A morte ronda os abissais dessa cidade medíocre. Estou caminhando feito um tolo, que tenta enganar a deusa abstrata e tão concreta que finda a vida. Vejo o sol ainda brilhante sob nuvens fantasiadas, em suas diversas formas e interpretações, enquanto o céu azul tenta colorir a morbidade de todo esse apocalipse.

  Vislumbro urubus de barriga cheia, voando em círculos como se a fome deles fosse um ciclo sem fim. Ouço gritos que rondam meus pensamentos, e o som de disparos que não existem mais.  Sinto o cheiro de Jaqueline, o aroma refrescante de sua pele desvirginada e ao mesmo tempo, tão pura. Sinto também a falta de meu amigo, Pedro, e até mesmo daquela criança chorosa. Sinto vontade de matar todos eles.

  Caminho por sobre os corpos que há algum tempo
estavam vivos, e há bem menos tempo ainda eram zumbis. Carne e sangue se impregnam na sola da bota velha que roubei de um deles. Logo, concluo que foi em um verdadeiro inferno que a terra se tornou. Olho ao meu redor, aqui estou, eu e minha costumeira solidão, abraçados. Ambos trocando caricias amargas, experimentando a frígida temperatura sentimental que nos define. Ela está de volta, triunfante, e infelizmente solidária como nunca.

  O que posso fazer? O que posso pensar? Estou armado apenas com uma faca, que por ventura está quase cega, porém pontiaguda o bastante para fazer um bom estrago. Avisto um deles caminhando em minha direção, está longe demais para saber se está vivo ou morto.

  Empunho minha arma, uma simples faca, aperto o cabo com força, a tensão parece dominar meus músculos. Engulo em seco e olho novamente ao meu redor. Sinto que não tenho onde me esconder. Ao passo que o estranho se movimenta com certa agilidade, vejo o que ele carrega em suas mãos. O desgraçado não diz nada, a cerca de cinqüenta metros de mim, aponta seu rifle e dispara. Começo a correr, pois o cretino quer me matar.
 


Quando os mortos caminham – Parte VIII – O cemitério

  A sobrevivência é algo realmente árduo em tempos de holocausto. È incrível como os laços se estreitam tão facilmente em situações e circunstâncias tão adversas como essa que nos encontrávamos. Dentro daquele carro em meio à desordem daquele novo mundo, eu, Jackie e Pedro, e é claro aquela criança chorosa e sorridente (Pedro estava o tempo todo tentando fazer Duda sorrir, mas ela obviamente sentia falta de seus pais) estávamos cada vez mais nos portando como uma estranha família.

   Conversamos bastante durante as horas que se
seguiram. Três horas dirigindo por aquela estrada deserta. O sol quente contrastava com o vento delicioso que era convidado pela janela aberta. Sentia seu toque frio em minha barba espessa, lembrei-me naquele ligeiro momento, que há muito não andava em um carro,na verdade há muito tempo não andava com amigos.

  Jackie olhou para mim em certo ponto da viagem, lembro-me de sentir algo eletrizante tomando meu corpo. Penso que ela não sentiu nada, afinal eu realmente estava horrível. Mas havia algo ali, algo inexplicável.

  O mapa nos mostrava a direção correta. Passamos por seis cabeças de gado, vacas e bois deitados no asfalto. Haviam sido abertos, suas barrigas estavam rasgadas, mas pelo contorno das feridas, dava para ver que não haviam sido cortadas por humanos comuns. Os cortes eram irregulares, desalinhados, e as tripas, ah, elas estavam esparramadas pelo chão negro que agora estava tingido de um carmesim sarcástico. Jackie e Pedro, ao olharem para aquilo saíram do carro ás pressas, e começaram a vomitar como se as tripas fossem as deles.

  Abri a porta calmamente, pela primeira vez peguei Duda no colo, Pedro estava péssimo. Segurei a criança apenas com uma das mãos, enquanto ela babava em meus ombros. Caminhei até os animais, dava pra sentir o cheiro de sangue no ar. Segundo o mapa estávamos a dois quilômetros de nosso destino. E pelo rasto de sangue que jazia a nossa frebte, é para lá que os predadores haviam ido.

