiros ou bruxinhos adolescentes. Não, senhores; no panteão de heróis desta geração, não há mais lugar para mosqueteiros ou cavaleiros andantes... Enfim: a única ameaça real ao sossego da decana dama poderia ser algum gatuno incauto que invadisse o seu quintal; mas, para combater esse tipo de perigo, o vigilante Fiel estaria preparado.
Após seu exercício diário de tiro, Dona Antônia passa a limpar, lubrificar e municiar cuidadosamente a espingarda, enquanto prossegue sua exposição. A Segunda Invasão -que, observava novamente a dama, deveria ser mais corretamente chamada de tentativa; mas, somos forçados a reconhecer, esse nome teria menos apelo dramático; a Segunda Invasão, dizíamos, teve lugar nos dias de seu avô, Dom Leôncio, um gigante da estirpe do patriarca Dom Antônio. Desta vez, foram os holandeses, aqueles arrogantes macacos brancos. Os huguenotes holandeses vieram ao Brasil tentar impor sua religião herética, sua pretensa superioridade cultural e sua cupidez desenfreada. Os blasfemadores da Santa Virgem chegaram no inverno e cercaram a cidade com seus numerosos canhões. O confiante Van Nuurt -um metódico estudioso das estratégias bélicas- contava em vencer os locais pelo cansaço; esperava que a população faminta se entregasse sem resistência depois de alguns dias de privações. Aqueles foram dias terríveis para a cidade, fustigada por uma ininterrupta chuva torrencial e pelo gélido e constante vento sul e assolada pela negra fome. Porém, Van Nuurt, experimentado nas artes da guerra, desconhecia a matéria-prima de que eram feitos aqueles homens e mulheres de bronze. Sim, Dom Leôncio era aço forjado da mesma têmpera de seu avô; e seus conterrâneos o admiravam e seguiam com fidelidade e confiança caninas. Ao compreender que as mulheres da vila, após duas semanas de cerco, estavam antes dispostas a cozer os próprios filhos do que a se renderem aos dourados hereges, Dom Leôncio preparou seus homens. Muito antes que se dissipasse a escuridão da noite do décimo sexto dia de cerco, em meio à chuva incessante, um bando de valentes se esgueirou silencioso, chafurdando lentamente na lama fria até chegar aos pés dos férreos canhões, espalhando-se pelas fileiras e cortando as gargantas dos sonolentos vigias. Depois disso, foi fácil circular pelo acampamento; nas próximas horas, o aço mudo e preciso verteu o sangue dos mais hábeis guerreiros que os Países Baixos haviam enviado para colonizar aquela terra selvagem; quando finalmente os enregelados holandeses começaram a despertar de seu sono profundo, metade da tropa já havia sido exterminada. Aos primeiros raios do tímido sol, os canelas verdes, urrando como feras, investiram com irrefreada fúria sobre os soldados que ainda ressonavam nas barricadas inimigas. A estratégia era perfeita; paralisados de pavor, os pobres diabos louros eram presas fáceis; quase todo o contingente tombou sem vida antes que Van Nuurt capitulasse. Dom Leôncio o obrigou a embarcar de volta ao seu país alagadiço, barba e cabelos de toda a tripulação rapados, levando as cabeças dos holandeses vencidos na batalha, para que os Estados Gerais se lembrassem de nunca mais ousar investir contra a Vila feroz. Os poderosos canhões holandeses, espólio de guerra, ainda hoje ornam os prédios históricos da cidade.
Não é difícil calcular o impacto de semelhante narrativa nas mentes impressionáveis de jovens modernos e urbanos; a tarde transcorre célere e imperceptível enquanto Dona Antônia discorre sobre os heroicos feitos de seus antepassados. Mas, assim que ela percebe que os raios do sol começam a perder seu brilho e calor, e que a noite se avizinha, a anfitriã até então perfeita se apressa em despedir seus hóspedes vespertinos, praticamente enxotando-os de sua casa, mediante a promessa solene de continuarem a agradável conversa no dia seguinte. Os estudantes interpretam toda aquela agitação como caprichos normais de gente velha, e se deleitam com a perspectiva de retornarem amanhã para desfrutarem de mais uma xícara de café, de mais um bocado de bolo, de mais um pouco dos olhares vigilantes de Fiel e das deliciosas histórias da extravagante dama.
