AS CINZAS DO POETA
Elvira, a viúva do Dr. Walter, médico neurologista muito conhecido na cidade, costumava acordar por volta das onze horas da manhã e a primeira coisa que fazia era abrir todas as janelas da casa para o sol entrar. Ela era uma criatura de hábitos arraigados. Todo dia fazia exatamente as mesmas coisas, na mesma seqüência e com pontualíssima regularidade. Dr. Walter dizia que fora nela que Chico Buarque se inspirara para fazer a canção “Cotidiano”, na qual ele descreve uma mulher que “todo dia ela faz tudo sempre igual”.
Elvira não gostava da comparação, até porque, dizia ela, nunca “acordaria ás seis horas da manhã”, e qualquer pessoa que tentasse sujeitá-la a isso e outras coisas que a mulher da canção fazia, ia ganhar um inimigo para sempre. Pois para começar ela não dava “sorrisos pontuais”, não usava pasta de dente com gosto de hortelã, odiava feijão e pior ainda, não dormia na mesma cama com o marido, para dar-lhe mordidas de pavor e jurar eterno amor á meia-noite.”
Walter, o seu marido médico, não ligava para essas esquisitices de Elvira. Afinal, eram mais de quarenta anos com ela, dois filhos e uma vida de cumplicidades, separações, reconciliações, e sobretudo, muita rotina, que pouco a pouco resultou numa separação de corpos, mas também uniu-os numa amizade tolerante e necessária, que toda vez que o Dr. Walter, ou a Elvira, apareciam sozinhos num evento, a impressão de todo mundo era a de que estava faltando alguma coisa em um deles.
Pessoalmente, nenhum dos dois era pessoa de convívio fácil. O Dr. Walter já estava com mais de oitenta anos, e havia se tornado um sujeito ranzinza, crítico e intolerante como sói acontecer a um cidadão que chega a essa idade sem conseguir acreditar muito no lado espiritual da vida, só conseguindo vê-la pelo lado científico. Ele era assim. Um cético completo que quando falava em religião, o máximo que admitia era um panteísmo filosófico que creditava á leis exclusivamente naturais todos os fenômenos universais.
Para ele, Deus era uma idéia desenvolvida pelas pessoas ignorantes para justificar aquilo que suas mentes não conseguiam explicar. Isso queria dizer que Deus não existia como entidade, como sustentam as religiões reveladas, nem como princípio, com querem as religiões metafísicas, mas apenas como um arquétipo mental necessário para situar um princípio natural das coisas, pois, segundo ele, que era médico neurologista e durante algum tempo praticara a clínica psiquiátrica, a mente humana precisa de um princípio, um meio e um fim para poder identificar a própria existência e dar um sentido a ela dentro de um mundo que não tem sentido nem finalidade.
Não obstante, o Dr. Walter era um bom filósofo e chegara até a arriscar algumas incursões poéticas, ora de conteúdo metafísico, ora de contornos até sensuais. O metafísico era fundamentado em suas próprias crenças panteístas, conforme ele as definia, e as sensuais foram todas inspiradas em sua paixão de adolescente por Elvira, paixão essa que com o correr do tempo e o peso da rotina, tinha se desvanecido. Mas a filosofia, cultivou-a até o fim da vida, e uma dos seus últimos e maiores prazeres era dividir uma garrafa de uísque com um amigo que também gostasse de especulações filosóficas e recitais.
Dr. Walter era fã incondicional de um colega seu, o médico e também poeta Augusto dos Anjos. Depois do segundo uísque sempre recitava inteirinho “O Monólogo de uma Sombra”, uma melancólica balada metafísica desse famoso poeta que acreditava que toda a existência humana era mero processo mecânico e químico, que se esgotava no breve e penoso espaço que nos era dado para viver. Eis um excerto dessa balada só dar uma idéia de quanto era pessimista e lúgubre o pensamento do poeta e do seu fã número um, o Dr. Walter:
“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!
(...)
Como um pouco de saliva quotidiana
Mostro meu nojo á Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
E o animal inferior que urra nos bosques
E com certeza meu irmão mais velho!
(...)
Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, luzem...
E apenas encontrou na idéia gasta,
O horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as coisas se reduzem!
(...)
E o que ele foi: clavículas, abdômen,
O coração, a boca, em síntese, o Homem,
- Engrenagem de vísceras vulgares -
Os dedos carregados de peçonha,
Tudo coube na lógica medonha
Dos apodrecimentos musculares!
(...)