  Abaixei-me, a bebê virou-se para os animais e apontou um dedo para uma das vacas mortas no chão. A língua do animal estava decepada, havia sido mastigada, arrancada pela metade. Sua face também havia sido abocanhada, todas elas estavam destroçadas. O que quer que tenha sido aquilo, ou um bando de mortos vivos, ou as criaturas que eles estavam se tornando, com certeza em breve estaríamos frente a frente.

  Passei a mão por sobre o sangue, acariciei o asfalto molhado e enfim toquei um dos animais. De repente olhei para a bebê e só aí vi que ela me encarava. Seu rosto era algo que beirava o angelical, a criança levou uma das mãos até minha boca, senti algo estranho, uma sensação que nunca experimentara antes. Meio que sorri, enquanto ela tocava meus dentes e mexia com meus lábios.

  Para aquela criança não importava se eu estava sujo ou não, eu não era um mendigo, era um ser humano. Duda acariciou minha barba e a puxou. O que eu vi em seguida foi a coisa mais revigorante daquele dia, mais um motivo para sobreviver. A garotinha sem timidez ou constrangimento sorriu para mim.

  A peguei com as duas mãos, mal percebi que a estava sujando de sangue. Olhei-a nos olhos enquanto ela ainda sorria.

 - Você até que é uma criancinha legal – falei tentando ser um pouco mais amável que o normal. Foi aí que a diabinha me surpreendeu.  Mal percebi que Pedro havia deixado-a daquela forma. Enquanto ela sorria, eu simplesmente era banhado com sua urina – filha da mãe! – eu disse enquanto Pedro e Jackie me olhavam do carro e ainda se recompondo começaram a gargalhar.

  - Ta gostando é valentão? – perguntei para Pedro – porque não fala com o espírito de alguma dessas vacas aqui e pergunta o que as atacou? Quantos eram? Pergunta aí! – eu gritei, e ele? Ah, ele fez o que mandei. Aquele filho da mãe!

 
  Pedro fechou os olhou, dobrou os braços como fosse meditar. O imbecil não sabia mesmo quem eu era. Ousadamente ele começou...

 - Muuuu... muuuu...mu...mu... muuu?? Mu...  – ele tentava imitar. Aquele desgraçado!

 - Ah, ta mesmo achando graça? – Olhei para Jackie, e aquilo me tranqüilizou. O sorriso dela era tão doce, tão verdadeiro. Afinal, como podiam existir pessoas assim? Como é que eu, logo eu, fui encontrar eles em uma situação tão inusitada? – Jackie, da pra segurar essa pirralha, um pouco – Ela não gostou de como eu falei, afinal soou mais agressivo do que eu queria – E você Pedro, faça-me o favor de me ajudar a arrastar esses animais para fora da pista! – o maldito respondeu:

 - Muu... Ops, quer dizer, sim oh grande líder! – confesso que não segurei o riso.

    Após isso, voltamos a estrada, pareciam que não iam parar de me encher. Os dois, ou melhor, os três contra mim. Vimos mais algumas coisas estranhas, passamos por cima de um punhado de pele humana, como se fossem roupas que simplesmente algum morto vivo desistira de usar. Era nojento, algo repugnante até para mim.

  A cada quilometro rodado, a cada giro do ponteiro, nos aproximávamos do cemitério e peo calor do corpo daqueles animais, eles haviam sido mortos há pouco tempo. Senti isso quando os toquei, em breve encontrariamos aqueles que os mataram.
 
...
 

  Filho de uma figa! Ele só pode estar vivo. Os mortos vivos não podem nos seguir com uma arma. Tampouco com uma pontaria tão boa. Confesso que já é o terceiro tiro, estou assustado. Não sei se ele é algum deles, dos homens que nos perseguiram. Os homens que encontramos no cemitério.

 - Ei idiota! Estou vivo! - eu gritei.