Mas Dona Antônia já não sorri, nem se importa mais com suas visitas; desde o por do sol até o momento em que cessa o escasso movimento na rua -por algum motivo as pessoas geralmente evitam a proximidade dos cemitérios durante as horas noturnas- ela observa atentamente a rua pela janela; então -sempre seguida de perto por Fiel, joga um xale sobre os ombros, tira novamente a espingarda da parede, vai até a varanda, senta-se na cadeira de balanço fabricada pelas hábeis mãos de seu pai, coloca uma garrafa de café na mesinha ao seu lado e espera. Espera, não; vigia.
Enquanto vigia, Dona Antônia se recorda de sua infância. De como seu pai a iniciara, sua filha única e adorada, nas artes do manuseio de armas, apenas ela fora capaz de caminhar sobre os pezinhos vacilantes; de como durante toda a infância e adolescência ele, com disciplina e diligência espartanas, a condicionara a ser uma guerreira que fizesse jus ao nome dos Soares de Andrada, a despeito dos olhares de reprovação e da censura de Dona Augusta, sua mãe, que se esmerava em ensinar as boas maneiras da corte à menina. O resultado de formação tão paradoxal seria que Dona Antônia se tornaria uma elegante jovem, capaz tanto de servir um imponente jantar para trinta talheres segundo a mais delicada etiqueta quanto de combater com letal maestria um levante de bravios botocudos. Quando Dona Antônia adquiriu idade e habilidade suficientes, seu pai trancou-se com ela em seu quarto e, com ar grave, anunciou:
- Preste toda atenção, filha minha; vou contar-lhe a verdadeira história das Invasões, que me foi contada por meu pai; a abominável e secreta história que nenhum livro jamais ousaria registrar...
Aquelas foram as horas mais aterradoras da vida de Dona Antônia; seu pai lhe contara a verdade sobre a natureza dos invasores que nenhum ouvido civilizado, racional, cartesiano, seria capaz de aceitar. Aquelas horas hediondas selaram o seu terrível destino. Depois deste dia, Dona Antônia exercitou suas habilidades marciais com aplicação e urgência como nunca antes fizera, irremediavelmente mesmerizada, atormentada pela Revelação; por conta da Revelação fatídica, a bela (precisamos registrar que Dona Antônia tornara-se uma mulher de rara e fulgurante beleza, que atraía a atenção e o desejo de todos os homens da região e além) e desejável moça recusou -sob os desesperados protestos de sua mãe- até mesmo o pedido do Barão de Tremembé, que perdera-se de amores por ela e almejava levá-la para São Paulo. Fico profundamente lisonjeada com vosso amável e generoso pedido, senhor Barão, disse a jovem altaneira; contudo, lamentavelmente, vejo-me obrigada a recusá-lo, em caráter peremptório. Nasci em Vila Velha e pertenço a este chão; meu destino está aqui, e aqui meus ossos descansarão ao lado dos ossos de meus pais, e dos pais de seus pais. Nada, nem mesmo o vosso intenso e digníssimo amor, seria capaz de me afastar desta cidade e de minha sina irrefutável. Assim, adeus!
Com estas palavras Dona Antônia abandonou o Barão inconsolado -consta que o pobre homem nunca se casou- e manteve-se firme em seu propósito; nunca deixou de praticar o tiro, nunca se afastou de sua cidade. Todas as noites, sentava-se na varanda ao lado do pai, perscrutando a profunda escuridão em busca de qualquer sinal de perigo; até que, tarde da noite, vencida pelo cansaço, ia dormir, deixando Dom Antônio sozinho em sua vigília. Quando seu pai faleceu, quatorze anos após sua mãe, sussurrou-lhe entre os espasmos de seu último fôlego:
- Agora só restou você. Defenda a cidade. Não deve demorar muito. Que Deus tenha piedade de sua alma!
Dona Antônia assumiu seu posto. Sim, ela havia sido alertada; sim, ela sabia; ela podia sentir no frio ar da noite.
A Terceira Invasão era questão de tempo. O inimigo, em breve, se levantaria mais uma vez para tentar conquistar a cidade. Mais uma vez, do outro lado, haveria um Soares de Andrada, pronto para o feroz combate.
Mas, desta vez, ele estaria só. Desta vez, ele seria uma mulher.
Dona Antônia Manuela Velasquez Soares de Andrada, a Última, bebe um gole de café, acaricia a enorme cabeça de Fiel e suspira profundamente, os olhos fixos em algum ponto na densa escuridão da noite sem lua. Tudo que a velha dama de ferro almeja é estar à altura da missão, ser digna do nome que ostenta. Logo saberemos, pensa.
Do outro lado da rua, o abafado som das pancadas aumenta noite após noite.