E foi então para isto que esse doudo
Estragou o vibrátil plasma todo,
À guisa de um faquir, pelos cenóbios?!...
Num suicídio graduado, consumir-se,
E após tantas vigílias, reduzir-se
À herança miserável de micróbios!
(...)
As alucinações tácteis pululam.
Sente que megatérios o estrangulam...
A asa negra das moscas o horroriza;
E autopsiando a amaríssima existência
Encontra um cancro assíduo na consciência
E três manchas de sangue na camisa!
(...)
Provo desta maneira ao mundo odiento
Pelas grandes razões do sentimento,
Sem os métodos da abstrusa ciência fria
E os trovões gritadores da dialética,
Que a mais alta expressão da dor estética
Consiste essencialmente na alegria.
(...)
E o turbilhão de tais fonemas acres
Trovejando grandiloquos massacres,
Há-de ferir-me as auditivas portas,
Até que minha efêmera cabeça
Reverta á quietação da treva espessa
E à palidez das fotosferas mortas.”
A poesia de Augusto dos Campos não é fácil de entender nem de decorar por causa das palavras rebuscadas que ele usa, que se referem a termos científicos e filosóficos que a maioria das pessoas não conhece. Mas o Dr. Walter conhecia todos e sabia de cor esse mefistólico monólogo que fala da miséria da condição humana e da sua ânsia em criar um mundo de realidades superiores onde ele possa encontrar uma superação para essa triste condição.
Assim era o Dr. Walter: um cético por profissão, um filósofo por lazer e um cínico por livre escolha. No entanto, levava a sério as imagens do poema, e gostava de provocar arrepios e esgares de nojo nas pessoas descrevendo a decomposição dos cadáveres em suas covas, o lento e asqueroso processo tanatológico que se inicia a partir do último sopro de vida. Por isso, dizia, ele não queria se submeter a isso. Preferia ser cremado imediatamente, e ter suas cinzas espalhadas ao vento, ou no mar. Divertia-se descrevendo como os vermes atuam na decomposição do cadáver, como os ácidos graxos se decompõem, como a pele ia se tornando azulada. Já as cinzas atiradas ao vento podiam ser atraídas pelo influxo do pensamento das pessoas amadas, pois a atividade cerebral tinha qualidades magnéticas.
A Elvira odiava essas conversas. “ Já está bêbado de novo”, dizia ela, quando ele começava a recitar o Monólogo de Uma Sombra. Sabia que logo depois disso viria a aula de tanatologia.
Elvira era espírita. Ela acreditava na vida após a morte. Acreditava também em reencarnação. Passara a cultivar essas crenças após a morte de um dos seus filhos, um rapaz de dezenove anos, que morrera em um acidente de automóvel. Nunca se recuperara desse drama. Agia como se o garoto tivesse viajado para outro país e um dia ela iria vê-lo de novo. Freqüentara centros espíritas em busca de comunicação com ele, conservava seu quarto intacto como ele o deixara, recusava-se perentoriamente a se livrar dos pertences dele, como se um dia o rapaz fosse voltar para casa.
.
O Dr. Walter morreu como queria. Com oitenta e dois anos, ainda cumpria uma rotina de trabalho bastante ativa. Levantava-se regularmente as seis, ia para o seu plantão no hospital, onde atendia clínica psiquiátrica, depois atendia no seu consultório até por volta das cinco da tarde. Ás quartas e sextas, ainda dava umas aulas na universidade. Nos outros dias costumava passar umas duas ou três horas num bar, onde encontrava os amigos de filosofia e versos. Era a sua hora de lazer. Depois ia para casa e dormia. Em camas separadas, já fazia uns dez anos.
Morreu dormindo. Deitou-se, naquele estado etílico que era seu costume. Quando Elvira acordou, normalmente ás onze, como fazia todos os dias, ela viu que a mesa estava limpa. Não havia sinais de que o Dr. Walter tomara o café matinal que ele sempre preparava e deixava o bule, a manteiga e as torradas em cima da mesa, para ela guardar.
Não viu, também, a toalha molhada no banheiro. Rotina é rotina e quando ela é quebrada, a gente logo nota. Então ela foi ao quarto dele e viu que ele não havia se levantado. De pronto ela soube que ele estava morto.