  Silêncio. Tudo ficou calmo repentinamente. Ele deve estar recarregando a arma, só pode. Estou escondido atrás de um carro, que pelo que vejo, foi alvejado e deve ter pegado fogo. O fogo acabou com todo seu interior. Tem um corpo carbonizado no banco do motorista, parece ser uma mulher, acho que o que vejo agora deve ter sido um belo par de seios algum dia. O que mais me assusta é que no banco do passageiro há uma cadeira de bebês e um corpo que não consigo distinguir o sexo. Caramba, começo a pensar em Duda. O que ia acontecer se ela ainda estivesse viva? E se isso nunca acabar? O mundo é uma droga. Deve ter sido uma explosão daquelas, aliás, tudo isso aqui está parecendo um campo de paintball. Não sei se me entrego a morte ou se faço ela se entregar a mim.  Pneus, corpos, carros e caminhões. Todos abandonados ao tempo e a sorte. Seguro minha faca mais forte. Os passos enfim estão mais audíveis, ouço o barulho dos pés dele por sobre os escombros, agora posso sentir até o cheiro do medo do infeliz, ele está me procurando, mas está louco para fugir.


...

  - Você tem família? – Ela perguntou.

 Aquela pergunta não era propicia para a situação, afinal, nenhum de nós teria mais uma família. Mas entendi a pergunta de Jaqueline, afinal, eu era um mendigo. Ela só queria jogar o verde e colher o maduro.

 - Quer saber por que sou mendigo, correto? – Lancei a pergunta.

 - É – ela titubeou – me desculpe, mas nunca entendi porque uma pessoa abandona a família e se lança as ruas. Você parece conversar bem, e, ah, não sei – ela concluiu com insegurança.

  Pensei um pouco sobre aquele comentário, pois nunca parei para pensar que não conversava como um mendigo. Parei de estudar a partir do momento que fugi, mas dormir embrulhado com jornais, estar sempre perto do lixo nas ruas, isso tinha lá suas vantagens.

  Á noite, antes de dormir, debaixo da luz ofuscante dos postes, sentava-me e lia livros, revistas, jornais, sempre tentando acabar com a solidão, tentando espantar os pesadelos que rondavam meu sono.

  Não da para simplesmente matar seu pai e se esquecer daquilo. Tampouco se alimentar da carne de sua mãe e ser uma pessoa normal novamente. Não, eu não era normal, e definitivamente não era um mendigo normal.

 - Lá está ele – eu a interrompi, enquanto via a placa indicando o nosso destino. No máximo trinta metros a nossa frente havia duas opções, à direita, a cidade de Santo Antonio, ou à esquerda o cemitério que unia as duas pequenas cidades, as vinculava depois da morte.

  Jackie parou por um instante, olhamo-nos por cerca de três segundos. Ela mudou a marcha, virou à esquerda. Ambos estávamos ansiosos, em busca de respostas.

  Seguimos no carro por não mais que dez minutos. O cenário era estranho, havia mais corpos por ali, corpos de defuntos caídos pelo chão. Haviam sido mortos depois que viraram zumbis, suas testas estavam estraçalhadas, concluí que pelo numero de furos na testa dos cadáveres os mesmos debiam ter sido metralhados. Além disso havia buracos pela estrada, buracos supostamente feitos por granadas. A coisa andou feia por ali. Sentimos os solavancos do carro, mas o mais estranho era que não era só pelos buracos.

  - Merda! O que ta acontecendo? – perguntou, Pedro.

 - Advinha garotão – eu respondi.

 - Caramba, estamos sem gasolina? – coligiu, temeroso. Jackie bateu com as mãos no volante, estava irritada por não ter pensado naquilo. Por ter se entretido com nosso papo, afinal precisávamos ser mais espertos. Ficar ali, sem um veículo, com apenas uma arma e pouca munição, isso era arriscado demais. Mal sabíamos o que nos esperava e detalhes como esse era o que determinava se nós continuávamos vivos ou não.

 - Me desculpem! – ela gritou como se estivesse punindo a si mesma. Pensei em acariciar suas costas, ao vê-la bater com a testa no volante, afundando entre seus braços. Entretanto recuei incerto e ao mesmo tempo desejoso.

 - Tudo bem, Jackie. Vamos ficar bem! – Pedro, disse com uma certeza que somente ele possuía.

  Saí do carro, coloquei a arma na cintura e bati a porta, olhei ao longe e já podia avistar a entrada para o Cemitério Regional. O portão era enorme, havia duas corujas de bronze sobre as duas colunas que seguravam os portões. Não era uma entrada de grade que eu pudesse avistar o que havia lá dentro, não mesmo, até porque se fosse dessa forma certamente tomaríamos outro rumo.

