A reencarnação estapafúrdia
Por Ramon Bacelar
Por Ramon Bacelar
Cá estou eu: confuso, isolado, solitário, e...Reencarnado como um desnutrido e faminto verme!!!
Mistérios do Criador...
À minha frente a visão tentadora de um obeso e apetitoso corpo revira o meu estômago e... não, não, verme que sou, melhor seria dizer, aparelho digestivo?, ou talvez a intensificação salivar em minha língua (?) não passe de uma mera sensação, ou memória da pessoa que ontem fui. De qualquer forma...meu estômago ronca.
Sim, esta sebenta obesidade mórbida, distorcida que está pelas lentes da fome e desejo de saciação, me vêm a mente como um suculento e tentador espeto de picanha mal passada. Acaricio com a ponta da cauda minha forma cilíndrica na área que parece corresponder a uma pança desnutrida e impulsionado pela tentação sebosa à minha frente, me arrasto freneticamente em direção a minha felicidade. O odor de carne apodrecida misturado a alguma substância química penetra em minhas narinas como uma recordação de algo que... não me lembro, embora me passe a impressão de algo importante ou algum evento chave em minha vida passada que, nesta nova morada cilíndrica e anelada, se recusa a morrer.
Enquanto me aproximo do meu “manjar dos deuses”, súbitas salivações e intensificações sudoríficas, impulsionadas que estão pelo meu vazio estomacal (para não dizer existencial), sinalizam e me fornecem a energia necessária para alcançar a macia e provavelmente suculenta área do torso.
Como um monarca entediado vislumbrando um paraíso gastronômico antes do “festejo”, sentado na cavidade umbilical como em um trono imponente, contemplo o manancial de proteínas no mesmo instante que uma sarda na bochecha me chama a atenção.Minha ansiedade para a “degustação” conquista território e me afasta momentaneamente da idéia da lembrança. Me arrasto lentamente tentando deduzir o real sabor do meu prato: teria as coxas a consistência e sabor de um pernil de porco?, e as bochechas, a leveza e maciez de um selecionado novilho? Indeciso começo pelos pés, mas antes de abocanhar um gordo e apetitoso dedão me invade um forte odor ácido (chulé?) e me afasto em direção a alguma área menos, digamos, nauseabunda (embora o odor de carne apodrecida me pareça estranhamente familiar e agradável).
Alcanço o pescoço e após contornar a nuca e desbravar um crespo e piolhento cabelo, me encontro na posição privilegiada da testa de onde, em profundas elucubrações e meditações, anotando mentalmente as “áreas de risco” e “regiões privilegiadas” (leia-se: suculentas), contemplo o “paraíso carnal” em toda sua glória: coxas?, barriga?, mão?...Sim!, as macias e carnudas bochechas!!
NHOC
NHOC
NHOC...
Salivando de prazer e felicidade, degusto cada naco como se degusta um vinho de boa safra, enquanto me lambuzo e afogo em meu delírio de êxtase e saciação.
Uma vez finalizado meu “prato de entrada” me dirijo ao principal, mas antes de alcançar a barriga sou tomado mais uma vez pelo mesmo odor de alguma substância química que parece exalar da boca no mesmo instante que uma tatuagem no braço direito, com a força de um maremoto, arrebenta as comportas do meu inconsciente e inunda minha mente com uma memória que nada mais é que a personificação do puro horror (meu horror): sim, a tatuagem, a MINHA tatuagem, e este vergonhoso ato de AUTO-CANIBALISMO!!!
O odor, em parte recordo: eu estendido na maca, tonto, confuso, atordoado, levado para a UTI e os médicos... “...ainda não sabemos... não temos tempo.”, “...ou então intoxicação.”, “só nos resta...”
E agora, eu, tonto...atordoado... recordo que, pouco antes do meu mundo escurecer por completo (como agora), como um ruído vago e disforme vindo de um distante túnel escuro, ouço: morte por envenenamento.
FIM