Dr. Walter sempre manifestara o desejo de ser cremado e ter suas cinzas.espalhadas ao vento ou jogadas ao mar. Não queria túmulos nem placas, nem nada que o lembrasse. Mas Elvira não concordava com isso. Ela dizia que uma pessoa sem túmulo era como se nunca tivesse existido. Ela precisava de um túmulo e de uma placa de reconhecimento para saber onde estavam seus seres queridos e poder visitá-los nas ocasiões protocolares, levar as flores de costume, realizar as missas rituais. Assim, não quis cumprir as recomendações dele e mandou enterrá-lo no túmulo que havia comprado por ocasião da morte do filho, túmulo que ela transformara num belo mausoléu.
Por isso ela estranhara aquele cheiro de uísque que ela sentira na sala, naquela manhã. Era estranho. Ela não bebia uísque. Dr. Walter gostava, mas depois da morte dele ela nunca mais abrira uma garrafa daquela bebida naquela casa. Estranhou ao encontrar a garrafa aberta, em cima do barzinho, justamente como ele fazia quando estava vivo. Chegava em casa, e antes de ir para o banho tomava uma dose de uísque, deixando sempre a garrafa aberta. E era ela que sempre fechava e guardava a garrafa.
Em princípio ela achou que podia ter sido o Waltinho, o seu filho caçula. Mas ele não bebia. Aliás, vivia recriminando o pai por beber aquilo. E o Waltinho foi taxativo: ele não tocara naquela garrafa.
Outros sinais, como encontrar toalhas molhadas justamente nas horas em que ele tomava banho, a mesa posta para o café da manhã, justamente como ele costumava fazer, a convenceram de que o espírito do marido ainda estava na casa.
Porém, foram os restos de um estranho pó que ela encontrou em três ou quatro oportunidades na cama dele que a convenceu de que tinha sido o desrespeito á vontade dele que andava provocando aqueles fenômenos. E foi então que mandou exumar o corpo, cremá-lo e espalhar as cinzas ao vento, como ele havia solicitado.
Depois que ela fez isso tudo voltou ao normal e nenhuma coisa estranha aconteceu mais naquela casa. Passados vários meses, Elvira já havia se convencido de que tudo tinha sido fruto de alucinações causadas pelo seu estado psíquico extremamente debilitado. Até que um dia, ao visitar o centro espírita ao qual não ia há mais de um ano, um dos médiuns lhe entregou um poema, que segundo ele, havia sido psicografado na noite anterior. O poema dizia o seguinte:
Minha carne integrará a terra
Nas cinzas do meu corpo extinto.
Com ela fará eterna simbiose.
Será parte dos seus ossos, sangue e saliva,
Como se fosse um organismo único.
Que não se ouça choro de viúva ou órfão
Nem missa no dia sétimo,
Nem um ano depois, nem sete
Se fale da mão que pousou a pena,
Da cabeça que pendeu,
Do coração que descansou,
Da voz que se calou.
Minha alma se integrará ao vento,
Ele será a minha voz no mundo.
Se quiseres a ouvirás à noite
Nas canções da chuva,
Nos assobios das árvores,
No silêncio das ruas encantadas
Onde eu passei sem deixar recado.
Se te esforçares poderás ver-me
Quando a noite for caindo
E a tua guarda se abaixar.
Ma s será só por um instante.
Existem leis nessas fronteiras
Onde os nossos sopros se separam
E só permitem o tênue encontro
Das lembranças que restaram
Nos corações que se ofereceram
Em holocausto á Amizade.
Mas se quiseres ainda um carinho
Deixa o vento roçar teu rosto.
É um beijo que eu te mando
Pelos lábios da Eternidade.”
Segundo o médio esse poema tinha sido ditado pelo espírito de um tal Dr. Walter Lacerda de Castro.
Naquela noite, Elvira não chorou, como era seu costume, desde que Walter morrera. Nem se sentiu mais tão sozinha. Ao contrário sentou-se no quintal e ficou esperando o vento vir beijar seu rosto. Sentiu dois beijos, um em cada face. Nunca mais voltou ao cemitério nem falou mais do filho morto nem se lamentou pela sua perda. E mudou completamente de hábitos. Tornou-se uma das mais ativas voluntárias das obras de caridade do Centro Espírita que passou a freqüentar regularmente. O único hábito arraigado que fez questão de conservar foi a mania de sentar-se á tarde, numa cadeira no quintal, e deixar o vento beijar o seu rosto.
Elvira morreu ontem. Quando levantaram seu caixão para colocar no rabecão todo mundo sentiu uma gostosa lufada de vento inundar o ambiente. Eu me lembrei do Augusto dos Anjos e inconscientemente murmurei para mim mesmo: “Até que minha efêmera cabeça reverta á quietação da treva espessa, e à palidez das fotosferas mortas.”