  Aquele era um portão com quase quatro metros de altura, e havia uma cerca elétrica por cima dele. Não dava para entender porque um cemitério precisava ser fechado assim. O muro do cemitério também era enorme, muito alto e outro detalhe é que uma extensa parede de cerca viva o revestia. Estava verde e funesto, havia corpos dependurados na cerca, pude concluir que eram pessoas tentando por algum motivo entrar ou sair dali.

  - Vocês estão prontos? – perguntei.

 Jackie e Pedro, nesse momento já estavam fora do carro. Virei - me para eles e perguntei.

  - Jackie, chegou a olhar o porta malas? – Ela deu de ombros, aquilo tudo era uma verdadeira baderna, estavam todos perdidos e inseguros, divididos entre o desejo de sobreviver ou, melhor ainda, de acordar daquele intenso pesadelo. Acho que somente eu queria que a vida nunca voltasse ao normal.

  - O que acha que pode ter lá? – ela perguntou.

  - Não faço a mínima idéia, talvez o Pedro saiba, afinal ele é o vidente – eu ironizei.

 - Ha...ha...ha – retrucou – Agora acha que os mortos estão saindo de dentro do porta malas é? – ele voltou-se para Duda – Olha só Dudinha, o titio Carlinhos ta ficando biruta – ele coçou a barriguinha dela com as mãos, aquilo era tão ridiculamente carinhoso – ele não é bobinho, neném – tinha horas que dava vontade de dar um soco naquele cara, mas ele era divertido, suas caretas então, ah, elas eram ótimas.

 Caminhamos os três até o porta malas, Jackie balançava as chaves do carro na mão. Ouvir aquele barulho aumentava minha tensão. Será que podia haver algo mais ali? Ela colocou a chave e girou, pude ouvir o clique do porta-malas se abrindo, ele apenas se desacoplou, restava a um de nós içá-lo.

 - Merda! Por que estamos tão nervosos? – Perguntou, Pedro.

 - Sei lá – Jackie respondeu – acho que já vimos tantas coisas hoje, o que poderia nos surpreender? – ela indagou.

  Talvez nada nos surpreenderia, mas naquele momento sensações estranhas nos envolviam. É confuso explicar, apenas tínhamos um mau pressentimento. Nunca fui covarde, o certo é que não tive tempo para ser, tampouco fui criado para isso.

  Segurei firme o porta-malas com uma de minhas mãos, olhei para os dois, apontei a arma para a fenda que revelava a ponta de algo no mínimo curioso, e então o abri.
 
...
 

  Eu estava cercado, ele apontou a arma para mim, trêmulo. Pude ver os olhos dele, estava com medo, ele estava sozinho.

 - Onde estão os outros? – Me perguntou.

 - Os outros, quem? Do que você ta falando? – Disse, enquanto ainda segurava a faca.

 - Eles, seu mentiroso! Não minta para mim! Você não vai me levar com você! – e o homem começou a chorar, parecia mais magro que o normal, era de uma palidez incomum. De certo deveria estar faminto, mas o que mais me surpreendeu foi vê-lo apontar a arma para sua própria cabeça e apertar o gatilho.
 
...
 
 
Continua em...
 
Quando os mortos caminham – Capítulo IX - Na cama do cadáver
 

 - O que é isso? – perguntou Jackie.

 Estava confuso, não sabia o que afinal era aquilo e porque estava naquele porta malas. Peguei o objeto, e notei que havia aquele maldito bilhete. Li aquilo e tive a certeza que poderia ser uma barganha, ou no mínimo algo muito importante. Sabia que além daqueles muros tinha algo. Dava para sentir. Logo teríamos as respostas.

 - E agora? – perguntou Pedro, enquanto Duda estava em suas costas, amarrada como se ele fosse um macaco carregando seu filhote. Cortou o cinto de segurança do automóvel e adaptou em suas costas para carregá-la. Não sei o que poderia ser mais ridículo que aquilo.

 - Agora? – eu disse – Agora nós vamos entrar nesse cemitério. Engatilhei a arma e começamos a caminhar.

...
 

Sejam sempre bem vindos!
 

 
 
 
Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 23/01/2013
Reeditado em 25/01/2013
Código do texto: T4101327
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