OBSESSOR

Quarenta e dois anos. Não me casei, não tive filhos, não tenho profissão definida, meus parentes não ligam para mim. Corri tanto atrás dos sonhos que eles ficaram para trás. Pelo menos viajei, peguei a estrada muitas vezes, fiz tudo o que tinha direito e o que não tinha. Sou uma urbanóide que de vez em quando procura o verde para se harmonizar e revigorar as forças. Até que, num cômputo geral, minha vida não passou tão em branco assim. Aproveitei bem a noite e o dia. Quando cheguei aos trinta anos, tive um sonho profético de que meus pais não durariam muito, então resolvi fazer um concurso público para os despreocupar e me despreocupar, afinal de contas, estabilidade é o que todos querem. Todos querem equilíbrio, mesmo hipoteticamente. Trabalhei durante estes anos todos exaustivamente, sem férias, sem interrupção. Estava saturada do trabalho, dos colegas que estagnaram ali na profissão, no dinheirinho certo, no lar feliz, no tédio...Não era isso que imaginei para mim aos quarenta e comecei a sentir falta das viagens longas, das peregrinações na busca das respostas, na espiritualidade. Surtei. Começou com uma tristeza profunda que culminou com o abandono das minhas matrículas. Procurei um psiquiatra . Ele me disse que eu era linda e não tinha nada e me perguntou se eu tinha namorado.
No meio do redemoínho da minha vida, algo inusitado ocorreu: uns advogados bateram a minha porta, eu era herdeira do meu padrinho. Ganhei uma fazenda, com terras a perder de vista no Vale do café. O rio Paraíba do Sul cortava a propriedade. Foi só ajeitar a papelada e mudei-me para lá. Precisava de paz, queria escrever um livro. Isso tudo me deu um ânimo novo. Pensei: Deus existe!
A fazenda possuía um gerador. Tudo era rústico, o fogão era à lenha, roupa tinha que ser lavada no tanque, a única tecnologia da sede era uma geladeira. A casa do administrador ficava a um quilômetro dali, dentro da propriedade.
Acordei com uma voz estranha, abafada, mas alta, não nítida:
- Feia...feia...feia...feia...
Isso durou um dia inteiro, olhei meu rosto no espelho e realmente me achei horrível: cabelo seco, manchas estranhas na pele - mas fui até a cozinha e preparei meu café acompanhado de um bolo de fubá. E aquela voz esquisita continuava, dessa vez variou o repertório:
-Feia...feia...feia...véia...véia...véia...
Esbravejei, depois de horas:
- Quem é? Não tem mais nada o que fazer não? Não sou feia nem velha, tenho quarenta e dois anos...
E a voz esganiçada e rouca era intermitente e ecoava por toda a casa. Vi um papagaio Jandáia na janela e pensei: é ele, aproximei-me e o bicho voou.
Voltei para a cama e fiquei dias e dias olhando para o teto, com aquela voz horrível me infernizando:
- Feia..feia..véia...véia...véia...feia...
- Chega! - gritei eu insandecida - Aparece, fantasma!
E corri pela casa toda como uma louca, até perceber que o som vinha do lado de fora. Era o ralo do tanque, meio entupido por folhas, a torneira estava semiaberta e a água descia aos poucos.
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COLEGAS, ESCUTEM MEUS ÁUDIOS MUSICAIS! BEIJÃO.
LYGIA VICTORIA
Enviado por LYGIA VICTORIA em 18/01/2013
Reeditado em 12/07/2013
Código do texto: T4091643
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