Elvira, a viúva do Dr. Walter, médico neurologista muito conhecido na cidade, costumava acordar por volta das onze horas da manhã e a primeira coisa que fazia era abrir todas as janelas da casa para o sol entrar. Ela era uma criatura de hábitos arraigados. Todo dia fazia exatamente as mesmas coisas, na mesma seqüência e com pontualíssima regularidade. Dr. Walter dizia que fora nela que Chico Buarque se inspirara para fazer a canção “Cotidiano”, na qual ele descreve uma mulher que “todo dia ela faz tudo sempre igual”.
Elvira não gostava da comparação, até porque, dizia ela, nunca “acordaria ás seis horas da manhã”, e qualquer pessoa que tentasse sujeitá-la a isso e outras coisas que a mulher da canção fazia, ia ganhar um inimigo para sempre. Pois para começar ela não dava “sorrisos pontuais”, não usava pasta de dente com gosto de hortelã, odiava feijão e pior ainda, não dormia na mesma cama com o marido, para dar-lhe mordidas de pavor e jurar eterno amor á meia-noite.”
Walter, o seu marido médico, não ligava para essas esquisitices de Elvira. Afinal, eram mais de quarenta anos com ela, dois filhos e uma vida de cumplicidades, separações, reconciliações, e sobretudo, muita rotina, que pouco a pouco resultou numa separação de corpos, mas também uniu-os numa amizade tolerante e necessária, que toda vez que o Dr. Walter, ou a Elvira, apareciam sozinhos num evento, a impressão de todo mundo era a de que estava faltando alguma coisa em um deles.
Pessoalmente, nenhum dos dois era pessoa de convívio fácil. O Dr. Walter já estava com mais de oitenta anos, e havia se tornado um sujeito ranzinza, crítico e intolerante como sói acontecer a um cidadão que chega a essa idade sem conseguir acreditar muito no lado espiritual da vida, só conseguindo vê-la pelo lado científico. Ele era assim. Um cético completo que quando falava em religião, o máximo que admitia era um panteísmo filosófico que creditava á leis exclusivamente naturais todos os fenômenos universais.
Para ele, Deus era uma idéia desenvolvida pelas pessoas ignorantes para justificar aquilo que suas mentes não conseguiam explicar. Isso queria dizer que Deus não existia como entidade, como sustentam as religiões reveladas, nem como princípio, com querem as religiões metafísicas, mas apenas como um arquétipo mental necessário para situar um princípio natural das coisas, pois, segundo ele, que era médico neurologista e durante algum tempo praticara a clínica psiquiátrica, a mente humana precisa de um princípio, um meio e um fim para poder identificar a própria existência e dar um sentido a ela dentro de um mundo que não tem sentido nem finalidade.
Não obstante, o Dr. Walter era um bom filósofo e chegara até a arriscar algumas incursões poéticas, ora de conteúdo metafísico, ora de contornos até sensuais. O metafísico era fundamentado em suas próprias crenças panteístas, conforme ele as definia, e as sensuais foram todas inspiradas em sua paixão de adolescente por Elvira, paixão essa que com o correr do tempo e o peso da rotina, tinha se desvanecido. Mas a filosofia, cultivou-a até o fim da vida, e uma dos seus últimos e maiores prazeres era dividir uma garrafa de uísque com um amigo que também gostasse de especulações filosóficas e recitais.
Dr. Walter era fã incondicional de um colega seu, o médico e também poeta Augusto dos Anjos. Depois do segundo uísque sempre recitava inteirinho “O Monólogo de uma Sombra”, uma melancólica balada metafísica desse famoso poeta que acreditava que toda a existência humana era mero processo mecânico e químico, que se esgotava no breve e penoso espaço que nos era dado para viver. Eis um excerto dessa balada só dar uma idéia de quanto era pessimista e lúgubre o pensamento do poeta e do seu fã número um, o Dr. Walter:
“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!
(...)
Como um pouco de saliva quotidiana
Mostro meu nojo á Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
E o animal inferior que urra nos bosques
E com certeza meu irmão mais velho!
(...)
Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, luzem...
E apenas encontrou na idéia gasta,
O horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as coisas se reduzem!
(...)
E o que ele foi: clavículas, abdômen,
O coração, a boca, em síntese, o Homem,
- Engrenagem de vísceras vulgares -
Os dedos carregados de peçonha,
Tudo coube na lógica medonha
Dos apodrecimentos musculares!
(...)
