O Pêndulo

Não era de sua natureza dar muita credibilidade as pessoas e talvez esse fosse o motivo pela qual as tratava com tanta displicência, superioridade e tão pouco remorso. E de fato, nenhuma pessoa merecia seu respeito.

Sentada no muro, olhava o balançar dos cadarços da bota. Balançavam como o pêndulo de um relógio. Achava pêndulos de relógio fascinantes. Era o tempo personificado na sua frente, dizendo que a cada movimento que observa é uma fração de sua vida que acaba de passar. Não dava muito valor a isso, mas as pessoas sim, e então a expressão “correr contra o tempo” era literalmente aplicada a elas. Mesmo porque nem se quer possuía uma vida direito.

As pessoas passavam na calçada olhando-a com estranheza, uma moça com seus vinte e poucos anos sentada no muro às cinco horas da tarde de uma plena quarta feira, no mínimo deveria ser uma drogada. Na verdade também estava pouco se lixando para o que as pessoas achavam dela. Só queria ficar ali sentada vendo o pôr do sol laranja avermelhado, vivo, intenso, por entre o concreto cinza- sujo dos prédios da cidade grande, apesar dos olhos fechados.

Aquele havia sido seu erro. Ter-se considerada humana ao ponto de desenvolver sentimentos, emoções e de ter tido alguma compaixão. Agora era difícil fazer o caminho inverso, extirpar os sentimentos não era a mesma coisa de simplesmente nunca tê-los tido. Trata-los como um monte de papel amassado era fácil, o difícil era reintegrar totalmente a personalidade dos seres qual pertencia. Assim como estava ali sentada em cima do muro, sua existência também estava. Pendia entre o querer compartilhar de toda aquela humanidade e o querer honrar sua espécie, mas sabia que não havia escolha. Nunca poderia ser totalmente um nem poderia voltar a sua essência original. Por fim descaracterizara-se, perdera seu verdadeiro eu e agora não passava de um ser isolado no universo. A solidão pessoal não a consumia, mas também não a confortava. Aquilo devia ser o que as pessoas chamam de depressão. É quando se perdem dentro de si mesmas.

Ainda com os olhos fechados observava o fim do pôr do sol. Sentia que sua pessoa se aproximava. Os seus costumavam chamar de presas ou vítimas, mas o pouco de compaixão que lhe restava não permitia isso.

Podia entender como era difícil para aquelas formas encarar a morte. Morrer ia além de deitar-se eternamente sob o céu estrelado, sendo velado pela Lua. O amor que possuíam pelos entes queridos faziam com que se preocupassem demais com os mesmos. Na verdade, o medo dos humanos em morrer não consistia no fenômeno morte e sim nas consequências que elas causariam aos vivos. A pessoa que, por algum motivo que nem ela mesma sabia dizer, tem ciência de que sua hora está chegando chora de tristeza não pelo fato de ter que abandonar as pessoas que ama, mas sim porque sabe que vai provocar o sofrimento nelas e qual a sua responsabilidade naquele meio. As pessoas não gostam de ver as pessoas que amam sofrendo, principalmente se elas próprias forem o motivo.

A partir dessa reflexão, concluíra que jamais conseguiria ser totalmente humana. Ela compreendia a morte acima de qualquer outro ser, mas a morte não era para ser compreendida por seres comuns.

Ali estava sua pessoa. Era o fim para ela. O fim.

O anjo da morte pulou de cima do muro, a frente da mulher que por ali passava. Agora, ninguém além daquela mulher a via. Abriu os olhos e olhou fixamente para os da humana, os olhos vermelhos, em chamas.

A mulher horrorizou-se com o que viu, mas não teve tempo de expressar seu assombro. Deitou-se sob o céu sem esboçar nenhuma reação.

Era assim que vida funcionava. Em algum lugar do mundo alguma criança provavelmente acabara de chegar ao mundo.

A jovem então se virou e misturou-se no meio da multidão que se aglomerava para acudir a mulher morta no chão. Saiu andando sem rumo pela rua ainda observando o finzinho do pôr do sol.