Pretinho Sabiá
                                                                 Luizinho e Limeira
Falado:
Até hoje ainda me lembro dos discursos do doutor João;
“Se subir como prefeito prometo de coração
Vou mandar arrumar as estradas e a ponte do Ribeirão
Não há de faltar pros pobre escola, emprego, luz, e pão.”

Prometeu até uma viola pros violeiros da cidade
Mandou matar quatro bois, distribuiu bebida a vontade
Chamou o pretinho Sabiá que era seu amigo leal
E daquelas redondezas o maior cabo eleitoral.

“Pegue tinta e pincel escreva em todo lugar
Vote no Doutor João que a vida vai melhorar.
Se eu vencê te darei uma casa pra morar
Daquele barracão imundo sua mãezinha eu vou tirar.”

Cantado:
Escrevendo nas paredes pelas altas madrugadas
O Sabiá com a friagem pegou uma gripe danada.
Mas com sua propaganda o doutor vence a parada
Deixando os adversários tudo de cabeça inchada.

E na casa do prefeito nessa noite de emoção,
Chegou uma preta chorando e p'ra empregada disse então:
“O Sabiá esta morrendo, vim chamar o Doutor João
Diz pra ele vim salvar meu filho do coração.”

A empregada foi pra dentro e voltou com este recado:
“O doutor mandou dizer que seu carro tá quebrado
Ele agora tem visita e não quer ser incomodado
Mas promete que amanhã seu caso será estudado.”

No outro dia seis pessoas carregavam o caixão
Do pretinho que morria na mais triste ingratidão
Em sua porta ficou escrito c’o letreiro da ilusão:
“P'ra prefeito de palavra vote no Doutor João.”

                                                                    ***
Toda vez que eu passo ali pelos altos da Vila Lavínia, eu me lembro do Negrinho Sabiá. E não é coincidência não, mas me lembro também do meu pai e da velha canção da dupla Luizinho e Limeira, que falava do negrinho que tinha esse apelido e morreu por falta de atendimento médico, negado justamente pelo político doutor que ele ajudou a eleger para prefeito.Meu pai adorava essa canção e também morreu muito jovem, com 34 anos de idade. Segundo se disse na ocasião, se tivesse sido convenientemente tratado, teria sobrevivido para me ver crescer e dar netos para ele. O tempo passa, tudo muda, mas certas coisas parece que são para sempre.

Nossa mente é uma coisa engraçada. Ela trabalha por conexões. Você se lembra de um som, uma palavra, uma imagem qualquer e essa âncora que é levantada por esse estímulo sensorial nos leva  para lugares tão insuspeitados e bizarros que a gente nem acreditaria existir. Ás vezes, a gente até sai da dimensão em que estamos vivendo e acaba penetrando em mundos paralelos onde cada coisa estranha acontece...
Pawels e Bergier, os autores do livro clássico que deu início ao chamado realismo fantástico, “O Despertar dos Mágicos”, contam a história do corvo que ficou louco por ter ultrapassado a dimensão do mundo em que vivia e entrado, por engano, na dimensão em que viviam os homens. E de repente, ele que andava voando pelos ares, sabendo que os homens viviam grudados na terra, perdeu a noção do espaço em que vivia em conseqüência de um nevoeiro e deu de cara com um homem no espaço! E ele, que sabia que um homem não pode voar, se viu frente a frente com um fenômeno inexplicável para a sua mente de corvo: um homem voador!

Tudo aconteceu naquele breve instante em que a figura pequenina do negrinho Sabiá me veio á mente. Eu estava passando ali pelos lados dos altos da Vila Lavínia. Lembrei-me do meu velho coleguinha de brinquedos. A gente tinha posto esse apelido nele justamente por causa da canção do Luizinho e Limeira. Não que ele tivesse alguma coisa a ver com políticos malandros que só prometem e não cumprem (me perdoem o pleonasmo), mas sim porque ele era um negrinho de pernas finas como um sabiá e vivia assobiando outra música da mesma dupla, uma valsinha chamada Caboclo Bizarria, que falava de um cara que nunca ficava triste porque sempre assobiava a mesma melodia.
O negrinho Sabiá tinha uns dez anos e era nosso colega de brinquedos. Aliás, a nossa  principal brincadeira era empinar pipas. O Sabiá era mestre em fazer pipas. Fazia lindas e perfeitas pipas que a gente ia empinar nos terrenos vazios da rua – era o que mais havia no local- longe dos fios de eletricidade, que também eram raros por aqueles lados.
Um dia, eu me lembro bem, recebemos a triste notícia de que o negrinho Sabiá tinha morrido. Estava empinando pipa num terreno baldio e havia caído num poço abandonado que o proprietário do terreno se esquecera de fechar. Só fora encontrado no dia seguinte, com o pescoço quebrado, depois de a família procurá-lo a noite inteira e acionar a polícia. O Sabiá foi enterrado(lembro-me do cortejo fúnebre passando em frente á minha casa), o poço foi fechado, mas a que se saiba, o dono do terreno sequer foi incomodado pela polícia, pois, como se disse na ocasião, ninguém conseguiu descobrir quem era.

Teria sido uma historinha banal, que acontece todos os dias, se durante alguns anos, alguns moleques novos que mudavam para o bairro não tivessem contado algumas histórias estranhas a respeito de um crioulinho que os sempre os convidava para soltar pipa no terreno onde havia aquele poço. Isso durou uns dois anos e foram vários os garotos que contaram a mesma história. O pretinho aparecia sempre por volta das seis da tarde, na hora da Ave Maria. Eu nunca acreditei nisso, mas por vias da dúvida, enquanto morei naquele bairro nunca mais passei pelo local naquela hora. Sempre preferi dar uma volta mais longa para ir até o campo do Sete de Setembro jogar  bola ou empinar pipa, mas por aquele terreno baldio não passei mais não.

Não sei porque essas lembranças me vieram á memória agora, sessenta anos depois. Talvez seja por causa do negrinho que bateu na janela do meu carro, quando eu parei no sinal da Rua Ipiranga com a Gaspar Conqueiro. Eu estava tão absorto com essas memórias que nem prestei atenção nele. O sinal abriu e eu fui embora sem ao menos saber o que ele queria. Quando olhei pelo retrovisor o menino havia sumido. Na minha memória só ficou a melodia que me pareceu ouvi-lo assobiando. Lara-ra- ra- Lará-lará- lára Lalá- Lari-lalá....Posso estar enganado, mas tenho certeza de que era a melodia do caboclo Bizarria.               
 
Valsa do Assobio
Luizinho E Limeira

Todo mundo já conhece o caboclo Bizarria
Que ganhou esse apelido lá na minha freguesia
Ele nunca nada triste só conhece alegria
E só vive assobiando sempre essa melodia

Quando o dia amanhece ele logo principia
Mesmo na lida do gado o caboclo assobia
E a moda nunca muda sempre a mesma agonia
Cansa a gente de escutá sempre essa melodia.

Essa valsa do assobio que ele tanto assobia
Que ele diz a toda gente que é da sua autoria
E eu mesmo acredito no caboclo bizarria
Mas também que tenha dó, sempre esta melodia.

João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 14/01/2013
Reeditado em 14/01/2013
Código do texto: T4085212
Classificação de conteúdo: seguro