E foi então para isto que esse doudo
Estragou o vibrátil plasma todo,
À guisa de um faquir, pelos cenóbios?!...
Num suicídio graduado, consumir-se,
E após tantas vigílias, reduzir-se
À herança miserável de micróbios!
(...)
As alucinações tácteis pululam.
Sente que megatérios o estrangulam...
A asa negra das moscas o horroriza;
E autopsiando a amaríssima existência
Encontra um cancro assíduo na consciência
E três manchas de sangue na camisa!
(...)
Provo desta maneira ao mundo odiento
Pelas grandes razões do sentimento,
Sem os métodos da abstrusa ciência fria
E os trovões gritadores da dialética,
Que a mais alta expressão da dor estética
Consiste essencialmente na alegria.
(...)
E o turbilhão de tais fonemas acres
Trovejando grandiloquos massacres,
Há-de ferir-me as auditivas portas,
Até que minha efêmera cabeça
Reverta á quietação da treva espessa
E à palidez das fotosferas mortas.”
A poesia de Augusto dos Campos não é fácil de entender nem de decorar por causa das palavras rebuscadas que ele usa, que se referem a termos científicos e filosóficos que a maioria das pessoas não conhece. Mas o Dr. Walter conhecia todos e sabia de cor esse mefistólico monólogo que fala da miséria da condição humana e da sua ânsia em criar um mundo de realidades superiores onde ele possa encontrar uma superação para essa triste condição.
Assim era o Dr. Walter: um cético por profissão, um filósofo por lazer e um cínico por livre escolha. No entanto, levava a sério as imagens do poema, e gostava de provocar arrepios e esgares de nojo nas pessoas descrevendo a decomposição dos cadáveres em suas covas, o lento e asqueroso processo tanatológico que se inicia a partir do último sopro de vida. Por isso, dizia, ele não queria se submeter a isso. Preferia ser cremado imediatamente, e ter suas cinzas espalhadas ao vento, ou no mar. Divertia-se descrevendo como os vermes atuam na decomposição do cadáver, como os ácidos graxos se decompõem, como a pele ia se tornando azulada. Já as cinzas atiradas ao vento podiam ser atraídas pelo influxo do pensamento das pessoas amadas, pois a atividade cerebral tinha qualidades magnéticas.
A Elvira odiava essas conversas. “ Já está bêbado de novo”, dizia ela, quando ele começava a recitar o Monólogo de Uma Sombra. Sabia que logo depois disso viria a aula de tanatologia.
Elvira era espírita. Ela acreditava na vida após a morte. Acreditava também em reencarnação. Passara a cultivar essas crenças após a morte de um dos seus filhos, um rapaz de dezenove anos, que morrera em um acidente de automóvel. Nunca se recuperara desse drama. Agia como se o garoto tivesse viajado para outro país e um dia ela iria vê-lo de novo. Freqüentara centros espíritas em busca de comunicação com ele, conservava seu quarto intacto como ele o deixara, recusava-se perentoriamente a se livrar dos pertences dele, como se um dia o rapaz fosse voltar para casa.
.
O Dr. Walter morreu como queria. Com oitenta e dois anos, ainda cumpria uma rotina de trabalho bastante ativa. Levantava-se regularmente as seis, ia para o seu plantão no hospital, onde atendia clínica psiquiátrica, depois atendia no seu consultório até por volta das cinco da tarde. Ás quartas e sextas, ainda dava umas aulas na universidade. Nos outros dias costumava passar umas duas ou três horas num bar, onde encontrava os amigos de filosofia e versos. Era a sua hora de lazer. Depois ia para casa e dormia. Em camas separadas, já fazia uns dez anos.
Morreu dormindo. Deitou-se, naquele estado etílico que era seu costume. Quando Elvira acordou, normalmente ás onze, como fazia todos os dias, ela viu que a mesa estava limpa. Não havia sinais de que o Dr. Walter tomara o café matinal que ele sempre preparava e deixava o bule, a manteiga e as torradas em cima da mesa, para ela guardar.
Não viu, também, a toalha molhada no banheiro. Rotina é rotina e quando ela é quebrada, a gente logo nota. Então ela foi ao quarto dele e viu que ele não havia se levantado. De pronto ela soube que ele estava morto.
Dr. Walter sempre manifestara o desejo de ser cremado e ter suas cinzas.espalhadas ao vento ou jogadas ao mar. Não queria túmulos nem placas, nem nada que o lembrasse. Mas Elvira não concordava com isso. Ela dizia que uma pessoa sem túmulo era como se nunca tivesse existido. Ela precisava de um túmulo e de uma placa de reconhecimento para saber onde estavam seus seres queridos e poder visitá-los nas ocasiões protocolares, levar as flores de costume, realizar as missas rituais. Assim, não quis cumprir as recomendações dele e mandou enterrá-lo no túmulo que havia comprado por ocasião da morte do filho, túmulo que ela transformara num belo mausoléu.
Por isso ela estranhara aquele cheiro de uísque que ela sentira na sala, naquela manhã. Era estranho. Ela não bebia uísque. Dr. Walter gostava, mas depois da morte dele ela nunca mais abrira uma garrafa daquela bebida naquela casa. Estranhou ao encontrar a garrafa aberta, em cima do barzinho, justamente como ele fazia quando estava vivo. Chegava em casa, e antes de ir para o banho tomava uma dose de uísque, deixando sempre a garrafa aberta. E era ela que sempre fechava e guardava a garrafa.
Em princípio ela achou que podia ter sido o Waltinho, o seu filho caçula. Mas ele não bebia. Aliás, vivia recriminando o pai por beber aquilo. E o Waltinho foi taxativo: ele não tocara naquela garrafa.
Outros sinais, como encontrar toalhas molhadas justamente nas horas em que ele tomava banho, a mesa posta para o café da manhã, justamente como ele costumava fazer, a convenceram de que o espírito do marido ainda estava na casa.
Porém, foram os restos de um estranho pó que ela encontrou em três ou quatro oportunidades na cama dele que a convenceu de que tinha sido o desrespeito á vontade dele que andava provocando aqueles fenômenos. E foi então que mandou exumar o corpo, cremá-lo e espalhar as cinzas ao vento, como ele havia solicitado.
Depois que ela fez isso tudo voltou ao normal e nenhuma coisa estranha aconteceu mais naquela casa. Passados vários meses, Elvira já havia se convencido de que tudo tinha sido fruto de alucinações causadas pelo seu estado psíquico extremamente debilitado. Até que um dia, ao visitar o centro espírita ao qual não ia há mais de um ano, um dos médiuns lhe entregou um poema, que segundo ele, havia sido psicografado na noite anterior. O poema dizia o seguinte:
Minha carne integrará a terra
Nas cinzas do meu corpo extinto.
Com ela fará eterna simbiose.
Será parte dos seus ossos, sangue e saliva,
Como se fosse um organismo único.
Que não se ouça choro de viúva ou órfão
Nem missa no dia sétimo,
Nem um ano depois, nem sete
Se fale da mão que pousou a pena,
Da cabeça que pendeu,
Do coração que descansou,
Da voz que se calou.
Minha alma se integrará ao vento,
Ele será a minha voz no mundo.
Se quiseres a ouvirás à noite
Nas canções da chuva,
Nos assobios das árvores,
No silêncio das ruas encantadas
Onde eu passei sem deixar recado.
Se te esforçares poderás ver-me
Quando a noite for caindo
E a tua guarda se abaixar.
Ma s será só por um instante.
Existem leis nessas fronteiras
Onde os nossos sopros se separam
E só permitem o tênue encontro
Das lembranças que restaram
Nos corações que se ofereceram
Em holocausto á Amizade.
Mas se quiseres ainda um carinho
Deixa o vento roçar teu rosto.
É um beijo que eu te mando
Pelos lábios da Eternidade.”
Segundo o médio esse poema tinha sido ditado pelo espírito de um tal Dr. Walter Lacerda de Castro.
Naquela noite, Elvira não chorou, como era seu costume, desde que Walter morrera. Nem se sentiu mais tão sozinha. Ao contrário sentou-se no quintal e ficou esperando o vento vir beijar seu rosto. Sentiu dois beijos, um em cada face. Nunca mais voltou ao cemitério nem falou mais do filho morto nem se lamentou pela sua perda. E mudou completamente de hábitos. Tornou-se uma das mais ativas voluntárias das obras de caridade do Centro Espírita que passou a freqüentar regularmente. O único hábito arraigado que fez questão de conservar foi a mania de sentar-se á tarde, numa cadeira no quintal, e deixar o vento beijar o seu rosto.
Elvira morreu ontem. Quando levantaram seu caixão para colocar no rabecão todo mundo sentiu uma gostosa lufada de vento inundar o ambiente. Eu me lembrei do Augusto dos Anjos e inconscientemente murmurei para mim mesmo: “Até que minha efêmera cabeça reverta á quietação da treva espessa, e à palidez das fotosferas mortas.”